LICITAÇÃO. PROPOSTA. DESCLASSIFICAÇÃO. AMOSTRA. LAUDO. CERTIFICAÇÃO. DESCONFORMIDADE. DILIGÊNCIA.
Na hipótese de a certificação de qualidade ou o laudo exigido para o fornecimento do produto estar em desconformidade com a amostra apresentada pelo licitante, cabe ao pregoeiro diligenciar para que seja apresentado o documento correto, em vez de proceder à desclassificação da proposta, sobretudo quando há considerável diferença de preços entre esta e a dos licitantes subsequentes. Nesse caso, não há alteração na substância da proposta, pois o novo laudo apenas atesta condição preexistente do produto ofertado, que já se encontrava intrínseca na amostra. (Acórdão 1.445/2022 Plenário, Rel. Min. Augusto Sherman)
Introdução
A exigência de amostra do produto como critério de aceitabilidade de proposta nas licitações públicas não é novidade, sendo que há muito o Tribunal de Contas da União estabilizou tal procedimento:[1]
Na etapa de julgamento das propostas, amostras e protótipos dos produtos cotados podem ser solicitados. Quando não se encontrarem de acordo com as exigências da licitação, devem as propostas ser desclassificadas. É necessário que a exigência de amostras ou protótipos esteja previamente estabelecida no ato convocatório, acompanhada de critérios de julgamento estritamente objetivos.
Por ocasião do julgamento do caso que culminou no Acórdão nº 2.300/2007, Plenário, no qual o Tribunal de Contas da União, reconheceu a possibilidade de os editais de licitação indicar marca referência, entendeu ainda que se poderia exigir laudo emitido por laboratório ou instituto idôneo com o fim de aferir o desempenho, qualidade e produtividade compatível com o produto similar ou equivalente à marca referência mencionada no ato convocatório. Mais tarde, aprimorando a ideia, veio a fixar o seguinte entendimento:
Quando necessária a apresentação de laudos técnicos para assegurar a qualidade do objeto licitado, limite-se a exigi-los na etapa de julgamento das propostas, e apenas do licitante provisoriamente classificado em primeiro lugar, conferindo-lhe prazo suficiente para obtê-los (Ac. 1677/2014, Plenário).
Assim, não é controversa a possibilidade de editais de licitação, desde que justificadamente com fulcro em razões técnicas, exijam dos licitantes laudos de compatibilidade ou que atestem desempenho e qualidade requeridos no ato convocatório, a fim de resguardar a Administração do risco da compra de produtos que não atendam satisfatoriamente o interesse público.
Por lado outro, é bastante cediço que os critérios de aceitabilidade de proposta uma vez fixados no edital vinculam a Administração e os licitantes. Não admitem flexibilização, ou seja, não podem ser criados no momento do julgamento, tampouco dispensados caso estabelecido no regulamento. Daí porque, o precedente alvo destes comentários merece especial atenção, por emprestar interpretação mais moderna e se tornar verdadeira baliza para julgamentos futuros.
O caso concreto
Cuidou-se a hipótese de representação (art. 113, §1º, da Lei nº 8.666/1993) na qual a empresa interessada noticia supostas irregularidades praticadas na condução do Pregão Eletrônico para Registro de Preços 37/2020, promovido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), cujo objeto seria a aquisição de uniformes (vestimentas operacionais profissionais) personalizados.
Naquele certame, a licitante, provisoriamente classificada em primeiro lugar, deveria apresentar amostras do produto ofertado acompanhado dos respectivos laudos atestando a aderência às especificações técnicas previstas no termo de referência. Para efeito de classificação da sua proposta, a representante apresentou o referido laudo acompanhado de amostra do produto, a qual foi considerada desconforme.
A Representante (Recorrente), investe contra a desclassificação da sua proposta, argumentando que as diferenças havidas entre as suas amostras apresentadas e aquelas utilizadas na elaboração do Relatório de Biomecânica, seriam insignificantes e irrisórias. Sustentou ainda que não havia divergência dos seus produtos com o edital do certame. Em sua peça, a Representante destacou que a diferença entre os seus preços e aqueles ofertados pelas licitantes vencedoras era de aproximadamente R$ 18 milhões.
A instrução dos autos considerou que, de fato, a licitante teria apresentado amostra e laudo discrepantes e, inicialmente, não admitiu a divergência; posteriormente, ao reconhecê-la, persistiu em alegar que as diferenças entre o produto apresentado e o certificado eram insignificantes. Nesse ponto, a unidade técnica deu razão ao MJSP que não acolheu essa última alegação ante as informações do instituto emissor do citado laudo técnico no sentido de que as alterações no produto demandavam a realização de nova análise e certificação.
