Breve histórico.Não é de hoje que se fala em governança. Na década de 1930, os americanos Berle e Means produziram um dos primeiros livros tratando de assuntos relacionados à governança. No livro, The Modern Corporation and Private Property, os autores tratam dos fundamentos da legislação corporativa americana. A segunda edição do livro, lançada em 1967, fundamenta a governança corporativa, a legislação corporativa e a economia institucional.
O primeiro grande impulso para o desenvolvimento da governança ocorreu no início dos anos 80, nos Estados Unidos: o caso da Texaco – quando a diretoria e membros do conselho de administração orquestraram a recompra de ações da companhia a um preço acima do valor de mercado, manobra realizada para evitar a aquisição da empresa por um dos acionistas minoritários – deflagrou uma série de ações que visavam resguardar os direitos dos acionistas, era o lançamento da base para as boas práticas de governança.
As práticas de governança continuaram evoluindo aos poucos até os anos 90, quando sofreu novo impulso: o Banco da Inglaterra elaborou o Código das Melhores Práticas de Governança corporativa, o Cadbury report. Em 1992, nos Estados Unidos, o Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission – COSO publicou o Internal control – integrated framework.
Outros momentos cruciais apresentaram-se ao longo dos anos 2000 e contribuíram para consolidar a governança corporativa. No primeiro deles, em 2001, relacionado à falência da Enron, quando a companhia fraudou balanços contábeis e causou prejuízo aos investidores da ordem de milhões de dólares. A Arthur Andersen, empresa responsável pela auditoria dos dados financeiros da Enron, afundou junto. Esse escândalo motivou a criação da lei americana Sarbanes-Oxley Act em 2002, objetivando amelhoria dos controles para garantir a fidedignidade dos relatórios financeiros. Naquele mesmo ano foi criado o European Corporate Governance Institute – ECGI.
A seguir, em 2004 o COSO publicou o Enterprise risk management – integrated framework. Em 2008, quando as agências de classificação de risco não previram a insegurança de investimentos feitos sobre crédito falido, tendo gerado uma forte crise financeira nos Estados Unidos, com impactos em mercados de todo o globo.
Governança corporativa no Brasil. A fim de evitar escândalos corporativos como os observados nos Estados Unidos, o Brasil aprovou a Lei das SAs (Sociedades por Ações), Lei 10.303, de 31 de outubro de 2001, que institui padrões para a administração e contabilidade das empresas brasileiras de capital aberto e fechado. Visa, principalmente, promover a igualdade entre acionistas garantindo ao investidor minoritário o direto a voto em decisões de negócio.
Temos, ainda, a atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador das empresas que negociam ações em bolsa de valores no Brasil, assim a divulgação de informações e relatórios com resultados financeiros, operações de aquisição e fusões, entre outros, são padronizados.
Ainda, as empresas listadas na BM&FBovespa são classificadas segundo o nível de governança e as práticas de gestão adotadas. Assim, empresas enquadradas no segmento “Novo Mercado” tem maior credibilidade junto aos investidores, pois se adaptam a uma série de padrões exigidos pela BM&FBovespa.
Afinal, o que é a governança corporativa? Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, “é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas”.
Pode-se dizer que a finalidade da governança corporativa é a criação de valor. Considere que as corporações que melhor aplicam as práticas de governança, constroem uma boa reputação, consolidam-se no mercado, facilitam a captação de recursos e, por fim, aumentam o valor dos produtos e serviços disponibilizados e o seu próprio valor.
Quatro princípios são fundamentais para a execução da boa governança: 1) Transparência – decisões e processos devem acontecer de forma transparente para todos os interessados. 2) Equidade – tratar igualmente todos os interessados nos negócios da corporação. 3) Accountability – prestação de contas sobre os atos praticados e responsabilização de seus agentes. 4) Responsabilidade corporativa – ter uma visão ampla da organização e do contexto social no qual está inserida.
E no setor público? Breve Histórico. A crise fiscal dos anos 80 provou especial estagnação no Brasil e na América Latina. Houve uma forte retração na produção industrial, crise econômica, inflação, baixo PIB e explosão da desigualdade social. As taxas internacionais de juros provocaram um aumento da dívida externa brasileira e a política fiscal do Governo engordava a dívida interna.
