Na contratação de serviços de TI por empresa estatal, a inexistência de critérios de aceitabilidade de preços unitários em licitação do tipo menor preço global afronta o art. 56, § 4º, da Lei 13.303/2016. Nesse caso, eventuais acréscimos nos itens com sobrepreço durante a execução do contrato caracterizarão “jogo de planilha”, com potencial dano ao erário e consequente obrigação de reparação por parte daqueles que lhe derem causa.
A discussão sobre a obrigatoriedade ou não de fixação, em editais de licitação, de critérios de aceitabilidade de preços unitários e global não é recente. Ainda ante o regime jurídico instituído pela Lei nº 8.666/1993, muitos e acalorados debates eram propostos acerca do disposto em seu art. 40, X.[1]que, em leitura fria, indicava que tais critérios seriam elementos obrigatórios em qualquer edital de licitação. Nada obstante, o Tribunal de Contas da União chegou a conclusão diversa desse entendimento, fixando a seguinte posição:
Súmula TCU 259: Nas contratações de obras e serviços de engenharia, a definição do critério de aceitabilidade dos preços unitários e global, com fixação de preços máximos para ambos, é obrigação e não faculdade do gestor.
Vê-se que a Corte Federal de Contas flexibilizou a letra da lei, deixando ao alvedrio do gestor, a cada caso concreto, decidir pelo estabelecimento ou não dessas premissas de julgamento de proposta para os casos que não envolvessem obras ou serviços de engenharia. Há uma razão clara para esse deslinde. É que nas obras e serviços de engenharia, o fantasma do superfaturamento é muito presente, pois, como são objetos cujo custo é o resultado do somatório de diversos componentes de custos precificáveis individualmente, quando julgados pelo critério de menor preço global, a proposta se torna uma verdadeira “porteira fechada”, abrindo espaço para o que, em sede de gestão de riscos das contratações convencionou-se chamar de comportamento oportunista do agente fornecedor ex ante”. Tal comportamento é a hedionda prática do “jogo de planilha”.
Segundo explica Marcus Vinicius Campiteli[2], tal prática se reveste em um artifício utilizado pelos licitantes que reduzem drasticamente os preços de determinados custos unitários e elevam os custos de outros, de modo que esse movimento compensatório não eleve o valor global da proposta acima do valor estimado da contratação. Acrescenta o autor que, como consequência, a licitante, ao vencer a licitação e celebrar o contrato:
[…] após as alterações contratuais já previstas pelo vencedor do certame no momento da elaboração da proposta, o valor global do objeto contratual passa a encarecer em relação ao seu valor de mercado, podendo tornar-se a proposta mais desvantajosa para a Administração entre as demais da licitação.Também de forma didática, o TCU[3] explica o que vem a ser o “jogo de planilha”, verbis:
O “jogo de planilha”, mecanismo espúrio verificado na contratação de algumas obras públicas, normalmente funciona assim: na licitação, a empreiteira cota determinados itens de serviço da obra muito acima do mercado, enquanto outros são oferecidos a preços bastante abaixo; como os preços unitários altos e baixos se compensam, o valor global da obra fica dentro da expectativa do contratante; depois de contratada, a empreiteira se aproveita de modificações nos serviços, forçadas ou por deficiência do projeto, as quais irão reduzir os itens mais em conta ou aumentar os mais caros, ou mesmo fazer as duas coisas; o resultado é que os itens mais caros prevalecem no contrato, distorcendo a proposta original, com elevação do preço da obra.