Entretanto, entendeu-se que o pregoeiro agiu com formalismo exagerado contrariando o interesse público e o princípio da razoabilidade. Segundo a instrução, constatada a divergência entre a amostra e o laudo, poderia ter o pregoeiro diligenciado à licitante para que esta apresentasse o laudo correto, tendo em vista que o valor da proposta da empresa era mais de R$ 18 milhões inferior ao preço das propostas que acabaram vencendo o certame. E, considerando a possibilidade de futuras adesões à ata, a economia poderia chegar a mais de R$ 36 milhões. O Relator do caso assim se manifestou, em conclusão:
Considerando que a amostra era o produto que seria fornecido e que houve claro equívoco na apresentação do laudo correspondente, caberia ao pregoeiro apontar expressamente a desconformidade e diligenciar para que fosse apresentado o documento correto. Nesse caso, não haveria alteração na substância da proposta, pois o novo laudo viria apenas atestar condição preexistente do produto ofertado, que se encontrava corporificado na amostra. Essa situação se afigura bastante próxima daquela descrita no Acórdão 1211/2021-TCU-Plenário.
Acrescentou, por fim, que, ainda que não fosse assim, “o interesse público também justificaria seguir por uma linha de ação mais assertiva por parte do pregoeiro ante a considerável economia de recursos que se poderia obter na contratação.”
Penso que o precedente destaca dois importantes pontos de debate. A possibilidade de correção de erro na apresentação da proposta, com vinda de “documento novo”; e, a possibilidade de saneamento de defeitos na proposta (e na habilitação) quando a proposta vencedora, ainda que apresente tais falhas, esteja em valor muito inferior às demais classificadas.
Passemos, pois, aos pontos.
Comentários
A questão relacionada à possibilidade de correção de defeitos na habilitação e na proposta não é um debate recente e vem evoluindo, inclusive, com normas mais flexíveis nesse sentido. Fico muito à vontade em afirmar que acabou o tempo em que os licitantes se engalfinhavam nas licitações, menos pelo preço e mais por esmiuçarem documentos e propostas a fim de encontrar alguma filigrana que pudesse dar suporte à inabilitação e desclassificação de seus concorrentes. Hodiernamente, não se discute mais se é ou não possível a dispensa do excesso de rigor na avaliação das propostas e da documentação de habilitação, mas apenas quais são seus limites.
A temática avançou (oxalá!) tanto que até o conceito de “documento novo” (art. 43, § 3º, in fine, da Lei nº 8.666/1993) já foi objeto de críticas e de superação pela Corte Federal de Contas, quando do julgamento que resultou no Acórdão nº 1.211/2021, Plenário[2], aliás, citado pelo Relator do caso em tela em suas razões de decidir. Atualmente, já não há dúvida no sentido de que configura verdadeiro poder-dever do julgador do certame, corrigir as falhas sanáveis em propostas e habilitações.
Vertendo para o caso ora em exame, mais uma vez o TCU vem afirmar esse poder-dever, agora em relação a um critério de aceitabilidade de proposta que até pouco tempo atrás não se admitia saneamento. Veja-se que, no caso concreto, a desclassificação se deu pelo fato de que a amostra apresentada ao Pregoeiro era diversa daquela apresentada ao instituto que elaborara o laudo de compatibilidade. Em princípio, a decisão do Pregoeiro pela desclassificação seria correta, considerado os termos literais do edital. Mas a Corte de Contas entendeu que, no caso, havia espaço para saneamento, tendo por fundamento, uma expressão constante do art. 64, §1º, da Lei nº 14.133/2021:
Art. 64 […]
§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação. (GN)
Para o correto entendimento e compreensão da extensão da decisão em tela, faz-se mister rememorar os comentários que fiz ao precedente acima citado.
O Tribunal, no julgamento do Acórdão nº 1.211/2021, ao analisar os limites das diligências que poderiam ser empreendidas pelo julgador do certame, aplicou interpretação extensiva na parte final do §3º, do art. 43 da Lei nº 8.666/1993, cujo teor é o seguinte: “…vedada a inclusão de informação ou documento que deveria constar originariamente na proposta”. Entendeu que não seria considerado “documento novo” aquele que, mesmo ausente, se referisse a condição pré-existente à apresentação do referido documento. Por “substância”, portanto, deve ser entendido que é o elemento que não caracteriza situação pré-existente.
