Introdução
O presente artigo examina o Acórdão Nº 790/2025 – TCU – Plenário, que trata de um processo licitatório para contratação de empresa especializada na prestação de serviços de administração, gerenciamento, emissão e fornecimento de auxílio-alimentação, em forma de cartão eletrônico com chip. Este acórdão reveste-se de particular relevância para empresas estatais, uma vez que o caso concreto envolve uma entidade cujas contratações são regidas pela Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais) e regulamento próprio. A análise se debruça sobre uma representação interposta por empresa licitante, que questionava três irregularidades principais: a exigência de credenciamento de estabelecimentos específicos pelo nome empresarial, a fixação de prazo excessivamente curto para comprovação da rede credenciada e a aplicação indevida dos critérios de desempate para Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP). Este artigo visa dissecar a decisão do TCU e extrair aprendizados cruciais para gestores e equipes de licitação de empresas estatais.
Alegações da Representante e Análise do TCU
O Tribunal de Contas da União (TCU) procedeu ao exame de cada uma das alegações formuladas pela empresa representante. Nessa análise, o TCU confrontou os pontos levantados com as justificativas apresentadas pela entidade licitante, bem como com a jurisprudência consolidada da própria Corte, elementos que conjuntamente servem de farol para a atuação das empresas estatais.
1. Exigência de Credenciamento de Estabelecimentos Específicos
A representante questionou a exigência editalícia de que a empresa vencedora comprovasse o credenciamento de supermercados específicos (Asun, Atacadão e Zaffari/Bourbon), argumentando que tal medida restringiria a competitividade e favoreceria empresas já estabelecidas, violando os princípios da isonomia, livre concorrência e legalidade previstos na Constituição Federal e na Lei 13.874/2019 (Declaração de Direitos de Liberdade Economica).
A entidade licitante, em sua defesa, sustentou que a exigência se baseava nas reais necessidades dos seus funcionários, mapeadas através da elevada utilização desses estabelecimentos, visando garantir a continuidade e o conforto no atendimento. Ressaltou ainda que o credenciamento não era condicionante para participação no certame, pois o prazo para sua comprovação ocorreria após a assinatura do contrato.
“O objetivo é resguardar a continuidade no atendimento das necessidades e conforto dos nossos funcionários.
O credenciamento nestas redes não visa o direcionamento a nenhuma empresa e nem ferir o caráter competitivo do Certame, ademais conforme preceitua o subitem 9.2 do Termo de Referência, é especificado prazo para apresentação da rede credenciada a contar da assinatura do contrato. Isso significa dizer, do ponto de vista prático, que nenhum licitante precisa ter em sua rede credenciada os estabelecimentos referidos para participar do certame, ou seja, não se está diante de condicionante à disputa.
Diante disso, entendemos que a rede requerida está dentro dos princípios de razoabilidade e proporcionalidade e que foi definida com base em critérios técnicos. (…)”. Acórdão 790/2025 – Plenário TCU
Para subsidiar sua defesa, a entidade apresentou os seguintes critérios técnicas que embasaram a definição da rede credenciada:
a) A justificativa para a exigência de credenciamento dos estabelecimentos específicos, baseada em estudo que demonstrou o elevado volume de transações realizadas pelos funcionários nesses locais para aquisição de gêneros alimentícios;
b) A definição dos quantitativos no Edital, visando garantir o atendimento das necessidades, o conforto e a liberdade de escolha dos funcionários nos seus municípios de residência, utilizando como parâmetro 15% do quadro de funcionários por localidade, ou, no mínimo, um estabelecimento em locais com menos de sete funcionários.
A unidade técnica do TCU e o Relator, Ministro-Substituto Augusto Sherman Cavalcanti, acolheram a justificativa da entidade. Consideraram que a definição da rede credenciada com base em critérios técnicos e na necessidade dos usuários se insere no campo da discricionariedade do gestor, desde que compatibilize o caráter competitivo com a satisfação das necessidades da entidade. A jurisprudência do TCU (Acórdãos 2.547/2007, 2.651/2007, 587/2009, 1.071/2009, 1.335/2010, 2.802/2013, todos do Plenário, e 7.083/2010 – 2ª Câmara, respalda essa posição, e um caso similar envolvendo o HCPA e a mesma questão já havia sido considerado improcedente pelo Acórdão 2600/2020 – TCU – 1ª Câmara.