Considerando, portanto, que nas propostas para contratação de obras e serviços de engenharia, o risco da prática desse subterfúgio tem elevada probabilidade e que o impacto decorrente do superfaturamento é extremamente danoso para a administração, faz-se mister que o edital preveja mecanismo que impossibilite esse agir inescrupuloso do proponente. A forma mais eficaz de se combater esse risco é justamente estabelecer critérios de aceitabilidade em relação aos preços unitários. É fácil entender o porquê. Como o “jogo de planilha” depende de uma compensação entre itens com preços reduzidos e outros com sobrepreço, ao ser imposta a limitação de preços máximos unitários, ainda que o licitante “mergulhe” no preços de alguns itens, não terá como compensá-los com a elevação de outros, porquanto limitado ao valor máximo estipulado. Essa condição, por óbvio, inibe tal prática, afastando o risco do superfaturamento.[4]
O caso acima examinado pelo TCU guarda a peculiaridade de ter, como regime jurídico, a Lei nº 13.303/2016 — Lei das Estatais. Nela, há disposição clara no sentido da obrigatoriedade da adoção de critérios de fixação de preços unitários e globais para casos além das obras e serviços de engenharia:
Art. 56. Efetuado o julgamento dos lances ou propostas, será promovida a verificação de sua efetividade, promovendo-se a desclassificação daqueles que:
[…]§ 4º Para os demais objetos, para efeito de avaliação da exequibilidade ou de sobrepreço, deverão ser estabelecidos critérios de aceitabilidade de preços que considerem o preço global, os quantitativos e os preços unitários, assim definidos no instrumento convocatório.
O caso em tela se referiu a uma contratação de serviços de contínuos de suporte técnico remoto e presencial para usuários de soluções de tecnologia da informação e comunicação (TIC), em âmbito nacional, no valor total estimado de R$ 32.692.861,88, promovida pela NAV Brasil – Serviços de Navegação Aérea S/A. A referida licitação previa cinco itens distintos de serviços de help desk, a serem contratados de forma global, conforme descrito pelo Ato convocatório[5]. O regime de execução dos serviços também seria por empreitada por preço global, ou seja, o pagamento não estaria atrelado à medição da quantidade efetivamente executada, mas remunerado de forma fixa, vinculada à correspondência de atendimento ao IMR, o que sujeitaria a contratada a glosas em caso de desconformidade.
Da forma como foi pensada licitação, sem dúvida, o espaço para a prática do jogo de planilha era significativo. A proponente, por atuar no segmento econômico e ter amplo conhecimento das características e desdobramentos dos serviços que seriam prestados, poderia facilmente calcular em quais itens ela poderia obter maior ganho, elevando o seu valor e outros nos quais ela poderia oferecer vantagens em termos de preço sem que com isso viesse a amargar prejuízos.
O Relator do caso entendeu que haveria a possibilidade de ocorrência de “jogo de planilha”, ocasionada pela ausência de critérios de aceitabilidade de preços unitários na licitação, mormente pela falha no quantitativo estimado, que tomou, por base, histórico que poderia não refletir a situação futura da empresa pública, considerando a vigência inicial estabelecida de trinta meses para o contrato.
Impende destacar que a prática do “jogo de planilha”, por si só, não significa necessariamente um prejuízo. Na medida em que o valor global está vantajoso em razão do balanço entre vantagens (itens com preços baixos) e desvantagens (itens com sobrepreço), em tese, não haveria que se falar em prejuízo para a Administração contratante. Assim já decidiu o próprio Tribunal de Contas da União[6]:
Enunciado: Não há que se falar em sobrepreço em determinados serviços constantes das planilhas de preços unitários contidas nas propostas das licitantes se os preços globais estão dentro dos limites aceitáveis dados pelos orçamentos das licitações.
O problema pode ocorrer diante de eventuais alterações contratuais, que, caso venham a ser implementadas, com supressão dos quantitativos cujos preços estavam baixos e acréscimos naqueles que continham sobrepreço, a Administração contratante se veria diante da prática do superfaturamento.