A correção de defeitos na proposta, por se tratar de um documento de natureza constitutiva, encontra limite em seu próprio conteúdo material. Não será possível empreender uma correção que viesse alterar ou possibilitar a alteração do conteúdo da proposta, como por exemplo, indicar nova marca do produto, ou condição de execução.
Dito isto, o primeiro ponto que vamos abordar é se é possível promover correção e salvar a proposta vencedora defeituosa em razão desta se apresentar em valor muito inferior às demais classificadas. Penso que não.
O fato de a proposta vencedora estar situada em patamar muito inferior não pode se tornar referência para saneamento pelo fato de que, não raro, o mergulho no preço se dá de forma irresponsável (inexequível) ou porque o produto ofertado não atende às especificações técnicas delineadas no edital.
Portanto, mesmo considerando grande a diferença de preços, este, de per si, não pode determinar a dispensa de formalidades ou requisitos fixados no edital. O interesse público não se atende apenas pelo valor baixo da contratação; mas sim, pela contratação mais vantajosa, esta considerada aquela que oferece à Administração produtos/serviços com a qualidade desejável pelo preço justo.
Quanto à aceitação de “documento novo” o Tribunal, conforme já explicitado acima, somente considera ilegítima sua aceitação para o fim de saneamento de defeito na proposta diante da hipótese de o fato de o indigitado documento vir a alterar a “substância” da proposta, ou seja, constituir inovação em seu conteúdo.
No caso examinado, a empresa apresentou, junto com a proposta, uma amostra do produto cotado, sendo que o laudo que o acompanhava dizia respeito a um outro produto, mesmo que com pequena variação técnica, mas que demandava nova análise e expedição de novo laudo. Note-se que neste caso, o novo laudo não alteraria a “substância” da proposta vencedora, pois iria analisar as adequações técnicas daquele produto.
Perceba-se também que a possibilidade de se exigir do licitante laudo de compatibilidade técnica está atrelada a dois requisitos, conforme entendimento já solidificado no TCU: que essa exigência seja dirigida apenas ao licitante vencedor da fase competitiva; e, que seja oferecido tempo razoável para sua apresentação. Ou seja, o laudo, em qualquer hipótese, sempre será um “documento novo”, pois somente será expedido após a confirmação da proposta vencedora na fase de lances. Mesmo que não tivesse sido apresentado, o Pregoeiro poderia (deveria) ter dado prazo para a complementação da proposta, visando aproveitar a que se mostrava mais vantajosa no momento.
Agentes de e Comissões de Contratação e Pregoeiro devem ficar cada vez mais atentos ao desapego ao excesso de formalismo. As regras do edital não podem ser interpretadas como tendo finalidade em si mesmas. Devem tutelar um bem jurídico que importe em atendimento ao interesse público, sem violar diretos de terceiros e a segurança jurídica do processo.
*Luiz Claudio de Azevedo Chaves é Administrador e Jurista, pós-graduado em Direito Administrativo. Diretor da Divisão de Planejamento, Orçamento e Cotação do Departamento de Engenharia e Membro do Grupo de Trabalho para implantação da nova lei de licitações e contratos no Tribunal de Justiça/RJ, de onde é servidor de carreira, com mais de 30 anos de serviço. É Professor Convidado da Fundação Getúlio Vargas-FGV/PROJETOS e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-RIO, além de diversas instituições de ensino e Escolas de Governo do País, dentre as quais destacam-se: Escola Nacional de Administração Pública – ENAP, Escola de Administração Judiciária – ESAJ/TJRJ, Escola Nacional de Serviços Urbanos – ENSUR/IBAM. Autor, dentre outras, das seguintes obras: Curso Prático de Licitações, os segredos da Lei 8.666/93, Lumen Juris, 2011; Licitação Pública, Compra e Venda governamental Para Leigos, Alta Books, 2016; Gerenciamento de Riscos nas Aquisições e Contratações de Serviços da Administração Pública, ed. JML, 2020; e, A Atividade de Planejamento e Análise de Mercado nas Contratações Governamentais, 2ª. ed. Fórum, 2022. É articulista nos principais periódicos especializados em Licitações e Contratos, destacando-se, dentre eles a Revista do Tribunal de Contas da União-RTCU; Revista dos Municípios-IBAM; Fórum de Contratações e Gestão Pública-FCGP/FÓRUM
[1] Licitações e Contratos – Orientações e Jurisprudência do TCU, 4ª. Ed., pag. 219.
[2] Fiz comentários a esse precedente, os quais se encontram no endereço https://blogjml.com.br/?area=artigo&c=95039a12d02af2a571e00bc4d1bf9dde