*Luiz Claudio Chaves é especialista em Direito Administrativo e professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR e professor convidado da Fundação Getúlio Vargas e da PUC-Rio. Autor das obras: Curso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris; Licitação Pública – Compra e Venda governamental Para Leigos, Alta Books; e, Planejamento e Análise de Mercado nas Contratações Governamentais, Ed. JML. |
Matéria publicada no jornal Valor Econômico, datada de 26/04/2019[1], dá conta de que o governo Jair Bolsonaro e alguns parlamentares articulam mudanças de última hora no projeto da nova Lei de Licitações — PL 6.814/2017[2] — já aprovado pela comissão especial no fim do ano e que tramitação em regime de urgência no Plenário da Câmara dos Deputados.
Segundo a reportagem, a principal mudança é a retirada da margem de preferência para fornecedores nacionais. Ainda de acordo com a matéria veiculada, “a lei atual estabelece preferência a empresas locais mesmo que seus preços sejam até 20% superiores aos de concorrentes estrangeiros.” Prossegue a matéria indicando que a norma também valeria para fornecedores de outros Estados, no caso de licitações estaduais. A justificativa do Ministério da Economia, conforme dão conta os autores da reportagem, é no sentido que as margens de preferência seriam desastrosas na medida em que “refletem uma postura protecionista e contrariam o discurso de abertura da economia defendido pelo atual governo”.
Penso que a iniciativa seja de ótimo alvitre.
Regras de proteção comercial, em países com baixo desenvolvimento tecnológico (como é o caso do Brasil) tendem a manter estagnado o processo de avanço tecnológico em razão da falta de contato com novas tecnologias desenvolvidas em outros países. Com isso, perde-se competitividade interna e externa. Os mais experientes lembram bem como era o setor de tecnologia da informação ao tempo da reserva de mercado instituído pela Lei nº 7.232/84 (Política Nacional de Informática). A despeito de objetivar a indução de investimentos, o que, na verdade, ocorreu foi o engessamento do desenvolvimento econômico do país e favorecer a pirataria de hardware e software.
A inciativa, por isso, já chega tarde.
Todavia, a matéria parece cometer um pequeno equívoco quanto à existência de regra preferência estadual. Não é verdade que a Lei 8.666/1993 contenha regras de preferência de contratação de empresas entre entes de federação, como faz crer seu autor. A única regra de preferência é a prevista no art. 3, § 2º, da referida norma, cujo rol não inclui tal distinção:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (Redação dada pela Lei nº 12.349, 2010)
§ 2o Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:
I – produzidos ou prestados por empresas brasileiras de capital nacional;
II – produzidos no País;
III – produzidos ou prestados por empresas brasileiras.
IV – produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País. (Incluído pela Lei nº 11.196, de 2005)
V – produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 07 de julho de 2015)
Acredito que a matéria fez confusão com as disposições contidas nos arts. 44, 45, 47 e 48 da Lei Complementar nº123/2006, que assegura o direito de preferência nas contratações públicas, benefício destinado às microempresas e empresas de pequeno porte. Essa medida, visando desenvolvimento econômico local ou regional, penso, não chega a interferir no desenvolvimento tecnológico do País, uma vez que somente é direcionado a contratações de até R$ 80.000,00.
Outro importante ajuste que está sendo proposto é o estabelecimento de um mínimo de 30% para o seguro-garantia em projetos com valor acima de R$ 200 milhões. A matéria afirma que “hoje o mínimo é 20%.
Também se faz necessário pequeno reparo na matéria.
É que o percentual máximo hoje admitido para seguro-garantia (e as demais modalidades de garantia previstas no art. 56, da Lei 8.666/1993) nos contratos públicos é de, no máximo, 5%; já o § 3º do mesmo dispostivo possibilita estendê-lo, excepcionalmente, a 10% nos casos de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto envolvendo alta complexidade técnica e riscos financeiros consideráveis. Nos termos do art. 6º, V da Lei de Regência, considera-se grande vulto o contrato cujo valor exceda 25 vezes o valor limite da modalidade Concorrência, ou seja, somente em contratos com valor superior a R$ 37.500.000,00.
