Os Serviços Sociais Autônomos – SSAs vinculados ao sistema sindical, cuja previsão constitucional se materializa por meio do art. 240 da CR/88, desde a publicação do acórdão proferido no Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.570.980-SP, pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 03/03/2020, vêm sofrendo os efeitos de decisões judiciais proferidas em todo o território nacional, determinando a limitação da base de cálculo das contribuições sociais a eles destinadas (contribuições de terceiros).
O objeto da controvérsia da decisão proferida pela Primeira Turma do STJ, se pauta no fato do art. 3º do Decreto-Lei nº 2.318/1986 ter tornado sem efeito a previsão contida no artigo 4º, caput, da Lei 6.950/1981, que previa o limite da base de cálculo das contribuições para previdência social a 20 (vinte) salários-mínimos.
Contudo, conforme entendimento daquele Tribunal Superior, apesar da revogação do caput do artigo, teria restado mantida previsão do seu parágrafo único, ou seja, as contribuições “parafiscais” ainda deveriam sofrer a limitação em suas bases de cálculo.
Diz o artigo 4º da Lei 6.950/1981, revogado tacitamente, verbis:
Parágrafo único – O limite a que se refere o presente artigo aplica-se às contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros.” (grifo nosso)
Por sua vez, diz o artigo 3º do Decreto-Lei nº 2.318/1986, verbis:
Art 3º Para efeito do cálculo da contribuição da empresa para a previdência social, o salário de contribuição não está sujeito ao limite de vinte vezes o salário mínimo, imposto pelo art. 4º da Lei nº 6.950, de 4 de novembro de 1981. (grifo nosso)
Outro resultado não houve, senão o massivo ajuizamento de ações pelas empresas contribuintes, a maioria delas com pedido de tutela de urgência, requerendo a imediata autorização para o recolhimento das contribuições de terceiros tendo a base de cálculo limitada a 20 (vinte) salários-mínimos.
Consequentemente, considerando o volume de ações, somados ao impacto que tais decisões judiciais poderão gerar em relação à própria existência do Sistema S, houve a afetação do tema à sistemática dos recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça, em 18/12/2020, por meio do Tema 1079[1] e a determinação de suspensão dos processos judiciais que versem sobre a matéria, em trâmite em todas as jurisdições do país.
Nessa seara, evidente que ainda não se cuida de matéria de pacífico entendimento, motivo pelo qual é salutar trazer reflexão a respeito da efetiva permanência legal, ou não, da limitação da base de cálculo das contribuições de terceiros, dentre elas, as destinadas ao Sistema S.
Como primeiro ponto argumentativo, tem-se a impossibilidade de revogação de caput do artigo, ainda que tacitamente, e a manutenção de previsão contida em seu parágrafo único, considerando a existência de remissão expressa à redação daquele.
Afinal, conforme critérios de hermenêutica e interpretação legislativa, e da própria língua portuguesa, uma vez extinta (ou revogada) a premissa principal, a premissa acessória a ela vinculada expressamente, deixa de existir, ou ao menos de ter eficácia.
Na situação em voga, o art. 4º, da Lei 6.950/81 tinha como única finalidade limitar o máximo da base de contribuição previdenciária em 20 (salários-mínimos). Portanto, uma vez tornado sem efeito, qualquer vinculação a essa previsão resta prejudicada, por consequência lógica.
Dessa forma, o parágrafo único do referido artigo, que equiparou as contribuições de terceiros às contribuições previdenciárias quanto à limitação da base de cálculo, deixa de ter qualquer capacidade de gerar eficácia, ou seja, de ser aplicado, pois a premissa maior, deixou de existir.
Portanto, apesar de não ter havido a revogação expressa do parágrafo único, do art. 4º, da Lei nº 6.950/81, resta impossível que citado dispositivo continue a produzir efeitos jurídicos, por ausência de parâmetro legal. Afinal, sua razão de ser, depende expressamente do que previa o caput do artigo que, por ter sido revogado, não é mais parâmetro para que gere quaisquer efeitos secundários.
Num segundo ponto argumentativo contrário à limitação da base de cálculo das contribuições de terceiros, tem-se o advento da Lei nº 8.212/91, que, com fulcro na ordem constitucional instaurada pela Carta de 1988, estabeleceu uma nova regulamentação sobre a organização da Seguridade Social, e dispôs amplamente sobre o seu plano de custeio, dedicando todo um capítulo especialmente à normatização do salário-contribuição, in casu, o capítulo IX, além de estabelecer no §5º do artigo 28, um novo valor para o seu limite.
Assim, reafirme-se que, em que pese o art. 3º, do Decreto-Lei 2.318/86, ter revogado o art. 4º, da Lei 6.850/81, e ter eliminado qualquer possibilidade de eficácia de seu parágrafo único, a Lei nº 8.212/91 veio sedimentar a sua total revogação por nova regulamentação integral da matéria, conforme disposto em seu art. 105: “Revogam-se as disposições em contrário.”
Portanto, restou inequívoca a revogação do artigo 4º da Lei 6.950/81, assim como todos os demais normativos sobre a Seguridade Social, no que contrariarem a Lei nº 8.212/91, conforme dispõe o art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657/42: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. (…)”
Como terceira linha de argumentação, ainda que se considerasse a possibilidade de eficácia do parágrafo único, do art. 4º, da Lei 6.950/81, mesmo após a revogação do caput do artigo, é importante destacar a diferenciação trazida pela Constituição Federal a respeito da base de cálculo das contribuições previdenciárias (igualmente aplicada como base de cálculo para as contribuições de terceiros), quanto ao que compete ao empregador e ao que comete ao empregado.
