No recente Acórdão nº. 1623/2018, do Plenário, o TCU analisou a aplicabilidade da Portaria nº. 1.287/2017, do Ministério do Trabalho, aos contratos formalizados antes do advento da norma.
Com efeito, em dezembro de 2017, o Ministério do Trabalho baixou a Portaria nº 1.287/2017 segundo a qual não é mais possível a cotação de taxa negativa pelas administradoras quando do fornecimento de vale-refeição/alimentação aos beneficiários do Programa de Alimentação do Trabalhador:
“Art. 1º No âmbito do Programa de Alimentação do Trabalhador, é vedada à empresa prestadora a adoção de práticas comerciais de cobrança de taxas de serviço negativas às empresas beneficiárias, sobre os valores dos créditos vinculados aos documentos de legitimação.”
O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) é uma forma de priorizar o atendimento aos trabalhadores de baixa renda, através de incentivo tributário aos empregadores que aderirem ao Programa[1] e o Ministério do Trabalho é o órgão responsável por expedir instruções a respeito, nos termos do Decreto nº 5/1991[2] , que regulamenta a lei instituidora do PAT (Lei 6.321/1976).
As portarias, instruções, circulares, etc., são classificadas como atos administrativos ordinatórios, sobre os quais bem leciona Hely Lopes Meirelles:
“Atos administrativos ordinatórios são os que visam a disciplinar o funcionamento da Administração e a conduta funcional de seus agentes. São provimentos, determinações ou esclarecimentos que se endereçam aos servidores públicos a fim de orientá-los no desempenho de suas atribuições.
Tais atos emanam do poder hierárquico, razão pela qual podem ser expedidos por qualquer chefe de serviço aos seus subordinados desde que o faça nos limites de sua competência.
Os atos ordinatórios da Administração só atuam no âmbito interno das repartições e só alcançam os servidores hierarquizados à chefia que os expediu. Não obrigam os particulares, nem os funcionários subordinados a outras chefias. São atos inferiores à lei, ao decreto, ao regulamento e ao regimento. Não criam, normalmente, direitos ou obrigações para os administrados, mas geram deveres e prerrogativas para os agentes administrativos a que se dirigem.”[3] (grifou-se)
Tem-se, portanto, que, a rigor, os atos ordinatórios (a exemplo das portarias) servem para auxiliar a Administração em sua organização interna, não criando direitos ou obrigações para os administrados. Sendo assim, pode-se dizer que o conteúdo da referida Portaria ministerial é juridicamente questionável, na medida em que intervém em atividade econômica, impondo restrição sem amparo legal, já que não foi prevista na Lei 6.321/1976, nem no decreto que a regulamenta.
Além disso, o Ministério do Trabalho editou a Nota Técnica nº. 45/2018, segundo a qual “A entrada em vigor da Portaria nº 1.287/17 tem efeito imediato para seu cumprimento, independentemente se à data da publicação já estavam vigentes quaisquer contratos entre participantes do PAT, sejam estes por prazo determinado ou indeterminado”.
A orientação contida nessa nota é igualmente questionável sob o ponto de vista legal, já que não leva em consideração atos jurídicos perfeitos, que não podem ser atingidos por novel legislação, posto que em nosso ordenamento pátrio vigora o princípio da irretroatividade das normas, em prol da segurança jurídica.
Nessa linha, prevê a Constituição Federal:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (grifou-se)
Da mesma forma, o Decreto-Lei nº 4.657/ 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, antiga Lei de Introdução ao Código Civil-LICC):
“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela Lei nº 3.238, de 1957)
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)
§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)” (grifou-se)
Logo, os critérios de remuneração já definidos em contratos vigentes de fornecimento de vale-refeição/alimentação, aperfeiçoados antes da publicação da referida Portaria, não deveriam ser alterados, nem mesmo numa eventual prorrogação.
