LICITAÇÃO. QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. EXIGÊNCIA. ESTATAIS. LIMITES E APLICAÇÃO EXTENSIVA DA LEI 8.666/93 COMBINADA COM A LEI 6.839/1980 À LEI 13.303/16. ACÓRDÃO Nº 2.615/2021 – TCU – PLENÁRIO

O Acórdão 2.615/21 do Plenário do TCU, dentre diversos temas relativos às licitações públicas, enfrenta a questão da qualificação técnica, mais especificamente trata da possibilidade e dos limites de exigências relativas ao registro em entidades de fiscalização de profissões, no âmbito das estatais. A decisão ainda se destaca por consolidar a jurisprudência do TCU acerca do tema e por enfatizar a interpretação extensiva da Lei 8.666/93 à Lei 13.303/16.  

Temos no caso concreto, resumidamente, uma estatal que estipulou em edital a necessidade de as empresas interessadas em participar do seu certame comprovarem suas aptidões técnicas mediante a apresentação de registro no CRECI, e também no CREA ou CAU. No entanto, uma das empresas entendeu ilegal o duplo registro e resolveu questioná-la no TCU, sob um primeiro argumento de que a estatal deveria “interpretar as citadas exigências como sendo alternativas (comprovação de registro ou no CREA, ou no CRECI, ou no CAU), e não como requisitos cumulativos”, ou deveria “manter a opção de registro no CREA ou no CAU, excluindo a previsão de inscrição no CRECI, por não ser esse último o órgão de fiscalização profissional pertinente à atividade básica subjacente ao objeto licitado.” Além disso, sob um segundo argumento, alegou que a regra editalicia transgredia a jurisprudência da Corte de Contas, que está alinhada e encontra respaldo na Lei 6.839/80, que dispõe sobre o registro de empresas nas entidades fiscalizadoras do exercício de profissões.

A estatal, por sua vez, prestando as informações solicitadas pela Secretaria de Controle Externo de Aquisições Logística do TCU (SELOG) do TCU, alegou que o duplo registro exigido em edital se deu para resguardar a competição e atrair participantes melhores qualificados. Ademais, respondendo outro questionamento, informou que em contratações anteriores com o mesmo objeto apenas foi solicitado o registro no CRECI, definido, naquele momento, como órgão legalmente competente para promover a fiscalização de serviços de consultoria imobiliária objeto da licitação.

Diante dessa síntese fático-jurídica, recordamos que a finalidade da qualificação técnica nas licitações públicas é assegurar que o licitante tem, enquanto organização empresarial, competência estrutural, administrativa e organizacional para executar satisfatoriamente o objeto contratual pretendido.

Para tanto, no âmbito da Lei 8.666/93, o art. 30 expressamente elenca os documentos que podem ser previstos em edital, dentre os quais o registro ou inscrição na entidade profissional competente (inc. I do art. 30). No âmbito da Nova Lei (Lei 14.133/21), a comprovação deve se dar, nos termos do art. 67, também mediante a apresentação dos documentos ali taxativamente elencados, dentre os quais: registro ou inscrição na entidade profissional competente, quando for o caso; (art. 67, inc. V).

Especificamente, no campo das estatais, que nos interessa para fins desses comentários, a qualificação técnica também é um critério de habilitação e está regulamentada no art. 58, inc. II da Lei 13.303/16, que assim dispõe:

Art. 58. A habilitação será apreciada exclusivamente a partir dos seguintes parâmetros:

(…)

II – qualificação técnica, restrita a parcelas do objeto técnica ou economicamente relevantes, de acordo com parâmetros estabelecidos de forma expressa no instrumento convocatório;

Interpretando a regra acima à luz do caso concreto apresentado, observamos que para as estatais a qualificação técnica a ser exigida deve se limitar a parcelas do objeto técnica ou economicamente relevantes, cabendo ao edital fixar os documentos necessários. Salutar pontuarmos, então, que o art. 58, inc. II da Lei das Estatais ao mesmo tempo que reforça o preceito constitucional (art. 37, inc. XXI), se afasta da norma geral (art. 30 I da Lei 8.666/93), que regulamentou melhor o assunto. Logo, diferentemente da Lei 8.666/93, que já prevê quais os critérios e documentos que podem ser empregados no edital para verificar a aptidão técnica, como é o caso da inscrição em entidade profissional competente; a Lei 13.303/16 é ampla e delega à empresa estatal o poder discricionário de decidir sobre a melhor forma de comprovação no momento de elaboração do edital.