Voltando à redação do art. 4º, caput, da Lei nº 6.950/81, sua redação é clara ao definir o “salário-contribuição” como base de cálculo das contribuições previdenciárias. Assim, por consequência lógica, o parágrafo único estende a limitação dessa base de cálculo (salário-contribuição) às contribuições de terceiros, ou seja, ao Sistema S.
Contudo, é importante destacar, que em relação às contribuições previdenciárias, o “salário-contribuição” é base de cálculo apenas da obrigação que compete aos empregados. Em relação aos empregadores, a folha de salários é a base de cálculo expressamente estabelecida na alínea a, do inciso I, do art. 195, da CR/88, bem como no art. 240, da Carta Magna, no que concerne às entidades integrantes do Sistema S:
Art. 240. Ficam ressalvadas do disposto no art. 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical. (Grifo).
Corroborando as assertivas, destaca-se os incisos I e II do artigo 195 da Constituição Federal , verbis:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, podendo ser adotadas alíquotas progressivas de acordo com o valor do salário de contribuição, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social; (…) (grifo).
Resta evidente que para a Constituição Federal, “folha de salários”, ou seja, o conjunto dos valores pagos ao creditados aos trabalhadores, é a base de cálculo para as contribuições dos empregadores para o custeio da previdência, conforme o inciso I, e o “salário de contribuição” é a base de cálculo das contribuições devidas pelos trabalhadores, consoante o inciso II.
Portanto, ainda que se admitisse a aplicação ao Sistema S, das disposições do artigo 4º, da Lei nº 6.950/81, em especial o seu parágrafo único, afirme-se que tal previsão seria dissonante do disposto na Constituição Federal. Assim, inconstitucional por não recepção, conforme Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[2].
Por fim, a título argumentativo, caso fosse possível considerar a vigência e eficácia do art. 4º, caput e parágrafo único, da Lei nº 6.950/81 no que tange às contribuições ao Sistema S, a única interpretação que se vislumbra razoável, seria aplicação da limitação da base de cálculo em 20 (vinte) salários-mínimos em relação a cada salário de contribuição, individualmente, e não ao total da folha de salários da empresa contribuinte.
Dessa forma, pelos valores atuais, para efeitos de incidência da contribuição de terceiros, haveria uma limitação de cada salário pago aos empregados, em R$ 24.240,00 (vinte e quatro mil e duzentos e quarenta reais), o que não significa dizer que tal limite se aplicaria à toda a base de cálculo das contribuições, estabelecida como a “folha de salários”, diante da diferenciação expressa feita pela Constituição da República.
CONCLUSÃO
Diante do entendimento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.570.980-SP, o Sistema S foi surpreendido com o efeito de massivas decisões a favor da limitação da base de cálculo das contribuições sociais que lhes são destinadas.
O cerne da decisão cinge-se à perda de eficácia do caput do art. 4º, da Lei nº 6.950/81 que limitava a base de cálculo das contribuições previdenciárias, e os efeitos gerados em relação ao seu parágrafo único, que vinculava as contribuições de terceiros também a tal limitação.
Considerando a complexidade da matéria, houve sua afetação à sistemática dos recursos repetitivos, disposta nos artigos 1.036 e seguintes, do Código de Processo Civil.
Assim, embora haja muitos vieses interpretativos sobre o tema, que ainda será objeto de julgamento pelo STJ, sob a ótica do Sistema S, é de argumentar que não deve prosperar qualquer possibilidade de limitação da base de cálculo das contribuições de terceiros.
Afinal, previsão que outrora era dada pelo art. 4º da Lei nº 6.950/81, não mais subsiste, tendo em vista a revogação desse dispositivo, seja pelo art. 3º, do Decreto-lei nº 2.318/86, seja pela revogação por legislação superveniente com o advento da Lei nº 8.212/91.
Outrossim, ainda que assim não fosse, é evidente que a Constituição Federal sepultou qualquer possibilidade de aplicação do art. 4º caput e parágrafo único, da Lei 6.950/81, uma vez que distinguiu a base de cálculo das contribuições sociais quanto ao empregador e quanto ao empregado, em seus artigos 195 e 240.
Nesse sentido, a expressa previsão do art. 4 º, caput, da lei supramencionada, ao trazer como base de cálculo das contribuições previdenciárias, o “salário-contribuição”, na verdade, se referiu às contribuições pagas pelos empregados, e não pelos empregadores.
Afinal, quanto às contribuições pagas por esses, a Carta Magna é expressa quanto ser a “folha de salários” a base de cálculo adequada, previsão essa extensível às contribuições de terceiros, que têm dentre os destinatários, as entidades do Sistema S.
Diante disso, repise-se a necessidade da interpretação dos dispositivos legais em conformidade com a Constituição Federal e, sobretudo, de forma que guardam coerência com a hermenêutica jurídica aplicada ao ordenamento jurídico pátrio, que é posicionamento uníssono e definitivo que se espera do egrégio Superior Tribunal de Justiça.
[1] Tema 1079, STJ: Definir se o limite de 20 (vinte) salários mínimos é aplicável à apuração da base de cálculo de “contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros”, nos termos do art. 4º da Lei n. 6.950/1981, com as alterações promovidas em seu texto pelos arts. 1º e 3º do Decreto-Lei n. 2.318/1986
[2] Art. 34. (…).§ 5º Vigente o novo sistema tributário nacional, fica assegurada a aplicação da legislação anterior, no que não seja incompatível com ele e com a legislação referida nos §3º e § 4º.