Acórdão 754/24 e o Dilema do Controle no Sistema S 

Resumo

Este artigo realiza uma análise crítica do Acórdão 754/2024-Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), que deliberou sobre a obrigatoriedade de as confederações e federações patronais prestarem contas aos Serviços Sociais Autônomos (Sistema S) sobre os recursos recebidos para fins de “administração superior”. Examinam-se os argumentos centrais das entidades, que defenderam a autonomia e a legalidade do modelo atual, e a análise do TCU, que reafirmou a natureza pública dos recursos e o risco sistêmico gerado pela falta de transparência. A decisão final, uma solução de compromisso, afasta a exigência da prestação de contas direta, mas fortalece mecanismos de controle externo. Conclui-se que o acórdão representa uma janela de oportunidade estratégica para que o próprio Sistema S lidere uma modernização em suas práticas de governança, transformando um desafio de controle em uma afirmação de sua legitimidade e compromisso com a transparência.

Introdução

No ecossistema complexo em que operam as entidades do Sistema S, o equilíbrio entre autonomia de gestão e o dever de controle sobre recursos públicos é um tema perene e de alta relevância estratégica. O Acórdão 754/2024 do TCU emerge como um marco nesse debate, ao se debruçar sobre uma das engrenagens mais sensíveis do sistema: a transferência de recursos das contribuições parafiscais para as confederações e federações patronais.

A questão central analisada pelo Tribunal foi a necessidade de as entidades sindicais de cúpula prestarem contas da aplicação desses valores, que lhes são destinados para custear a “administração superior” dos Serviços Sociais Autônomos. Este artigo propõe uma análise aprofundada e fidedigna dessa decisão, destinada a fomentar a troca de conhecimento entre os gestores do Sistema S. O objetivo é dissecar os fundamentos do acórdão, as posições defendidas e, principalmente, as implicações estratégicas e de governança que dele decorrem.

Desenvolvimento

A análise do Acórdão 754/2024 pode ser estruturada a partir do confronto de duas visões: a defesa do modelo vigente pelas entidades e a primazia do controle público defendida pelo TCU.

1. A Posição das Entidades: Defesa da Autonomia e do Modelo Vigente

Convocadas a se manifestar, as entidades do Sistema S e as confederações patronais apresentaram uma defesa coesa de sua estrutura atual, baseada em quatro pilares argumentativos principais:

  • Natureza Remuneratória do Repasse: O argumento central foi o de que os repasses não são uma transferência discricionária, mas uma “justa remuneração” ou “contrapartida” pelos serviços de organização, gestão e administração superior que as entidades sindicais exercem por força de seus decretos de criação ou de lei específica, como no caso do Sest/Senat.
  • Autonomia Sindical: As entidades argumentaram que a imposição de uma prestação de contas configuraria uma intervenção estatal indevida, violando a autonomia sindical garantida pelo Art. 8º da Constituição Federal.
  • Precedente do TCU: Foi fortemente invocado o Acórdão 3.224/2014-Plenário, que já havia firmado o entendimento sobre a inexigibilidade da prestação de contas para essas transferências automáticas, dada a ausência de previsão legal.
  • Natureza Privada dos Recursos Pós-Transferência: Algumas entidades sustentaram a tese, amparada em certas decisões do STF, de que os recursos, ao ingressarem em seus cofres, perderiam o caráter público, passando a integrar seu patrimônio privado.

2. A Análise do TCU: A Primazia do Controle sobre Recursos Públicos

Em sua análise técnica, o corpo instrutivo do TCU e os ministros contrapuseram os argumentos, reafirmando princípios basilares do controle externo:

  • Natureza Pública e Parafiscal dos Recursos: O TCU foi categórico ao afirmar que as contribuições que financiam o Sistema S possuem natureza tributária (parafiscal) e, portanto, são recursos públicos. Essa natureza não se altera com a transferência para as confederações, permanecendo sob a jurisdição do Tribunal.
  • O Risco Sistêmico da Falta de Transparência: O ponto mais crítico da análise do TCU foi a demonstração do risco gerado pela ausência de controle. O caso da compra de imóveis de R$ 24,5 milhões por ente sindical foi citado como exemplo emblemático: sem a segregação contábil, tornou-se impossível aferir a origem do dinheiro e, consequentemente, um eventual desvio de finalidade. Os votos dos ministros registraram a preocupação com o “elevado risco de desvio de finalidade” e de “captura de interesse” dos serviços sociais pelas entidades sindicais.
  • O Obstáculo da Governança Singular: O Tribunal reconheceu que o modelo de governança, no qual presidentes de federações e confederações acumulam a presidência dos conselhos dos serviços sociais, representa um obstáculo prático. Exigir que uma entidade preste contas a outra, quando ambas são chefiadas pela mesma pessoa, seria criar uma “formalidade” de pouca eficácia.

