Por JML Consultoria[1]
O pregão foi concebido como modalidade de licitação destinada à aquisição de bens e serviços comuns. É como estabelece a Lei nº 10.520/2002, que traçou normas gerais para a modalidade:
“Art. 1º Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta Lei.
Parágrafo único. Consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.” (grifou-se)
Mas, como se observa, o conceito de bens e serviços comuns apresentado no texto legal é indeterminado, o que, inclusive, despertou críticas por parte da doutrina especializada, a exemplo de Marçal Justen Filho, que aduz:
“A solução legislativa não foi a mais feliz. Deve interpretar-se com certa cautela a fórmula constante do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520, quando se refere a objeto ‘cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos em edital’. Ora, todo e qualquer objeto licitado tem obrigatoriamente de ser descrito objetivamente, por ocasião da elaboração do ato convocatório da licitação. Mesmo quando se licitar um bem ou serviço ‘incomum’, especial, singular, haverá a necessidade (e a possibilidade) de fixação de critérios objetivos de avaliação. Ou seja, o que identifica um bem ou serviço ‘comum’ não é a existência de critérios objetivos de avaliação. Quando muito, poderia afirmar-se que um bem ou serviço comum pode ser descrito mais fácil e completamente através de critérios objetivos do que os que não o sejam.”[2] (grifou-se)
Em que pese essa imprecisão legislativa, de uma maneira geral, tanto a doutrina como a jurisprudência pátria estabeleceram as seguintes características para que determinado objeto se enquadre devidamente no conceito de bens e serviços comuns: I) disponibilidade no mercado; e, II) especificações padronizadas.
Segundo entende Marçal Justen Filho, “bem ou serviço comum é aquele que se encontra disponível a qualquer tempo num mercado próprio e cujas características padronizadas são aptas a satisfazer as necessidades da Administração Pública.”[3]
Da mesma forma, Jessé Torres Pereira Junior comenta que bens e serviços comuns “(…) são os bens de aquisição rotineira e habitual, cujas características encontrem no mercado padrões usuais de especificação e envolvendo critérios de julgamento rigorosamente objetivos.”[4]
Válida, também, a lição de Joel Menezes de Niebuhr:
(…) há bens e serviços que podem ser definidos inteiramente por meio de especificações objetivas. Ainda que, a partir de tais especificações objetivas, existam variações técnicas, elas não são importantes ou decisivas para a avaliação de qual a proposta mais vantajosa para o interesse público. Quer dizer que há situações em que à Administração não convém comparar as propostas sob o aspecto técnico, de qualidade.
Nessas situações, que são a maioria, a Administração descreve o bem ou serviço pretendido por ela no edital de modo objetivo, estabelecendo o padrão de qualidade desejado por ela, e no final das contas, como não há variação de qualidade substancial que influa na determinação do que é melhor para o interesse público, ela escolhe a proposta mais vantajosa unicamente com base no preço. Esses bens e serviços, que podem ser definidos no edital de maneira objetiva, sem que variações técnicas sejam importantes ou decisivas para a determinação de qual a proposta melhor contempla o interesse público, são os considerados comuns. Nessa ordem de ideias, bens e serviços comuns comportam julgamento centrado unicamente no preço, sem que seja conveniente à Administração Pública avaliar as propostas por meio de critérios técnicos, dado que eles não são importantes ou decisivos para escolher a proposta que melhor atenda ao interesse público.
Acrescenta-se a isso que o §1º do art. 1º da Lei nº 10.520/02 exige que o desempenho e a qualidade do bem e do serviço comum, além de poderem ser definidos de maneira objetiva no edital, o sejam de acordo com padrões usuais no mercado. Isto é, as especificações utilizadas para definir o desempenho e a qualidade dos bens e serviços comuns devem ser usuais no mercado.
Não basta para qualificar bem ou serviço como comum que ele possa ser especificado objetivamente de modo que eventuais variações técnicas existentes entre os produtos ofertados no mercado que atendam às tais especificações não sejam importantes ou decisivas para a escolha da proposta mais vantajosa para o interesse público. Além disso, para que bem e serviço seja qualificado como comum, é fundamental que tais especificações sejam usuais no mercado.