A abertura dos parâmetros previstos no art. 58 da Lei 13.303/21 já foi analisada pela doutrina, que, inclusive, alertou acerca da possibilidade de gerar dificuldades operacionais, tal como ocorre no fato examinado no presente acórdão:

Ao contrário da Lei 8.666/93, que esmiuçou cada um dos documentos para habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico financeira e regularidade fiscal e trabalhista, a Lei das Estatais estabeleceu parâmetros para avaliação da habilitação mais consentâneos com a Constituição Federal, que determinou no artigo 37, inciso XXI, que somente poderão ser exigidas qualificações técnicas e econômico financeiras que guardem relação com a execução do objeto, limitando assim as balizas habilitatórias a serem exigidas dos licitantes. Tal simplificação em relação à legislação anterior pode causar algumas dificuldades operacionais. É de ressaltar que o legislador das Estatais não definiu os documentos de regularidade fiscal {acrescentamos que também não definiu os documentos de aptidão técnica}. [2]

Seja como for, fixou a jurisprudência do TCU que “não obstante resumidos, os quesitos previstos no art. 58 da Lei 13.303/2016 (regramento pertinente à habilitação de licitantes) devem ser analisados à luz dos preceitos constitucionais que dão suporte à referida norma. (…).”[3] (destacamos)

Também por conta do fundamento constitucional, que ampara a qualificação técnica nas licitações, e em virtude da textura ampla e aberta da norma fixada no art. 58, II da Lei 13.303/16, entendeu o TCU que se aplicam às estatais, quanto às exigências relativas ao registro ou à inscrição na entidade profissional competente para fins de habilitação técnica, a mesma interpretação jurisprudencial feita Corte de Contas para o art. 30, inc. I da Lei 8.666/93.[4] Por conta disso, a exigência de registro em conselhos profissionais “deve se limitar à entidade que fiscalize a atividade básica ou o serviço preponderante da licitação. [5]

Este último argumento – exigir registro em entidade de fiscalização de profissão relativo ao Conselho que fiscalize a atividade básica ou serviço preponderante da licitação – encontra respaldo em outra norma do ordenamento jurídico, qual seja, a Lei 6.839/1980, que no art. 1º estipula que as empresas devem se registrar na entidade fiscalizadora do exercício de profissões competente em razão da atividade básica ou em relação àquela pela qual prestem serviços a terceiros.

38. Ou seja, ao promover uma licitação, a Administração só pode condicionar a habilitação de licitante à inscrição no conselho que tenha, por força de lei, a atribuição de fiscalizar a atividade correlacionada com a natureza principal ou essencial do objeto almejado no certame. Tal solução, por óbvio, afasta a possibilidade da hipótese adotada no Edital da Licitação 7003423320, qual seja, a de se exigir registro em mais de um conselho.

Podemos ainda inferir do trecho final da decisão acima transcrita, que em virtude da Lei 6.839/80 configura-se equivocada a cláusula editalícia que exige exigia das empresas participantes do certame a inscrição ou registro em 2 conselhos de fiscalização de profissões, no caso CRECI, CAU/CREA para fins de comprovação do disposto no art. 58, inc. II da Lei 13.303/21.

Por fim, o voto do Min. Relator sublinhou que embora outros diversos Acórdãos do TCU sobre o tema sejam relativos ao art. 30, inc. I da Lei 8.666/1993[6], nada obsta que a interpretação ali proferida seja estendida às licitações regidas pela Lei 13.303/2016, como é o caso que comentamos.


[1]Doutora, com período de sanduíche na Scuola Normale Superiore di Pisa (SNS), e mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Possui estágio pós-doutoral em Direito na UFPR. Possui pós-graduação em Direitos Fundamentais pela Universidade de Burgos da Espanha e em Teoria do Direito e Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Professora e pesquisadora em História do Direito e Direito Público. Consultora jurídica com mais de 10 anos de experiência e atuação na área de licitações e contratos administrativos.  Pesquisadora e colaboradora da Revista RJML de Licitações e Contratos.

[2]GUIMARÃES, Edgar. Lei das Estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei n° 13.303/2016/ Edgar Guimarães, José Anacleto Abduch Santos – Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 202.

[3]TCU.Acórdão 739/20, Rel. Min. Benjamin Zymler.

[4]Acórdãos: 2615/2021-Plenário/BOL/TCU 380; 3.464/2017-2ª Câmara; 5.383/2016-2ª Câmara; 1.884/2015-1ª Câmara; 2.769/2014-Plenário.

[5]Acórdão 2615/2021-Plenário. Relator Ministro Raimundo Carreiro. BOL/TCU 380.

[6]Acórdãos 5.383/2016-2ª Câmara; 3.464/2017-2ª Câmara; 2.769/2014-Plenário.

Danielle Regina Wobeto de Araujo

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