AFINAL, A ASSINATURA DO CONTRATO ADMINISTRATIVO POR DUAS TESTEMUNHAS É MESMO NECESSÁRIA?

A assinatura do contrato é o meio pelo que qual as partes contratantes demonstram, de maneira escrita e inequívoca, que concordam com os termos da avença, aperfeiçoando a relação jurídica. É, portanto, uma forma de manifestação da vontade, um dos elementos essenciais do negócio jurídico.[1]

Amanifestação da vontade nos contratos em geral pode dar-se de diversas maneiras (escrita ou verbal, podendo, até mesmo, ser de forma mímica ou gestual[2]). Todavia, bem se sabe que os contratos administrativos, a rigor, não podem ser formalizados verbalmentee devem observar o que prescreve a Lei 8.666, que assim dispõe:

“Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.
§ 1º Os contratos devem estabelecer com clareza e precisão as condições para sua execução, expressas em cláusulas que definam os direitos, obrigações e responsabilidades das partes, em conformidade com os termos da licitação e da proposta a que se vinculam.
§ 2º Os contratos decorrentes de dispensa ou de inexigibilidade de licitação devem atender aos termos do ato que os autorizou e da respectiva proposta.
(…)
Art. 60. Os contratos e seus aditamentos serão lavrados nas repartições interessadas, as quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem.
Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea “a” desta Lei, feitas em regime de adiantamento.
Art. 61. Todo contrato deve mencionar os nomes das partes e os de seus representantes, a finalidade, o ato que autorizou a sua lavratura, o número do processo da licitação, da dispensa ou da inexigibilidade, a sujeição dos contratantes às normas desta Lei e às cláusulas contratuais.
Parágrafo único.  A publicação resumida do instrumento de contrato ou de seus aditamentos na imprensa oficial, que é condição indispensável para sua eficácia, será providenciada pela Administração até o quinto dia útil do mês seguinte ao de sua assinatura, para ocorrer no prazo de vinte dias daquela data, qualquer que seja o seu valor, ainda que sem ônus, ressalvado o disposto no art. 26 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)”

A partir da leitura dos dispositivos transcritos, extrai-se a obrigatoriedade de o instrumento contratual ser formalizado por escrito, devendo, inclusive, ser lavrado na sede da Administração. Além disso, deverá conter os requisitos essenciais de identificação das partes contratantes, seus direitos e obrigações, bem como a delimitação do objeto, o preço ajustado, seu prazo de execução e o processo de licitação, de dispensa ou inexigibilidade que lhe deu origem.

Além de conter todas as cláusulas essenciais, os contratos devem ser assinados por agente capaz, já que, conforme dispõe o Código Civil brasileiro, este é um dos requisitos de validade do negócio jurídico.[3]

Tradicionalmente, os contratos administrativos são impressos e os interessados, ao serem convocados, comparecem pessoalmente à sede da Administração, comprovando através de documento idôneo que detêm capacidade para firmar o negócio jurídico e apõem sua assinatura de próprio punho no instrumento contratual como forma de externar sua declaração de vontade, que se presume verdadeira.[4]

Mas, além da assinatura das partes contratantes, é praxe administrativa requisitar também a subscrição do termo contratual por duas testemunhas. Será que isso é mesmo necessário?

Nos contratos particulares, a assinatura por duas testemunhas é normalmente exigida por questões de efetividade e segurança jurídica, ou seja, no caso de dúvidas sobre as condições de celebração da avença ou arguição de vícios na formação do vínculo contratual, as testemunhas servirão para, pessoalmente, confirmar a ocorrência e veracidade do ato. Ademais, tal formalidade confere ao termo contratual força de título executivo extrajudicial, conforme estabelece o Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015):

“Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:
(…)
III – o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas”. (grifou-se)

Todavia, no caso de instrumentos públicos, como o contrato administrativo, dispensa-se a assinatura de testemunhas, em razão da presunção de legitimidade dos atos da Administração, consoante bem leciona Hely Lopes Meirelles:

“(…) o contrato assinado com a Administração e regularmente publicado dispensa testemunhas e registro em cartório, pois, como todo ato administrativo, traz em si a presunção de legitimidade e vale contra terceiros desde a sua publicação.”[5]

Aliás, o próprio CPC confere executividade aos documentos públicos:

“Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:
(…)
II – a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor”. (grifou-se)

