Acórdão 5800/2025 TCU: Diretrizes para o  Sistema S

Introdução

O Acórdão nº 5800/2025, proferido pela Segunda Câmara do Tribunal de Contas da União (TCU) no âmbito do TC 007.862/2025-3, representa um importante precedente pedagógico para a gestão de contratações nas entidades do Sistema S. A deliberação, originada de representação com pedido de medida cautelar, analisou um pregão eletrônico para o fornecimento de um sistema de gestão de educação corporativa (LMS).

Embora a representação tenha sido julgada parcialmente procedente, com o indeferimento da cautelar, a ratio decidendi da decisão consolida duas teses jurídicas cruciais: (i) a imperatividade do princípio da publicidade na fase de Prova de Conceito (POC), mesmo diante de lacuna normativa no regulamento próprio da entidade; e (ii) a ilegalidade de cláusulas editalícias genéricas para aferição de capacidade técnica, que introduzem subjetivismo e restringem a competitividade.

Este artigo visa dissecar os fundamentos do Acórdão, explorando as diretrizes fixadas pela Corte de Contas para os regulamentos próprios do Sistema S.

Desenvolvimento

A análise de mérito da representação centrou-se em duas supostas irregularidades: ausência de transparência na POC e falhas nos atestados de capacidade técnica (ACT) . O TCU acolheu a primeira e, embora tenha rejeitado a segunda, identificou uma falha de origem no edital que motivou a expedição de ciência.

1. O Regime Jurídico Híbrido e a Vinculação aos Princípios Constitucionais

Como premissa maior, o Acórdão reitera o entendimento pacificado do TCU de que as entidades do Sistema S, embora não se sujeitem à estrita observância da legislação federal de licitações (ex. Lei 14.133/2021), estão inafastavelmente vinculadas aos seus regulamentos próprios (RLC) e aos princípios gerais da Administração Pública.

A decisão fundamenta que o RLC da entidade, alinhado ao Art. 37, caput, da Constituição Federal, exige a garantia da transparência (Art. 2º, I) e estabelece que a licitação não será sigilosa (Art. 3º). Essa premissa é a base para a análise das irregularidades.

2. A Tese da Publicidade Imperativa na Prova de Conceito (POC)

A irregularidade mais significativa, que fundamentou a procedência parcial, foi a violação da publicidade na etapa de Prova de Conceito.

  • O Fato Concreto: A entidade realizou a POC em “sessão privativa”, restrita à comissão e à licitante vencedora, impedindo o acompanhamento pelos demais interessados.
  • A Justificativa da Entidade: A entidade invocou a necessidade de “preservar a integridade e a confidencialidade dos dados”, bem como a “propriedade intelectual” da empresa.
  • A Análise do TCU: O Tribunal rejeitou veementemente a justificativa, considerando-a “não razoável”. Afirmou-se que a demonstração da solução em ambiente controlado e por período limitado, com o fim exclusivo de verificar a aderência ao edital, não acarreta comprometimento de dados sensíveis.
  • A Superação da Lacuna Normativa: O ponto central da tese jurídica é que, embora o RLC da entidade definisse a POC (Art. 4º, XIX) e permitisse sua exigência (Art. 26, § 4º), ele era silente (apresentava uma “lacuna normativa”) sobre a obrigatoriedade de a sessão ser pública ou privada. O TCU determinou que, diante dessa omissão, prevalecem os princípios constitucionais da publicidade e da transparência, tornando a sessão pública a regra.
  • Insuficiência do Controle “A Posteriori”: O Acórdão também refutou o argumento de que a gravação das sessões e a elaboração de relatórios técnicos seriam suficientes para garantir a transparência. A publicidade exige o controle social em tempo oportuno, e a mera disponibilização de documentos (que a representante alegou poderem ser editados) não substitui o acompanhamento concomitante.
  • A Diretriz (Ciência): A decisão consolidou o entendimento do Acórdão 1.823/2017-TCU-Plenário, determinando “ciência” à entidade para que não mais realize POC de forma restrita.