O próprio Acórdão 790/2025, ao analisar a matéria, recorda a jurisprudência da Corte:
O edital está em consonância com o que determina o TCU. A propósito: “[…] de acordo com a jurisprudência desta Corte de Contas (Acórdão 2.547/2007, 2.651/2007, 587/2009, 1.071/2009, 1.335/2010, todos do plenário, e 7.083/2010 – 2ª Câmara), os requisitos definidos em edital voltados à rede credenciada devem buscar compatibilizar o caráter competitivo do certame com a satisfação das necessidades da entidade visando garantir o conforto e a liberdade de escolha dos funcionários da instituição para a aquisição de gêneros alimentícios, o que se insere no campo da discricionariedade do gestor, não se constituindo, com base nas informações constantes dos autos, em indício de direcionamento do procedimento licitatório ou perigo de lesão ao erário, sendo, essencialmente parte fundamental do objeto da licitação”.
(…)
Ainda, quanto ao ponto referente a identificação nominal dos estabelecimentos a serem credenciados, ressalta-se que o mesmo ponto foi objeto de impugnação na esfera administrativa e de representação perante o Tribunal de Contas da União, sendo a REPRESENTAÇÃO IMPROCEDENTE (Acórdão 2600/2020 – TCU – 1ª CÂMARA – Entidade: Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Representante: Le Card Administradora de Cartões Ltda).
Quanto aos pontos impugnados acerca da rede credenciada e prazo para apresentação entende-se pela manutenção da decisão da área técnica. Ademais, a rede credenciada e o prazo para apresentação já foram objeto de apreciação pelo Tribunal de Contas da União, no edital do Hospital de Clínicas do HCPA com o mesmo objeto, sendo que a representação que na oportunidade discutia os mesmos pontos ora abordados e foi considerada improcedente – Acórdão 2600/2020-TCU-1ª Câmara). Acórdão 790/2025 – TCU Plenário.
2. Prazo para Comprovação da Rede Credenciada
A segunda irregularidade apontada referia-se ao prazo de 15 dias úteis para comprovação de 70% da rede de estabelecimentos e 30 dias corridos para os 100%, considerado excessivamente curto pela representante, o que, segundo ela, beneficiaria empresas já com rede estabelecida na região.
A entidade licitante defendeu o prazo estipulado, e o TCU considerou-o razoável. A Corte reiterou seu entendimento de que a exigência de apresentação da rede credenciada deve ocorrer somente na fase de contratação, e não como requisito de habilitação, devendo a administração conceder prazo razoável para essa finalidade. O prazo fixado pela entidade foi considerado em consonância com essa diretriz e com precedentes, como o analisado no TC 007.727/2013-5 (Acórdão 961/2013-Plenário), que considerou razoável um prazo de 20 dias. A representante, por sua vez, não apresentou dados que comprovassem a insuficiência do prazo.
“O representante, por sua vez, não apresentou informações ou dados que viessem a amparar as alegações de que seriam necessários um período superior ao exigido em edital para realizar o credenciamento junto a essas instituições comerciais. Da mesma forma, não demonstrou que critérios adotados no certame sejam necessariamente contrários a padrão ou eventual prática do mercado. Caberá à administração contratante, em sede do poder-dever da fiscalização da execução contratual, demandar o cumprimento das cláusulas avençadas, valendo-se dos instrumentos contratuais para essa finalidade.
Não cabe, portanto, razão ao autor nesse quesito, restando sanada a irregularidade anotada”. (Acórdão 790/2025 – Plenário – TCU)
Dessa forma, a análise do TCU sobre o prazo para comprovação da rede credenciada baseou-se na razoabilidade dos prazos estipulados, na ausência de provas concretas da representante e na jurisprudência da Corte, afastando a irregularidade apontada.