3. A Deliberação Final: Uma Solução de Compromisso

Ponderando os argumentos, o TCU construiu uma decisão que busca um equilíbrio pragmático. A deliberação final estabeleceu que as confederações e federações patronais não estão obrigadas a prestar contas aos correspondentes serviços sociais autônomos sobre os repasses do Art. 240 da Constituição, em respeito ao precedente de 2014 e à falta de lei específica.

Contudo, para não criar um vácuo de controle, o Tribunal instituiu duas medidas estratégicas:

  1. Fortalecimento do Controle via Relatório de Gestão: Determinou que, a partir de 2024, os relatórios de gestão dos entes do Sistema S contenham um item específico e obrigatório sobre os repasses efetuados, fortalecendo a capacidade de fiscalização do próprio TCU.
  2. Indução de uma Solução Normativa: Recomendou à Casa Civil da Presidência da República que avalie a elaboração de uma regulamentação para o tema, apontando a necessidade de uma solução estrutural que defina finalidade, padrões de contabilização e transparência.

Conclusão: Uma Janela de Oportunidade para Liderar pelo Exemplo

Para as entidades do Sistema S, o Acórdão 754/2024-Plenário não deve ser visto como uma vitória da opacidade, mas como uma crucial janela de oportunidade. Ao afastar a imposição imediata da prestação de contas, o TCU, na prática, concede tempo e autonomia para que o próprio sistema lidere uma modernização em suas práticas de governança, antes que uma regulamentação externa mais rígida se torne inevitável.

Este é o momento estratégico para as entidades transcenderem o debate sobre a obrigatoriedade e abraçarem a transparência como um pilar de legitimidade e fortalecimento institucional. A adoção proativa de mecanismos claros de segregação contábil e de publicidade na aplicação dos recursos de “administração superior” não apenas mitigaria riscos reputacionais e de controle, mas também reforçaria a confiança da sociedade e das empresas contribuintes na missão do Sistema S.

Portanto, a deliberação do TCU deve servir como um chamado à ação. Em vez de aguardar passivamente por futuras determinações, cabe às lideranças do Sistema S a iniciativa de desenvolver e implementar, de forma voluntária, padrões de excelência em transparência. Agir agora significa transformar um ponto de vulnerabilidade em uma demonstração de governança robusta, reafirmando o compromisso do Sistema não apenas com a legalidade, mas com os mais elevados princípios da gestão de recursos públicos.

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 754/2024 – Plenário. Processo TC 015.561/2020-8. Relator: Ministro  Marcos Bemquerer Costa. Brasília, DF, 17 de abril de 2024.


O conteúdo deste artigo reflete a posição do autor e não, necessariamente, a do Grupo JML.

Roberta Luanda Ambrósio

Publicações recentes

CREDENCIAMENTO NO ÂMBITO DO SISTEMA S

Por:

Por Julieta Mendes Lopes[1] 1. Conceito e enquadramento. Conforme previsto no art. 4º, inciso IV, do Regulamento de Licitações e […]

30 de setembro de 2025

CRÔNICA DE UMA LICITAÇÃO ANULADA: LIÇÕES DO ACÓRDÃO 1923/2025 DO TCU

Por:

1. INTRODUÇÃO Agentes públicos que atuam na linha de frente das contratações, convivem diariamente com a tensão entre a urgência […]

24 de setembro de 2025

A Decisão TCEMG e a discussão sobre os limites às alterações consensuais nos contratos administrativos

Por:

Por Gabriela Pércio Advogada e Consultora em Licitações e ContratosMestre em Gestão de Políticas PúblicasVice-Presidente do Instituto Nacional da Contratação […]

3 de setembro de 2025