Justamente por essa razão que o TCU houve por bem, no caso concreto, não anular o certame, considerando que o risco de superfaturamento estaria mitigado pelo fato de que o aumento da demanda se mostrar improvável, diante de limitação imposta por Portaria do MGI, o que retiraria da direção da empresa pública a discricionariedade, por exemplo, de aumento no seu quadro de pessoal, o que poderia viabilizar o superfaturamento. No entanto, determinou que fossem adotadas medidas para que no futuro sejam evitados prejuízos decorrentes da ausência de critérios de aceitabilidade de preços unitários. Aliás, essa orientação já fora dirigida em caso análogo anteriormente tratado pelo órgão de controle externo:
[…] 9.3. com fundamento no art. 43 da Lei 8.443/1992, determinar ao DNIT que: […] 9.3.9. mantenha, com vistas a evitar a ocorrência de ‘Jogo de Planilhas’ nos contratos apreciados neste processo, sob pena de responsabilização dos agentes envolvidos, estrita observância ao equilíbrio dos preços fixados nesses contratos em relação às vantagens originalmente ofertadas pelas empresas e/ou consórcios contratados, impedindo-se, assim, que, por meio de termos aditivos futuros, o acréscimo de itens com preços supervalorizados ou eventualmente a supressão ou a modificação de itens com preços depreciados viole princípios administrativos;[7]Nesse contexto, uma das medidas saneadoras desse possível efeito é a adoção do método do balanço, que consiste na repactuação de preços de itens unitários ao tempo dos aditivos, nos casos em que o edital não fixou preço máximo unitário. Estando o preço global no limite aceitável, dado pelo orçamento da licitação, os eventuais sobrepreços existentes apenas causam prejuízos quando se acrescentam quantitativos aos itens de serviço correspondentes, porque, até esse momento o valor contratado representava o equilíbrio entre preços altos e baixos, apesar do vício de origem. Mas com o aumento dos quantitativos, as propostas se tornariam desequilibradas, daí a necessidade do ajuste.[8]
Em suma, sempre que o objeto do serviço for constituído por itens unitários, ainda que julgada pelo critério de menor preço global e executada no regime de contratação de empreitada por preço global, deve a Administração fixar critérios de aceitabilidade de preços máximos globais com o fito de evitar a prática do “jogo de planilha”.
Não tendo formulado tais critérios, por falha no planejamento ou por impossibilidade técnica, deve-se prever no Termo de Referência cláusula que permita a aplicação do método do balanço, caso ocorra aditamentos contratuais por acréscimos quantitativos em itens unitários que apresentem sobrepreço.
[1] Lei nº 8.666/1993, Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte: […] X – o critério de aceitabilidade dos preços unitário e global, conforme o caso, permitida a fixação de preços máximos e vedados a fixação de preços mínimos, critérios estatísticos ou faixas de variação em relação a preços de referência, ressalvado o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 48;
[2] CAMPITELI, Marcus Vinícius in Medidas para evitar o superfaturamento decorrente do “jogo de planilha” em obras públicas. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/medidas-para-evitar-o-superfaturamento-decorrente-dos-jogos-de-planilha-em-obras-publicas.htm Acessado em 19/06/2024.
[3] BRASIL, Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 1.588/2005, Plenário, Rel. Min. Marcus Vinícius Vilaça, julg. em 05/10/2005.
[4] Lógico que essa medida somente será efetiva se a estimativa de preços estiver dentro da realidade do mercado e de acordo com as bases oficiais de preços de obras e serviços de engenharia (SINAPI/SICRO/EMOP etc). Se o valor estimado já estiver com sobrepreço, o que pode ocorrer por falha de projeto ou mesmo quebra de integridade do agente público, essa medida perde efetividade.
[5] Pregão eletrônico nº 43/2023/VAV Brasil. Disponível em: https://licitacoes.navbrasil.gov.br/?r=/download&path=L0xpY2l0YcOnw7Vlcy8yMDIzIC0gUFJFR8OVRVMgRUxFVFLDlE5JQ09TLzIwMjMgMDQzL0xJQyAyMDIzIDA0MyAtIEVkaXRhbF9TdXBvcnRlX1RJQ18xMS4xMi4yMDIzLnBkZg%3D%3D Acessado em 19/06/2024.
[6] BRASIL, Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 2.046/2008, Plenário. Rel. Min. Ubiratan Aguiar, julg. em 19/09/2008.
[7] Op. Cit.
[8] Nesse sentido, vide BRASIL, Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 1.684/2003. Rel. Min. Marcos Vinicius Vilaça, julg. em 12/11/2003