Essa foi a orientação do Superior Tribunal de Justiça:
“MANDADO DE SEGURANÇA Nº 24.174 – DF (2018/0066172-4)
RELATOR: MINISTRO OG FERNANDES
IMPETRANTE: COMPANHIA PARANAENSE DE ENERGIA
IMPETRANTE: COPEL RENOVAVEIS S.A
IMPETRANTE: COPEL COMERCIALIZACAO S.A
IMPETRANTE: COPEL DISTRIBUIÇÃO S.A
IMPETRANTE: COPEL GERACAO E TRANSMISSAO S.A
IMPETRANTE: COPEL TELECOMUNICAÇÕES S/A
(…)
IMPETRADO: MINISTRO DO TRABALHO
DECISÃO Vistos, etc. Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado pela Companhia Paranaense de Energia e outras contra ato do Ministro de Estado do Trabalho consistente na edição da Portaria MTE 1.287, de 27/12/2017, a qual impediu a adoção de taxas de administração negativas nas contratações firmadas entre as pessoas jurídicas beneficiárias do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT e os operadores dos vales alimentação e refeição. As impetrantes sustentam que o referido normativo contraria a legislação de regência, bem como a Constituição Federal, devendo ser reconhecida sua nulidade. Acrescentam que a aplicação do ato administrativo impugnado acarretará vultosos prejuízos econômicos para as impetrantes, comprometendo, inclusive, contratações que já se encontram em curso e que foram precedidas de regular processo licitatório. Sintetizam a violação do suscitado direito líquido e certo nos seguintes pontos (e-STJ, fls. 47-48): i) a Portaria MTb nº 1.287 de 27.12.2017 é nula de pleno direito, uma vez que padece de vícios formais insanáveis, eis que não observou as previsões contidas na Portaria nº 1.127 de 2003, que estabelece procedimentos para a elaboração de normas regulamentadores relacionadas à saúde, segurança e condições gerais de trabalho; ii) além da inobservância das formalidades essenciais, necessárias à prévia edição da norma, a autoridade coatora também deixou de atender outros requisitos do ato administrativo, quais sejam, a finalidade, a causa e o motivo. iii) a Portaria ora impugnada exorbita o seu poder regulamentar, eis que dispõe sobre matéria que não está contemplada na Lei nº 6.231/76, que instituiu o Programa de Alimentação do trabalhador (PAT), imiscuindo em seara que não lhe compete, disciplinando relação comercial entre particulares, em completa ofensa ao princípio da legalidade e ao poder regulamentar, previsto no art. 84, inciso IV da Constituição Federal, bem como ao princípio fundamental da livre iniciativa. iv) o ato coator também contraria um dos fundamentos da lei de licitações, que é a seleção da proposta mais vantajosa à Administração Pública, bem como os princípios da Economicidade, Vantajosidade, Isonomia, da Vinculação ao Instrumento Convocatório, do Julgamento Objetivo e as disposições contidas no 112 da Lei estadual nº 15.608/2007 e no o art. 67 da Lei federal nº 8.666/93. v) a pretensão de se aplicar a regra veiculada na Portaria MTB nº 1.287 de 27.12.2017 aos contratos vigentes é inconcebível em nosso ordenamento jurídico, ante a impossibilidade de que uma regra retroaja para atingir fatos anteriores ao início de sua vigência, nem a consequência dos mesmos, ainda que ocorridos sob a égide do direito atual, o que configura completa ofensa ao princípio da Irretroatividade da Lei e da Segurança Jurídica. Justificam o perigo na demora na iminência do exaurimento do prazo de 90 (noventa) dias fixado pelo poder público para a extinção da cobrança da mencionada taxa de administração negativa, o que ocorrerá no dia 27/3/2018. Asseveram que, caso descumprido o ato administrativo impugnado, há o risco de as impetrantes sofrerem penalidades por parte do Departamento de Segurança e Saúde do Trabalho, inclusive com o cancelamento delas no Programa de Alimentação do Trabalhador e, consequentemente, a perda do incentivo fiscal previsto na legislação para os participantes do PAT. Aduzem, ainda, que a implementação da Portaria 1.287/2017 implicará um impacto financeiro de aproximadamente R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais) ao ano às contas das impetrantes. Buscam, portanto, o deferimento da liminar, nos seguintes termos (e-STJ, fls. 50-51): a1) determinar a suspensão da eficácia da Portaria nº 1.287 de 27.12.2017, editada pelo Ministério do Trabalho, eis