3. Aplicação dos Critérios de Desempate para ME/EPP
Por fim, a representante alegou que o edital aplicava indevidamente os critérios de desempate, pois previa que, mesmo havendo preferência para ME/EPP, em caso de persistência do empate, seriam aplicados outros critérios como disputa final e sorteio, sem garantir primeiramente a prioridade legal.
A entidade argumentou que as regras estavam de acordo com a Lei 13.303/2016 e o Acórdão 2107/2023-TCU – 1ª Câmara. Explicou que, no caso de todas as licitantes ofertarem taxa de administração zero (o mínimo possível, dada a proibição de taxas negativas pela Lei 14.442/2022), a preferência para ME/EPP, que se daria pela oferta de preço inferior, ficaria sem aplicabilidade prática. Nessas circunstâncias, o sorteio entre todas as empatadas seria o procedimento correto, conforme o Decreto 10.024/2019 e a Lei 14.133/2021.
O TCU concordou com a argumentação da entidade, citando o Acórdão 2.107/2023-1ª Câmara, que tratou de situação similar onde, diante da impossibilidade de ME/EPP ofertarem lance inferior devido à taxa zero, admitiu-se o sorteio entre todos os licitantes. Assim, não foram identificados reparos nas regras editalícias quanto a este ponto.
“O Acórdão 2107/2023-TCU–1ª Câmara supracitado, e trazido como fundamento para sua argumentação, ratifica o alegado pela entidade, na medida em que tratou de representação no qual o autor alegou descumprimento dos artigos 44, §§ 1º e 2º e art. 45, inciso III, da LC 123/2006, sustentando, em síntese, que apenas as empresas licitantes enquadradas como ME e EPP poderiam ter participado do sorteio. Dada sua relevância, entende-se pertinente trazer trechos que auxiliam a análise.
O entendimento da unidade técnica do TCU naquele caso foi:
8. Inicialmente, impende apresentar os termos dos artigos 44 e 45, da LC 123/2006, in verbis:
Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte.
(…)
Art. 45. Para efeito do disposto no art. 44 desta Lei Complementar, ocorrendo o empate, proceder-se-á da seguinte forma:
I – a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado;
(…)
III – no caso de equivalência dos valores apresentados pelas microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrem nos intervalos estabelecidos nos §§ 1o e 2o do art. 44 desta Lei Complementar, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta.
9. De acordo com o art. 44, foi assegurado, como o critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte, (…)
10. No caso em análise, todos os concorrentes ofertaram o mesmo valor para o lance (taxa de administração de 0%), que, nesse caso, correspondia ao mínimo possível, de forma que impediu, automaticamente, a ME/EPP exercer o direito de preferência estabelecido na LC 123/2006 e no edital, que prevê, especificamente, a apresentação de melhor oferta, ou seja, um lance inferior.
11. Ademais, a impossibilidade de ofertar desconto sobre o valor total, que nesse caso correspondeu a aplicar taxa negativa para a taxa administrativa da licitante, levou à oferta igual das concorrentes e adveio de exigência prevista no Decreto 10.854/2021 e posteriormente da Medida Provisória 1.108/2022 (convertida na Lei 14.442/2022), que expressamente vedou a prática de descontos sobre o valor contratado, in verbis:
(…)
13. Portanto, como as ME e EPP não poderiam ser convocadas para apresentarem proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, nos precisos termos do art. 45, inciso I, da LC 123/2006, o sorteio realmente teria que ser realizado entre todos os licitantes, seguindo o que estabelece o art. 37, parágrafo único, do Decreto 10.024/2019 e o item 5.31 do edital (peça 7, p. 8).
(…)
17. Com relação aos pressupostos para a eventual adoção de medida cautelar, verifica-se que está configurado o perigo da demora; inconclusivo quanto ao perigo da demora reverso; e não há a plausibilidade jurídica das alegações do representante e das verificações feitas por esta Unidade Técnica.
18. No que diz respeito aos indícios de irregularidades, os elementos constantes dos autos permitem, desde já, a avaliação quanto ao mérito da presente representação como improcedente”.