3. A Tese da Objetividade na Qualificação Técnica (ACT)

A segunda alegação da representante (habilitação indevida) foi afastada, mas a análise do TCU revelou uma falha grave na concepção do edital, que também resultou em “ciência”.

  • O Fato Concreto: O edital exigia, no item 13.1.5, a apresentação de ACT comprovando serviços a “empresas do mesmo porte”. A representante impugnou o atestado da vencedora, alegando que a empresa emissora possuía porte econômico (capital social de R$ 18.000,00) incompatível com o da entidade licitante.
  • A Análise do TCU: O Tribunal concluiu que o erro não estava na habilitação, mas na imprecisão do requisito editalício.
  • O Vício (Subjetivismo): A expressão “empresas do mesmo porte” é genérica, vaga e subjetiva. O edital não definia objetivamente o que entendia por “porte” (se econômico, operacional, número de usuários, faturamento, etc.), gerando insegurança jurídica e potencial restrição à competitividade.
  • Violação do RLC Interno: Essa exigência vaga foi considerada uma afronta ao próprio RLC da entidade (Art. 16, inciso II, alínea ‘b’), que orienta a exigência de aptidão compatível em “características, quantidades e prazos” – critérios objetivos e mensuráveis.
  • A Interpretação “Razoável”: O TCU aceitou a justificativa da entidade de que, na prática, ela interpretou “porte” como porte operacional (volume de acessos mensais). Para um contrato de SaaS, essa interpretação foi considerada “não desarrazoada”. Por isso, a habilitação foi mantida.
  • A Diretriz (Ciência): A Corte de Contas expediu “ciência”para que a entidade, em futuras licitações, se abstenha de usar exigências genéricas de “porte”, substituindo-as por critérios objetivos e mensuráveis, como “número mínimo de usuários ativos mensais” ou “quantidade de licenças simultâneas”.

Conclusão

O Acórdão 5800/2025 – 2ª Câmara é uma deliberação paradigmática que pondera os princípios da eficiência e do interesse público com a legalidade estrita. A decisão de manter o contrato, apesar das irregularidades, fundamentou-se na ausência de periculum in mora (contrato já assinado) e, precipuamente, na vantajosidade econômica obtida. O certame apresentou “elevada competitividade” (13 fornecedores) e “expressiva redução do valor estimado” (quase 58%).

A expedição de “ciência”  em vez da anulação demonstra a aplicação do princípio da proporcionalidade: o TCU optou por uma medida pedagógica e corretiva, evitando um prejuízo maior à Administração (perda de um contrato vantajoso).

As diretrizes jurídicas fixadas são claras:

  1. A Publicidade é Regra Absoluta: Mesmo em regimes licitatórios próprios (Sistema S) e diante de lacunas no regulamento, o princípio da publicidade (Art. 37, CF) é norma de aplicação direta e imperativa, exigindo que fases como a Prova de Conceito sejam públicas.
  2. O Edital Deve Ser Objetivo: Requisitos de qualificação técnica devem ser estritamente objetivos, mensuráveis e vinculados ao objeto, conforme o próprio RLC (Art. 16, II, ‘b’). Expressões vagas como “mesmo porte” são ilegais por introduzirem subjetivismo e restringirem indevidamente a competição.

Referência Bibliográfica:

BRASIL. Tribunal de Contas da União. 2ª Câmara. Acórdão nº 5800/2025. Processo TC 007.862/2025-3. Representação sobre possíveis irregularidades no Pregão Eletrônico (PE) 2025012000064, da Administração Regional do Sesc no Estado de São Paulo. Relator: Ministro João Augusto Ribeiro Nardes. Sessão de 30 de setembro de 2025.

O conteúdo deste artigo reflete a posição do autor e não, necessariamente, a do Grupo JML.

Roberta Luanda Ambrósio

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