que manifestamente inconstitucional e ilegal. a2) autorizar a adoção do critério de julgamento da menor taxa de administração (abrangendo as taxas de desconto negativas), ao certame licitatório quer será instaurado pelas Impetrantes, tendo em vista o advento do termo do contrato COPEL SLE nº 4600003536/2013, que ocorrerá em 22.07.2012. a3) reconhecer que a Portaria nº 1.287 de 27.12.2017 não se aplica ao contrato COPEL SLE nº 4600003536/2013, em respeito ao ato jurídico perfeito a3) abster-se de aplicar qualquer penalidade às Impetrantes e a suas contratadas, em especial no que tange à execução do contrato COPEL SLE 46000035136/2013 firmado com a empresa SODEXO PASS DO BRASIL SERVIÇOS E COMÉRCIO S.A e às proponentes que participarão do certame licitatório que será instaurado pelas Impetrantes. Decido. O deferimento da medida liminar no mandado de segurança está condicionado à demonstração concomitante da fumaça do bom direito e do perigo na demora. No caso, verifico que estão presentes os requisitos necessários para o deferimento da tutela de urgência. Em juízo de cognição sumária, entendo que são relevantes os argumentos trazidos pelas impetrantes a respeito dos vícios da Portaria que proibiu a aplicação das taxas de administração negativas às empresas beneficiárias. A observância das cautelas previstas na Portaria 1.127/2003 e na Portaria Interministerial 6/2005 para a fixação do regramento aplicável ao Programa de Alimentação do Trabalhador – a exemplo do debate das alterações normativas perante a Comissão Tripartite Paritária e pelo respectivo Grupo Técnico – é importante para que haja o necessário equilíbrio entre os interesses envolvidos em questão, tendo em vista tratar-se de matéria sensível e capaz de produzir relevantes impactos sociais. A ausência de maior discussão durante o processo de elaboração da norma em avilte encontra-se corroborada no trecho citado da Nota Técnica 45/2018, quando se afirma que a Portaria 1.287/2017 não foi submetida ao debate pelas comissões competentes haja vista a necessidade de se atender demanda das próprias empresas que atuam no segmento de benefícios ao trabalhador. Nesse ponto, impressiona-me a ausência de justificativa relacionada aos eventuais benefícios da alteração normativa proposta em favor do próprio funcionamento do PAT e dos interesses dos trabalhadores a serem albergados pelo referido ato. Por outro lado, a taxa de administração é apenas uma das fontes remuneratórias das sociedades empresárias que atuam na intermediação dos serviços de vale-refeição e vale-alimentação, considerando-se que tais agentes também ganham rendimentos decorrentes de aplicações financeiras da parcela que lhes é antecipada pelos contratantes, bem como da cobrança realizada dos estabelecimentos credenciados. Desse modo, a prática comercial que se utiliza da taxa de administração negativa, nesse primeiro exame, não me parece despida de racionalidade econômica, haja vista a existência de outros rendimentos compensatórios que viabilizam a atividade. Cuida-se, por outro viés, de medida compreendida na área negocial dos interessados, a qual fomenta a competitividade entre as empresas que atuam nesse mercado. Em razão disso, a proibição da utilização desse mecanismo por meio de uma portaria editada pelo Ministério do Trabalho – órgão do governo federal cuja missão institucional anunciada no seu sítio eletrônico é ‘tratar das políticas e diretrizes para a geração de emprego e renda e de apoio ao trabalhador; das políticas e diretrizes para a modernização das relações do trabalho; da fiscalização do trabalho, inclusive do trabalho portuário; da política salarial; da formação e desenvolvimento profissional; da segurança e saúde no trabalho; política de imigração e cooperativismo e associativismo urbanos’ – ao menos nesse exame inicial, está em descompasso com o papel que lhe cabe na gestão pública. Saliente-se, portanto, que, no âmbito dos contratos firmados com a Administração Pública, o Plenário do Tribunal de Contas da União já reconheceu a legalidade da taxa de administração negativa ‘por não estar caracterizado, a priori, que essas propostas sejam inexequíveis, devendo ser averiguada a compatibilidade