Dessa forma, o Tribunal, no Acórdão 790/2025, concluiu que as regras do edital referentes aos critérios de desempate para ME/EPP estavam aderentes à Lei 13.303/2016 e a jurisprudência da Corte de Contas.
CONCLUSÃO
O Acórdão Nº 790/2025 – TCU – Plenário representa um importante estudo de caso para empresas estatais, culminando na improcedência da representação formulada contra o Pregão Eletrônico da entidade estatal. A deliberação do Tribunal, que conheceu da representação para, no mérito, julgá-la improcedente e indeferir o pedido de medida cautelar, baseou-se na ausência de plausibilidade jurídica das alegações e na não constatação de ofensa ao caráter competitivo da licitação, ao interesse público ou de indício de prejuízo ao erário.
Para as empresas estatais regidas pela Lei 13.303/2016, esta decisão é particularmente emblemática. O TCU validou as exigências relativas à rede credenciada e aos prazos, por estarem justificadas por critérios técnicos e pelas necessidades dos usuários, sem configurar restrição indevida à competitividade – especialmente porque a comprovação ocorreria após a contratação. Similarmente, a sistemática de desempate foi considerada adequada ao peculiar cenário de taxa de administração zero, que inviabilizava legalmente a oferta de proposta de preço inferior por Microempresas (ME) ou Empresas de Pequeno Porte (EPP).
Da análise aprofundada deste Acórdão, extraem-se aprendizados cruciais e reforça-se a importância de diversos princípios jurídicos e administrativos para a governança das licitações em empresas estatais, notadamente:
- Princípios da Isonomia, Livre Concorrência e Legalidade: Pilares da Lei das Estatais, sua aplicação demonstrou que exigências editalícias específicas podem ser legítimas quando justificadas pela necessidade da empresa, sem implicar restrição indevida à competição.
- Razoabilidade e Proporcionalidade: As exigências de credenciamento e os prazos foram validados por serem proporcionais às necessidades da entidade e à complexidade do objeto, evidenciando o contínuo balanceamento que as estatais devem perseguir.
- Discricionariedade do Gestor e Motivação (Art. 30 da Lei 13.303/2016): Foi reconhecida a margem de discricionariedade do gestor na definição de requisitos técnicos, contanto que as decisões sejam devidamente fundamentadas, visando o interesse público e os objetivos empresariais, conforme preconiza a Lei das Estatais.
- Aplicação da Lei Complementar 123/2006 (Estatuto da ME/EPP): O caso concreto ilustrou os limites da aplicação da preferência para ME/EPP quando a oferta de preço inferior se torna inexequível (como no cenário de taxa de administração zero), exigindo atenção na formulação de critérios de desempate.
- Impacto da Lei 14.442/2022: A vedação à taxa de administração negativa (deságio) mostrou-se determinante para a sistemática de desempate, requerendo que as estatais ajustem seus editais e considerem modelos alternativos de contratação.
- Relevância da Jurisprudência do TCU: O Acórdão reforça que as decisões anteriores do Tribunal, como o Acórdão 2.107/2023-1ª Câmara (sobre desempate) e o Acórdão 5.495/2022-TCU-2ª Câmara (sobre credenciamento como alternativa à taxa negativa, comunicado à entidade na decisão), são ferramentas valiosas, oferecendo segurança jurídica e orientação para as empresas estatais.
Em suma, a decisão do TCU no Acórdão Nº 790/2025 reitera, para as empresas estatais, a imperatividade da robusta fundamentação técnica das exigências editalícias e a necessidade de harmonizar a busca pela proposta mais vantajosa com o atendimento eficaz das demandas da entidade. A orientação para que entidade atentasse ao Acórdão 5.495/2022-TCU-2ª Câmara sublinha a diretriz do Tribunal para a adoção de modelos contratuais inovadores e adaptados às evoluções legislativas, como o credenciamento, um caminho que as estatais devem considerar para otimizar seus processos e garantir a conformidade
Referência Bibliográfica:
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 790/2025 – Plenário. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A790%2520ANOACORDAO%253A2025/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0. Acesso em 20/05/25.
BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13303.htm. Acesso em: 20/05/25.