Diante deste cenário, a discussão da governança na esfera pública foi natural, tanto que na década de 1990 o Banco Mundial alterou sua temática em torno de reformas macroeconômicas para reformas do Estado e da administração pública, particularmente nos países em desenvolvimento, objetivando a promoção da boa governança. Como ápice deste movimento, publicou em 1992 o estudo Governance and development definindo governança no setor público como sendo “a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos econômicos e sociais do país, com vistas ao desenvolvimento”.
A International Federation of Accountants (IFAC) em 2001 realizou um estudo denominado Governance in the public sector: A governing body perspective. O estudo baseia-se no reconhecimento de que enquanto a governança do setor privado foca nas prioridades dos dirigentes, a governança pública deve tornar explícito o papel de cada ator, com a definição de objetivos, responsabilidades, modelos decisórios, procedimentos, entre outros.
Em 2005, após constar que as empresas estatais de diversos países têm relevante participação no Produto Interno Bruto – PIB, na capitalização do mercado e na geração de empregos, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou um conjunto de orientações contendo as melhores práticas de governança nas empresas públicas: Governance of State-Owned enterprises.
Conceito de governança pública. O TCU conceitua governança no setor público “como um conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”.
Pode-se afirmar que, na essência, a governança pública guarda similaridades com a governança corporativa, um grande diferencial, porém, é que devido ao engessamento e à complexidade da cadeia hierárquica nos organismos públicos, a governança pública atinge um espectro maior de objetivos, processos, procedimentos e agentes.
Normas brasileiras sobre governança pública. Notadamente a Constituição Federal de 1988 institucionaliza estruturas de governança pública. Segundo o Referencial Básico de Governança Aplicável a Órgãos e Entidades da Administração Pública e Ações Indutoras de Melhoria, publicado em 2014 pelo Tribunal de Contas da União – TCU, o caput do art. 1º da CF/88 estabelece que “a República Federativa do Brasil […] constitui-se em Estado Democrático de Direito” e que sob a óptica da governança isso quer dizer que o “cidadão tem poder para escolher seus representantes e que o poder não está concentrado no governo, mas emana do povo”.
Ainda de acordo com o TCU, a CF/88 criou as condições para que a governança do Estado ocorra quando “fixou direitos e garantias fundamentais dos cidadãos; organizou política e administrativamente o Estado e os Poderes; definiu e segregou papéis e responsabilidades; instituiu sistema de freios e contrapesos; e instituiu estruturas de controle interno e externo”.
Diversos normativos infraconstitucionais também abordam aspectos da governança pública, entre os quais destacam-se:
- Decreto 1.171, de 22 de junho de 1994. Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal.
- Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão.
- Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização (GesPública), instituído em 2005 e revisado em 2009 e em 2013.
- Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, Lei de Acesso à Informação. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do artigo 5º, no inciso II do § 3º do artigo 37 e no § 2º do artigo 216 da Constituição Federal.
- Lei 12.813, de 16 de maio de 2013. Dispõe sobre o conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo Federal.
- Instrução Normativa Conjunta MP/CGU nº 01, de 10 de maio de 2016. Dispõe sobre controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo Federal.
- Lei 13.303, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Estabelece que tais organizações devem “observar regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da administração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção.
- Decreto 8.945, de 27 de dezembro de 2016. Regulamenta, no âmbito da União, a Lei 13.303, de 30 de junho de 2016.
- Decreto 9.094, de 17 de junho de 2017. Revoga o GesPública e dispõe sobre a simplificação do atendimento prestado aos usuários dos serviços públicos, ratifica a dispensa do reconhecimento de firma e da autenticação em documentos produzidos no País e institui a Carta de Serviços ao Usuário.
- Decreto 9.203, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Como se vê nos últimos anos, os temas governança, gestão de riscos e controles internos têm sido recorrentes no Governo Federal, assim é inevitável a aplicação dos princípios de governança nos organismos públicos. É uma questão de tempo, apenas.
