Inicialmente, cumpre trazer a disciplina da Lei Complementar 123/2006 que trata da preferência das micro e pequenas empresas:
“Art. 3º. Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte, a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:
I – no caso da microempresa, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais); e
II – no caso de empresa de pequeno porte, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais)
§ 1
ºConsidera-se receita bruta, para fins do disposto no caput deste artigo, o produto da venda de bens e serviços nas operações de conta própria, o preço dos serviços prestados e o resultado nas operações em conta alheia, não incluídas as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos.(…)
§ 9º. A empresa de pequeno porte que, no ano-calendário, exceder o limite de receita bruta anual previsto no inciso II do caput deste artigo fica excluída, no mês subsequente à ocorrência do excesso, do tratamento jurídico diferenciado previsto nesta Lei Complementar, incluído o regime de que trata o art. 12, para todos os efeitos legais, ressalvado o disposto nos §§ 9º-A, 10 e 12.§ 9º-A. Os efeitos da exclusão prevista no § 9º dar-se-ão no ano-calendário subsequente se o excesso verificado em relação à receita bruta não for superior a 20% (vinte por cento) do limite referido no inciso II do caput.”
Não há na Lei Complementar 123/06 qualquer vedação quanto à participação em certames cujo valor ultrapasse o limite previsto para enquadramento como pequena empresa. O que o art. 3º prescreve, conforme visto, são regras para o desenquadramento após a empresa faturar montante que supere o limite legal, sendo que se tal excesso superar 20% em relação ao limite previsto na legislação para enquadramento como empresa de pequeno porte, a empresa deixará de fazer jus ao tratamento diferenciado no mês subsequente ao da ocorrência, perdendo tal benefício no ano calendário seguinte se o excesso for inferior a 20%.
Com efeito, resta muito claro da Lei Complementar 123/06, que o intuito do legislador é permitir às pequenas empresas maior acesso às compras públicas, contribuindo, inclusive, para que se desenvolvam e se tornem grandes empresas.
Essa era a visão do TCU, antes do advento da Lei 14.133/2021:
“Licitação. Direito de preferência. Pequena empresa. Microempresa. Adjudicação. Limite. Receita bruta. Tratamento diferenciado.
Não há óbice a que sejam adjudicados às microempresas e às empresas de pequeno porte valores superiores aos limites de receita bruta estabelecidos no art. 3º, incisos I e II, da LC 123/2006, respectivamente, desde que comprovado que tais empresas, à época da licitação, atendiam às exigências previstas nos arts. 3º, 3º-A e 3º-B da referida lei.”[1]
A Nova Lei de Licitações (14.133/2021), em que pese ter mantido o tratamento diferenciado, acabou por restringi-lo às licitações cujo valor estimado não ultrapasse o limite previsto na Lei Complementar 123/06 para enquadramento como empresa de pequeno porte, bem como apenas às empresas que, no ano calendário da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração que extrapolem a referida receita bruta (R$ 4.800.000,00). Portanto, a novel legislação, além de restringir o tratamento diferenciado a licitações de menor vulto (dentro do limite da receita bruta) ainda alterou a regra do desenquadramento prevista no art. 3º, da Lei Complementar 123/06, porquanto ao atingir o limite da receita bruta, a empresa não mais fará jus ao tratamento diferenciado. Vejamos:
Art. 4º Aplicam-se às licitações e contratos disciplinados por esta Lei as disposições constantes dos arts. 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
§ 1º As disposições a que se refere o caput deste artigo não são aplicadas:
I – no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte;
II – no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte.
§ 2º. A obtenção de benefícios a que se refere o caput deste artigo fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite na licitação.” (grifou-se)
Marçal Justen Filho expõe a ruptura da nova Lei com o entendimento que prevalecia:
“A Lei 14.133/2021 determinou a não aplicação do regime preferencial em licitações e contratações cujo valor individual for superior ao limite máximo previsto para enquadramento como empresa de pequeno porte. Essa regra se aplica tanto para aquisição de bens ou serviços em geral como para obras e serviços de engenharia.
Essa determinação afasta o entendimento de que a microempresa ou empresa de pequeno porte poderá auferir os benefícios do regime diferenciado relativamente a contratação específica, cujo valor supere o limite de enquadramento e de que tais benefícios deixariam de ser reconhecidos apenas em relação a futuras contratações.”[2]
Embora lei ordinária (como é o caso da Lei 14.133/2021) não possa alterar Lei Complementar, é preciso rememorar que em matéria de licitações, a referida Lei Complementar 123/06 tem status de lei ordinária e por esta pode ser alterada, consoante expressa previsão do art. 86:
“Art. 86. As matérias tratadas nesta Lei Complementar que não sejam reservadas constitucionalmente a lei complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária”.
Cumpre citar, novamente, a doutrina de Marçal Justen Filho:
“Não cabe contrapor que normas de lei complementar não comportam alteração por meio de lei ordinária. O art. 4, §2º, da Lei 14.133/2021 dispõe sobre licitações administrativas. Não se trata de regra sobre matéria tributária.
Para ser mais preciso, a regra do art. 3º, §9º-A da LC 123/2006 continua vigorando na sua dimensão de direito tributário. Mas a mesma matéria, para fins de licitação, passou a ser objeto do dispositivo ora examinado.”[3]
Em suma, a Lei Complementar, que em nada foi alterada pela Lei 14.133/2021 continua vigente e eficaz quanto as consequências tributárias de um possível desenquadramento em razão de ter celebrado contratos que superam os limites da receita bruta anual. A alteração traz impacto apenas quanto à participação nas licitações.
No entender desta Consultoria, porém, a restrição imposta pela Lei 14.133/2021 fere a principiologia da Lei Complementar 123/06 e a própria Constituição Federal, caracterizando um verdadeiro retrocesso em matéria de direitos fundamentais.