da taxa oferecida em cada caso concreto, a partir de critérios objetivos previamente fixados no edital’ (Acórdão 38/1996, Rel. Ministro Adhemar Paladini Ghisi). O perigo na demora, por seu turno, está caracterizado pela iminência de aplicação das exigências constantes da Portaria impugnada no mandamus, a realizar-se no dia 27/3/2018, ensejando a modificação de contratos anteriormente celebrados e, por conseguinte, a repactuação do equilíbrio econômico-financeiro de pactos que envolvem quantias vultosas. Destaque-se, todavia, que a presente liminar não abrange a autorização para as impetrantes adotarem a menor taxa de administração em futuros certames licitatórios, sob pena de um provimento precário consolidar direitos que ultrapassam os próprios limites da presente ação mandamental. Ante o exposto, defiro, em parte, o pedido de liminar para suspender a aplicação da Portaria 1.287/2017, editada pelo Ministro de Estado do Trabalho e impossibilitar que as impetrantes sofram sanções em decorrência do descumprimento do referido ato normativo, especificamente no tocante às contratações que foram realizadas com as prestadoras do serviço de gerenciamento, implementação e administração de benefício refeição e alimentação. Comunique-se com urgência. Notifique-se a autoridade impetrada para apresentar informações no prazo legal. Cientifique-se o órgão de representação judicial do Ministério do Trabalho para, querendo, ingressar no feito. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 26 de março de 2018. Ministro Og Fernandes Relator”.[4] (grifou-se)
Como se vê, o STJ acabou por suspender os efeitos da Portaria por entender que o normativo não foi elaborado com escopo em estudos e debates necessários sobre a matéria, que demonstrassem os benefícios da medida em prol dos trabalhadores (o que justificaria, então, a sua edição), além de interferir em atividade econômica de modo incompatível com as competências do Ministério do Trabalho.
Ocorre que tal decisão ampara apenas as partes envolvidas na ação[5] , sendo que os demais, a quem se dirige a normativa, isto é, aos integrantes do PAT, deverão observar seus termos, sob o risco de sofrerem sanções pelo órgão fiscalizador do programa.
Com efeito, os beneficiários do PAT, não podem mais, desde a publicação da Portaria, admitir em seus editais de licitações e nos contratos relativos ao fornecimento de vale-refeição/alimentação a cotação de taxa de administração negativa.
Não obstante, a incidência dessa vedação é cabível apenas para novos contratos, celebrados após a publicação da Portaria. Assim, em que pese a orientação no âmbito do Ministério do Trabalho de que os efeitos dessa normativa são imediatos e aplicáveis a todos os ajustes vigentes, no Acórdão objeto desses comentários o Tribunal de Contas da União determinou ao referido Ministério:
“Preocupado em particular com fato de o ato ‘não ressalvar da sua incidência contratos já celebrados, em especial contratos administrativos e outros contratos sujeitos, ainda que parcialmente, a regime jurídico de direito público’, o ilustre representante requer, cautelarmente, que se determine ao MTb ‘que se abstenha de exigir a observância da Portaria 1.287/2017 em relação aos contratos da administração pública federal e das entidades do Sistema S já celebrados na data de entrada em vigor da citada portaria, divulgando essa determinação entre os empregadores credenciados no PAT’.
(…)
Assim, concedo a medida cautelar nos termos em que requerida pelo Ministério Público, determinando ao Ministério do Trabalho que se abstenha de exigir a observância da Portaria 1.287/2017 em relação aos contratos firmados por entidades da administração pública federal e do Sistema S celebrados em data anterior ao início da vigência da citada portaria, divulgando essa determinação entre os empregadores credenciados no PAT.[6] (grifou-se)
Em face do exposto, conclui-se que os contratos celebrados antes do advento da Portaria 1.287/2018 devem permanecer com os valores contratados, não incidindo a vedação à taxa negativa. Ademais, considerando a flagrante ilegalidade da norma e as recentes posições da jurisprudência, há grande probabilidade de que ela seja revogada.