O Estatuto das Estatais, Lei 13.303, que completou um ano desde sua publicação no DOU em 1° de julho de 2016, trouxe inovações consideráveis em relações às contratações submetidas às Leis 8.666/93 e 10.520/02.
Numa tentativa de evolução do legislador administrativista em relação às leis de licitação, acima referendadas, se aproximou do Regime Diferenciado de Contratações, além de apresentar conceitos, princípios, regras e diretrizes relacionados aos aspectos gerenciais, atribuir uma função social às sociedades de economia mista e empresas públicas, e tratar de aspectos alusivos ao controle, eficiência, transparência e governança das estatais, considerando sua natureza jurídica de direito privado, embora pertencentes à Administração Pública indireta.
Porém, as peculiaridades que merecem destaque nesse brevíssimo ensaio dizem respeito à sustentabilidade e à determinação de práticas que sejam ambiental e socialmente adequadas e que estão salpicadas ao longo do texto da Lei 13.303/16.
O tema da sustentabilidade, em especial sob o aspecto socioambiental, vem se enraizando na legislação que estabelece e regulamenta normas aplicáveis à Administração Pública, tomando contornos de política pública para desenhar as ações dos seus gestores visando realizar objetivos relevantes socialmente e diretrizes constitucional e infra-constitucionalmente determinadas.
Sem adentrar no aspecto histórico da sustentabilidade na legislação pátria e que submete a Administração Pública, limitemo-nos a sinalizar que a Lei das Estatais apresentou em diversas passagens temas socioambientais.
Inicialmente vale destacar que a Lei prevê, como grande inovação, que as empresas estatais deverão possuir, além da finalidade para a qual foram criadas, uma função social delimitada pelo interesse coletivo ou pelo imperativo da segurança social. Nesse viés inseriu a sustentabilidade ambiental e a responsabilidade social, como se observa do disposto abaixo:
“Art. 27. A empresa pública e a sociedade de economia mista terão a função social de realização do interesse coletivo ou de atendimento a imperativo da segurança nacional expressa no instrumento de autorização legal para a sua criação.
(…)
§ 2o A empresa pública e a sociedade de economia mista deverão, nos termos da lei, adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam.” (grifou-se)
No que se refere às licitações e contratos o desenvolvimento nacional sustentável foi erigido a princípio, moldando os procedimentos de contratação[1]:
“Art. 31. As licitações realizadas e os contratos celebrados por empresas públicas e sociedades de economia mista destinam-se a assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto, e a evitar operações em que se caracterize sobrepreço ou superfaturamento, devendo observar os princípios da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa, da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação ao instrumento convocatório, da obtenção de competitividade e do julgamento objetivo.” (grifou-se)
No artigo acima é possível também observar que a seleção da proposta mais vantajosa envolve a avaliação do ciclo de vida do objeto, conceito esse aplicado para orientar decisões que visam minimizar impactos ambientais de produtos e que será retomado abaixo, mas sem a pretensão de aprofundamento.
Elogiável a preocupação do legislador em inserir na Lei de Responsabilidade das Estatais critérios e diretrizes que devem ser buscados e seguidos em prol da sustentabilidade na Administração Pública.
Até porque, como destaca Daniel Ferreira, as licitações possuem uma função social que priorizam uma finalidade material extraordinária. Nesse aspecto, afasta-se o “benefício neutro”, que considera unicamente como relevante os benefícios econômicos para a Administração.[2]
Ademais, aponta-se que “o montante de recursos desembolsados pelos entes estatais para satisfação de suas necessidades é muito relevante e afeta a atividade econômica em seu conjunto”[3].
O TCU sinalizou no Acórdão 1.752/2011, do Plenário, que “o Poder Público, enquanto consumidor de recursos naturais, deve contribuir para a preservação do meio ambiente, durante as atividades administrativas diárias, por meio de práticas positivas como o uso racional dos recursos naturais e redução de gastos institucionais”.
Em outro trecho do Acórdão acima a Corte de Contas estabeleceu que
“é necessário buscar a preservação, a conservação e a recuperação dos recursos naturais por meio do estímulo e da promoção de padrões sustentáveis de produção e consumo. Um dos instrumentos destacados na Política é o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações públicas para propostas que propiciem maior economia de energia, água e outros recursos naturais.”[4]
Cabe salientar que a vantajosidade de uma proposta se mensura não somente pelo valor atribuído ao objeto, mas também pelo atendimento às especificações técnicas e, hodiernamente, a vantajosidade tem ido além, ampliando-se seu conceito para considerar conjuntamente com os aspectos acima os valores sociais e ambientais relevantes para a coletividade.
Contudo, incluir no texto legal princípios, diretrizes e normas preconizando a sustentabilidade não é suficiente para garantir a eficiência socioambiental das contratações e ações do administrador. Alguns dos temas tratados pela Lei 13.303/16 demandam estudos aprofundados antes de sua implementação, como é o caso da avaliação do ciclo de vida do objeto (ACV).
No Acórdão do TCU n° 1056/2017 do Plenário, ao serem questionadas em auditoria operacional 104 entidades da Administração Pública Federal[5]sobre as práticas de contratações sustentáveis, 49% (51 entidades) responderam que consideram a avaliação do ciclo de vida dos bens ou serviços a serem comprados ou contratados. É um número expressivo.