Por onde começar? Elenque os pontos de dor. Onde estão os maiores problemas? As maiores preocupações? Comece por aí. Selecione, baseando-se na análise anterior, uma unidade organizacional para empreender um modelo de governança. Preferencialmente uma cujos líderes estão abertos e acreditam nos benefícios da governança e, a partir daí[1]:
Treine os líderes da unidade, faça-os entender os benefícios da governança. Assim começa a mudança de cultura que muitas vezes é subestimada, mas é determinante no sucesso ou falha na adoção de novos conceitos, procedimentos e modelos.
Defina objetivos para a unidade organizacional e indicadores para seus principais processos de trabalho. Evidencie desvios e promova a transparência dos objetivos, metas, processos, indicadores e ações.
Estabeleça um modelo de governança que defina a segregação de papéis e balanceamento de poder. Para isso, oficialize comitês conforme a necessidade. Tais comitês devem ser formados por membros da alta administração e representantes das áreas de negócio.
Defina um processo para gestão da estratégia institucional, incluindo a monitoração e avaliação da execução da estratégia e dos principais indicadores da organização.
Ouça as partes interessadas quando da definição da estratégia institucional. Envolva gestores, usuários, representantes da sociedade e o máximo de interessados que são afetados pelos produtos e serviços disponibilizados pela sua organização.
Estabeleça metas, destine recursos adequados para alcançá-las e defina os responsáveis por elas. Com as metas, as ações dos gestores podem ser direcionadas, monitoradas e avaliadas.
Estabeleça meios de atuação conjunta com outras unidades organizacionais ou outras instituições, visando a colaboração e a utilização eficiente de recursos.
Gerencie riscos e, a partir deles, estabeleça mecanismos de controles internos adequados. A gestão de riscos maximiza a possibilidade de atingir os objetivos institucionais e propicia informações objetivas para a tomada de decisão.
Estabeleça uma auditoria interna independente objetivando a melhoria continuada dos processos de gestão de riscos, controle e governança.
Estabeleça a transparência e um sistema de accountability, a transparência estimula e facilita o controle social, trazendo consigo a participação do cidadão no planejamento e na efetiva melhoria na prestação dos serviços públicos.
Depois da experimentação e correção de rumos, refaça o trabalho em conjunto com as lições aprendidas nas demais unidades organizacionais.
Certo, mas quais são os benefícios da governança pública?Alguns dos principais benefícios da utilização de um modelo de governança pública, dentre os elencados pelo IFAC, são:
- garantir a entrega de benefícios econômicos, sociais e ambientais para os cidadãos;
- ser transparente, mantendo a sociedade informada acerca das decisões tomadas e dos riscos envolvidos;
- possuir e utilizar informações de qualidade e mecanismos robustos de apoio às tomadas de decisão;
- selecionar a liderança tendo por base aspectos como conhecimento, habilidades e atitudes (competências individuais);
- avaliar o desempenho e a conformidade da organização e da liderança, mantendo um balanceamento adequado entre eles;
- controlar as finanças de forma atenta, robusta e responsável.
Por Sandro Tomazele.
Graduado em TI, Pós-Graduado em Redes de Computadores, com vasta experiência na iniciativa privada, tendo atuado, por exemplo, na Brasil Telecom (atualmente Oi). É Analista Judiciário do TST – Tribunal Superior do Trabalho, exercendo a função de Supervisor de Segurança da Informação e Coordenador Substituto de Apoio à Governança e Gestão de TIC. Dentro do Tribunal exerceu diversas atividades, foi responsável por várias licitações de soluções de TI para a Justiça do Trabalho e para o próprio TST. Atua ativamente na governança e na gestão de riscos corporativos, tendo coordenado a equipe que desenvolveu a metodologia de gestão de riscos do TST, atualmente coordena o Escritório de riscos corporativos. Ministrou capacitações sobre gestão de riscos, governança ou controles internos na ANAC, no Senado Federal, no Tribunal Superior do Trabalho, nos Tribunais Regionais do Trabalho de Rondônia, Minas Gerais, Alagoas, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Tribunal de Justiça de Rondônia e para alunos do CSJT, CNMP, STM e de mais outras 20 instituições públicas e privadas.
É membro do Comitê de Governança das Organizações e do Comitê de Gestão de Riscos, ambos da ABNT. Possui curso de aperfeiçoamento em aprendizagem pela Universidade da Califórnia: “Learning How to Learn: Powerful mental tools to help you master tough subjects“.