De todo modo, feito o reparo, elevar o limite máximo de garantia para 30% deve ser considerada medida de bom alvitre, sendo, inclusive o parâmetro utilizado nos contratos com recursos do BID, BIRD e Banco Mundial. Isto porque, como é cediço, a garantia de 5% sobre o valor do contrato tem baixíssimo poder de reparação, ante a envergadura dos prejuízos que o descumprimento contratual pode causar para a Administração contratante. Em que pese a possibilidade de causar certa restrição à competitividade, com essa medida, espera-se maior equilíbrio nas relações contratuais, afastando empresas aventureiras. Lembro apenas que a elevação proposta só incidiria em contratos de valor muito elevado, o que justifica um cuidado maior com os riscos inerentes ao negócio.
Por fim, também teria sido incluído no projeto de lei emenda que estabelece prazo máximo para a medição de obras realizadas e reduz o tempo máximo para pagamento às construtoras. A matéria sustenta que, hoje, a lei não fixa prazo para medição das obras “a fim de atestar se foram executadas adequadamente” e que, após isso, o setor público ainda tem 90 dias para pagar.”
De fato, a norma legal não prevê prazo para realização do recebimento provisório (medições), mas tão somente o prazo máximo que o contratado deve suportar para o recebimento definitivo, que é de 90 dias. A matéria traz uma informação um pouco deturpada, a merecer um pequeno ajuste. É que a Administração não tem direito (autorização normativa) a pagar com 90 dias, como diz a matéria.
O prazo fixado para o ato de pagamento é de, no máximo, 30 dias, nos termos do art. 40, XIV, a, da L. 8.666/93; ou, de 5 dias, nos casos de dispensa de licitação em razão do valor (art. 5º , § 3º):
Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte:
(…)
XIV – condições de pagamento, prevendo:
a) prazo de pagamento não superior a trinta dias, contado a partir da data final do período de adimplemento de cada parcela; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
Art. 5o Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42[3] desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada.
(…)
§ 3o Observados o disposto no caput, os pagamentos decorrentes de despesas cujos valores não ultrapassem o limite de que trata o inciso II do art. 24, sem prejuízo do que dispõe seu parágrafo único, deverão ser efetuados no prazo de até 5 (cinco) dias úteis, contados da apresentação da fatura. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998)
Ocorre que, na prática, o atraso de pagamento não superior a 90 dias, nos termos do art. 78, XV, não possibilita ao contratado solicitar a rescisão do ajuste. Ou seja, constitui ilícito contratual por parte da Administração contratante, mas não viabiliza o encerramento do contrato, nem a suspensão das obrigações. Mas, esse atraso gera o dever de pagar a fatura com a devida correção monetária.
Mas, sim, deve ser promovida a mudança de maneira que a Administração Pública não se comporte (de um modo geral) irresponsavelmente. Recentemente, no Rio de Janeiro, a concessionária responsável pelo transporte de lixo para o aterro sanitário de Seropédica (responsável por 80% da demanda da cidade) paralisou a operação em face de atraso em faturas que somavam mais de R$ 70 milhões. Por óbvio que esta situação abala o equilíbrio do contrato, bem como a confiança que o empresariado tem na palavra empenhada pelo gestor público. O que o prefeito fez? Pagou apenas o suficiente para recolocar o contrato com atrasos inferiores a 90 dias.
A redução dessa margem a favor do Estado tende a provocar maior equilíbrio na relação contratual, retirando do mau gestor, as facilidades para falhas de planejamento dessa natureza.
Os gestores públicos devem ser mais responsáveis nas relações contratuais. É regra comezinha de negociação estratégica que o acordo tem que ser satisfatório para ambas as partes. Logo, o contrato não pode ser vantajoso apenas para o Estado. Quanto maior a incerteza do negócio, mais difícil se torna a achar um parceiro, bem como maior será o preço.
No geral, penso que as medidas anunciadas, são de boa valia.