Noutras palavras, os bens e serviços cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser definidos objetivamente por especificações usuais no mercado são qualificados como comuns e, por consequência, podem ser licitados sob a modalidade pregão. Em sentido oposto, o que não pode ser definido por especificações usuais no mercado não é bem nem serviço comum, e, por consequência deve ser licitado sob as modalidades previstas na Lei nº 8.666/93.[5]
O TCU, ao seu turno, possui o seguinte entendimento sobre os bens e serviços comuns:
“Tais fatos seriam suficientes para caracterizar um ambiente de mercado em que é desejável a realização de pregão para a contratação de serviços. Em assim sendo, independentemente de se tratar ou não de serviço de engenharia complexo, conforme alegado pelo representante, o objeto do certame em análise se incluiria no grupo de serviços considerados comuns, requisito necessário para a contratação via pregão. Isto, porque não é o grau de complexidade do objeto ou a área do conhecimento necessário para produzi-lo que definem se um bem ou um serviço podem ou não ser considerado comum. Para isto, necessário sim haver a possibilidade de que, uma vez descrito, o objeto seja identificável, pelos potenciais prestadores do serviço e pelo contratante, e ainda que este seja ofertado no mercado com características que não variem muito conforme o fornecedor.”[6] (grifou-se)
Portanto, será comum o objeto que, embora sofisticado, não necessite de análise técnica mais acurada e que possa, por isso, ter suas características definidas de forma objetiva no edital, segundo a descrição tradicionalmente encontrada no mercado. O estabelecimento desses padrões permite ao agente público analisar, medir ou comparar os produtos entre si e decidir pelo melhor preço[7].
E, considerando que o texto legal não impõe nenhum outro requisito ou condição para a utilização da modalidade pregão, a rigor, é possível admitir a contratação por tal modalidade licitatória de todo e qualquer objeto que devidamente se enquadre no conceito de bens e/ou serviços comuns (inclusive, obras e/ou serviços de engenharia).
Porém, a questão sempre gerou certa divergência, na medida em que, ao se regulamentar a matéria no campo infra legal, muitos atos normativos das diversas esferas ou acabaram vedando expressamente a sua utilização para obras e serviços de engenharia ou restaram silentes quanto a essa possibilidade.
Diante disto, após muita discussão a respeito, a doutrina e jurisprudência pátrias sedimentaram seu entendimento de que a utilização do pregão para a contratação de serviços comuns de engenharia encontra amparo no próprio texto da Lei nº 10.520, citando-se, como exemplo, a Súmula 257/2010 do TCU:
“SÚMULA Nº 257
O uso do pregão nas contratações de serviços comuns de engenharia encontra amparo na Lei nº 10.520/2002.”
Logo, a utilização do pregão para a contratação de serviços comuns de engenharia já é há tempos admitida. Assim, sendo um serviço de engenharia qualificado como comum (cuja classificação depende de exame fático e de natureza técnica, o que exige, portanto, acurada pesquisa de mercado com o intuito de identificar se as especificações são, de fato, usuais), possível será a adoção do pregão[8] como modalidade licitatória para a sua contratação.