A ACV é regida pela norma ISO 14040, que indica a metodologia necessária, que compreende a definição de objetivo e alcance, análise de inventário, avaliação de impacto e interpretação de resultados, para identificar oportunidade de melhoria em aspectos ambientais de um produto em todo o seu ciclo de vida, desde a extração e processamento da matéria‐prima atéo descarte final, passando pelas fases de transformação, produção, transporte, distribuição, uso, manutenção, reutilização e reciclagem, ou seja, uma análise do berço ao berço (cradle to cradle), respeitando uma lógica circular de criação e reutilização.
Os princípios e procedimentos dispostos na norma técnica não são de fácil assimilação e demandam conhecimento integral de todas as fases de concepção e utilização de um determinado produto, que sofrem influências de todas as matérias-primas utilizadas, local e método de sua extração, modal de transporte, processos de fabricação, armazenamento, etc. Ou seja, a ACV demanda um conjunto de inventários dos ciclos de vida dos diversos sistemas e subsistemas técnicos envolvidos na produção do bem.
Há uma quantidade numerosa de dados a serem coletados e gerados e que demanda metodologias técnicas e científicas complexas. Atualmente há softwares que auxiliam no inventário e processamento de dados que garantem maior confiabilidade nos cálculos e originam relatórios mais consistentes, tais como o SimaPro[6]e o Umberto[7].
Mas a questão que emerge é: como aplicar a Avaliação do Ciclo de Vida do produto numa contratação pública?
O legislador não deu o caminho, somente o comando.
Não é tarefa fácil, já que não se pode, como regra, direcionar a contratação para um único produto, de marca e modelo determinado[8]. E aqui se apresenta uma grande dificuldade técnica para a ACV: produtos de marcas diversas apresentam ACV diversas, já que há variabilidade em relação à matéria-prima, origem, transporte, manufatura, etc. Como exemplo: a origem da madeira utilizada para produzir papel de uma determinada marca pode ser diferente da de outra marca, implicando em avaliações diversas em relação ao transporte da matéria-prima até à fabrica, do produto final da fábrica até o local de comercialização/distribuição e deste até o local de recepção pela Administração. Nesse exemplo percebe-se a influência da localidade geográfica.
Num exame criterioso da Avaliação do Ciclo de Vida de acordo com os parâmetros técnicos expedidos pela norma técnica ISO 14040, a aplicação de tal ferramenta em licitações demandará muitos entraves que podem até impossibilitar sua aplicação.
Assim sendo, tal ferramenta, que pode efetivamente demonstrar todos os níveis de impacto ambiental em toda a cadeia produtiva, também pode ser fator de ineficiência na Administração Pública, além de, se não for bem aplicada, servir unicamente como uma maquiagem ambiental, reduzindo a competitividade e trazendo mais prejuízos do que benefícios.
Contudo, seguindo diretrizes de sustentabilidade e o desígnio da legislação, pode-se inserir alguns parâmetros de análise de ciclo de vida visando a minimização de impactos ambientais nos produtos licitados, sem a necessidade de seguir à risca os preceitos da norma técnica, sob pena de inviabilizar sua aplicação.
Antes de implementar uma avaliação sui generis do ciclo de vida, preconiza-se que a estatal eleja, inicialmente, objetos utilizados em grande quantidade e que possam apresentar impactos relevantes e defina, de modo técnico, qual é o ciclo de vida do produto em toda a cadeia de produtividade, desde a matéria-prima utilizada em todos os seus sistemas e sub-sistemas, processamento da matéria‐prima atéo descarte final, passando pelas fases acima citadas.
Posteriormente, de forma tecnicamente justificada, pode-se eleger características dessa manufatura que representem um menor impacto, como por exemplo, produtos naturais, sem corantes, com menos embalagens, atóxicos, recicláveis, reciclados, biodegradáveis, com possibilidade de reuso, proveniente de reflorestamento (produtos madeireiros), que conservem energia, que não utilizem trabalho escravo ou infantil, que seja de produtor local, de indústria local, com redução de resíduos industriais, etc.
Caberá inserir essas características definidas na especificação técnica do objeto no instrumento convocatório.
É importante que as características acima citadas sejam profundamente avaliadas e justificadas de acordo com o caso concreto e não se tornem simplesmente uma cláusula padrão para todos os objetos.
Na fase de execução contratual caberá à entidade promover a avaliação de tais medidas e se, de fato, podem ser consideradas sustentáveis. Se houver necessidade de remodelações futuras assim o fará a entidade, sempre, repita-se, de modo técnico e justificado.
À guisa de conclusão, o desafio dos gestores das estatais é o de compatibilizar suas contratações com os critérios de sustentabilidade prescritos pelo legislador, de modo eficiente, transparente e com vistas às práticas menos nocivas ao meio ambiente e à coletividade.
A Avaliação do Ciclo de Vida pode parecer uma ferramenta complexa, ainda que muito eficiente do ponto de vista ambiental, o que não significa que deva ser deixada de lado por falta de parâmetros na legislação que rege as licitações. Caberá às entidades promover estudos aptos a aplicar no todo ou em etapas a ACV de modo a atender os ditames da Lei 13.303/16.
“Art. 47. A empresa pública e a sociedade de economia mista, na licitação para aquisição de bens, poderão:
I – indicar marca ou modelo, nas seguintes hipóteses:
a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;
b) quando determinada marca ou modelo comercializado por mais de um fornecedor constituir o único capaz de atender o objeto do contrato;
c) quando for necessária, para compreensão do objeto, a identificação de determinada marca ou modelo apto a servir como referência, situação em que será obrigatório o acréscimo da expressão “ou similar ou de melhor qualidade”.