E o Superior Tribunal de Justiça também já apontou nesse sentido

“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. PRECEDENTES.
1. Trata-se de Embargos de Divergência em que a parte embargante alega divergência entre acórdãos proferidos pela Primeira Turma, nos quais foram apresentados resultados diversos quanto à natureza jurídica de título executivo extrajudicial de contrato celebrado entre pessoa jurídica de direito privado e sociedade de economia mista com participação acionária majoritária de ente estatal (Companhia Rio Grandense de Saneamento – Corsan), integrante da administração indireta do Estado do Rio Grande do Sul, nos termos do art. 585, II, do CPC/1973.
2. A discussão central apresentada é se o contrato celebrado entre particulares e sociedade de economia mista que compõe a administração indireta de ente federativo é documento hábil à promoção de ação de execução por título extrajudicial, nos termos do art. 585, II, do CPC/1973.
3. O acórdão proferido nos presentes autos no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial considerou que o contrato de prestação de serviços celebrado entre a empresa J.L Terraplenagem Ltda – EPP e a Companhia Riograndense de Saneamento – Corsan, a primeira vencedora em procedimento licitatório, e esta última sociedade de economia mista estatal, teria aptidão para se promover a ação de execução por título extrajudicial, considerando-o documento público.
4. Já o acórdão paradigma da Primeira Turma (REsp 813.662/RJ – 2006/0013014-0) entendeu em sentido diverso, não reconhecendo a qualidade de título executivo extrajudicial do contrato administrativo celebrado.
5. A sociedade de economia mista criada pelos entes públicos (União, Estados, Municípios ou Distrito Federal), com personalidade jurídica de direito privado, cuja lei de criação prevê a aquisição de bens e serviços nos termos da Lei de Licitações e Contratos (Lei 8.666/1993), tem derrogado parcialmente seu regime jurídico de direito privado para se submeter ao regime jurídico administrativo em relação à matéria.
6. A Lei 8.666/1993 prevê expressamente que as sociedades de economia mista estatais submetem-se ao regime da Lei de Licitações, o que faz atrair a natureza de documento público do instrumento contratual dela resultante.
7. O art. 585, II, do CPC/1973, ao tipificar quais os documentos com aptidão para inaugurar ação executória, elencou documentos públicos e privados, como a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas; o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores.
8. A jurisprudência do STJ, ao interpretar o disposto no art. 585, II, do CPC, firmou entendimento de que o contrato administrativo celebrado com base na Lei 8.666/1993 possui natureza de documento público, tendo em vista emanar de ato do Poder Público. A propósito: AgRg no AREsp 76.429/PA, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 7/3/2013; REsp 879.046/DF, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 18/6/2009. Precedentes: AgRg no AREsp 76.429/PA, Rel.
Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 7/3/2013; REsp 1.099.127/AM, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 24/2/2010; REsp 879.046/DF, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 18/6/2009; REsp 746.487/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 26/8/2008, DJe 11/9/2008.
9. No caso concreto, mesmo que, ad argumentandum tantum, defenda-se a condição de documento privado do contrato administrativo celebrado pelas partes, nos termos do art. 585, II, do CPC/1973, não afasta a qualidade de título executivo extrajudicial do negócio jurídico celebrado com aptidão para instruir ação de execução.
10. Embargos de Divergência não providos.”[6](grifou-se)

Sendo assim, entende-se ser dispensável a assinatura de contratos administrativos e outros instrumentos jurídicos decorrentes de processos públicos e com ampla divulgaçãopor duas testemunhas, em razão da presunção de legitimidade dos atos da Administração Públicae também porque tal condição não foi imposta pelo ordenamento como requisito de validade dos contratos administrativos, os quais, como dito, devem observar o que prescreve a Lei de Licitações a respeito.


[1] Nas palavras do ilustre civilista Sílvio de Salvo Venosa:
“Na teoria geral dos negócios jurídicos, foi assinalado o papel da vontade. Muito antes de ser exclusivamente um elemento do negócio jurídico, é questão antecedente, é um pressuposto do próprio negócio, que ora interferirá em sua validade, ora em sua eficácia, quando não na própria existência, se a vontade não houver sequer existido. Um contrato no qual a vontade não se manifestou gera, quando muito, mera aparência de negócio, porque terá havido, quiçá, simples aparência de vontade.
(…)
No campo contratual, a manifestação de vontade deve buscar a do outro contratante. (…) No contrato, a manifestação da vontade é livre, quando não for prescrita uma forma pela lei; ou quando assim não o fazem as próprias partes. Destarte, a vontade no contrato pode manifestar-se verbalmente e por escrito, seja por instrumento particular, seja por instrumento público. Também a vontade pode exteriorizar-se por sinais inequívocos, com força vinculante.”VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2015.p. 480-483.
[2] “A manifestação da vontade contratual pode, na verdade, dar-se de forma escrita ou verbal. Pode até mesmo expressar-se de forma mímica ou gestual, quando tais figuras são admitidas pela categoria dos contratos e pelos costumes (…) O mais comum, no entanto, é a vontade negociai manifestar-se por intermédio de palavras, escritas ou faladas. Estudamos que o silêncio pode, por vezes, ter valor como manifestação de vontade (Venosa, Direito civil: parte geral, seção 20.2.2) Todas são formas de manifestação de vontade que podem gerar um contrato. A forma é o continente de um negócio jurídico, de um contrato. É a manifestação externa, perante a sociedade, que atesta existir um negócio jurídico subjacente. Ao mesmo tempo em que serve para exteriorizar a vontade, a forma serve de prova para o negócio jurídico.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil…, p. 488.
[3] Código Civil/2002: “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:I – agente capaz;II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;III – forma prescrita ou não defesa em lei.(…) Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”
[4] CC/2002: “Art. 219. As declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários.”
[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2009.p. 224.
[6] STJ. EDv nos EREsp 1523938/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/08/2018, DJe 13/11/2018.

Ana Carolina Coura Vicente Machado

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