Para obras, no entanto, a utilização do pregão sempre foi vedada.[9] E a Nova Lei de Licitações – Lei nº 14.133/2021 manteve tal vedação ao dispor o seguinte:
“Art. 2º Esta Lei aplica-se a:
(…)
VI – obras e serviços de arquitetura e engenharia;
(…)
Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
(…)
XII – obra: toda atividade estabelecida, por força de lei, como privativa das profissões de arquiteto e engenheiro que implica intervenção no meio ambiente por meio de um conjunto harmônico de ações que, agregadas, formam um todo que inova o espaço físico da natureza ou acarreta alteração substancial das características originais de bem imóvel;
(…)
XXI – serviço de engenharia: toda atividade ou conjunto de atividades destinadas a obter determinada utilidade, intelectual ou material, de interesse para a Administração e que, não enquadradas no conceito de obra a que se refere o inciso XII do caput deste artigo, são estabelecidas, por força de lei, como privativas das profissões de arquiteto e engenheiro ou de técnicos especializados, que compreendem:
a) serviço comum de engenharia: todo serviço de engenharia que tem por objeto ações, objetivamente padronizáveis em termos de desempenho e qualidade, de manutenção, de adequação e de adaptação de bens móveis e imóveis, com preservação das características originais dos bens;
b) serviço especial de engenharia: aquele que, por sua alta heterogeneidade ou complexidade, não pode se enquadrar na definição constante da alínea ‘a’ deste inciso;
XXII – obras, serviços e fornecimentos de grande vulto: aqueles cujo valor estimado supera R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais);
(…)
XXXVIII – concorrência: modalidade de licitação para contratação de bens e serviços especiais e de obras e serviços comuns e especiais de engenharia, cujo critério de julgamento poderá ser:
a) menor preço;
b) melhor técnica ou conteúdo artístico;
c) técnica e preço;
d) maior retorno econômico;
e) maior desconto;
(…)
XLI – pregão: modalidade de licitação obrigatória para aquisição de bens e serviços comuns, cujo critério de julgamento poderá ser o de menor preço ou o de maior desconto;
(…)
XLV – sistema de registro de preços: conjunto de procedimentos para realização, mediante contratação direta ou licitação nas modalidades pregão ou concorrência, de registro formal de preços relativos a prestação de serviços, a obras e a aquisição e locação de bens para contratações futuras;
(…)
Art. 29. A concorrência e o pregão seguem o rito procedimental comum a que se refere o art. 17 desta Lei, adotando-se o pregão sempre que o objeto possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado.
Parágrafo único. O pregão não se aplica às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia, exceto os serviços de engenharia de que trata a alínea ‘a’ do inciso XXI do caput do art. 6º desta Lei.
(…)
Art. 85. A Administração poderá contratar a execução de obras e serviços de engenharia pelo sistema de registro de preços, desde que atendidos os seguintes requisitos:
I – existência de projeto padronizado, sem complexidade técnica e operacional;
II – necessidade permanente ou frequente de obra ou serviço a ser contratado.” (grifou-se)
Vê-se, portanto, que a modalidade de licitação a ser utilizada para a contratação de obras é a concorrência. A nova lei até admite a utilização do Sistema de Registro de Preços para obras padronizáveis, mas mesmo nessa hipótese a modalidade cabível será a concorrência.
Destarte, tem-se que a contratação de obras, não podem ser feitas através de pregão, já que tal modalidade não se aplica a contratação deste objeto (obras), ainda que se utilize de modo de execução padronizado pelo mercado.
[1] Texto elaborado pelos consultores da JML.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão (Comentários à legislação do pregão comum e eletrônico). 5. ed. São Paulo: Dialética, 2009. p. 36.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão…, 37.
[4] JUNIOR, Jessé Torres Pereira. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. São Paulo, Renovar, 2003. p. 1.005.
[5] NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão Presencial e Eletrônico. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 50-51.
[6] TCU. Acórdão 1.039/2010. Plenário.
[7] “Melhor preço não é tipo de licitação. É terminologia normalmente utilizada para definir o tipo menor preço conjugado com os fatores qualidade, durabilidade, funcionalidade, desempenho, dentre outros”. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações e contratos: orientações e jurisprudência do TCU. 4. ed. rev., atual. e ampl. – Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 2010, p. 109.
[8] O pregão será afastado para serviços especiais, assim entendidos aqueles que apresentem alta heterogeneidade (ou seja, não há padronização) ou complexidade técnica. Agora, é preciso esclarecer que a complexidade técnica que afasta o uso do pregão é apenas no caso de não existir padronização no mercado, porquanto é possível, ao menos em tese, um objeto ser complexo e comum ao mesmo tempo, desde que referida complexidade tenha sido padronizada à luz de especificações usuais no mercado, na linha do que já decidiu o TCU: “A identificação do bem ou serviço como sendo comum, para fim de adoção do pregão, independe da sua complexidade. É a definição objetiva dos seus padrões de desempenho e qualidade, mediante especificações usuais no mercado, que o caracteriza como comum”. TCU. Acórdão 1667/2017. Plenário.
[9] “[SUMÁRIO] 1. A modalidade de licitação pregão não deve ser utilizada para contratação de obras, sendo permitida nas contratações de serviços comuns de engenharia.” TCU. Acórdão 980/2018. Plenário.