Este artigo técnico aprofunda a análise de um acórdão recente do Tribunal de Contas da União (TCU), com o objetivo de extrair lições valiosas e boas práticas de governança aplicáveis às entidades do Sistema S da indústria. A abordagem se baseia estritamente no Acórdão.
1. Contexto e Fatos do Caso
A decisão do TCU teve origem em uma representação contra possíveis irregularidades em um Pregão Presencial (PP) conduzido por uma entidade do Sistema S da indústria, cujo objeto era o registro de preços para contratação de empresa especializada no fornecimento de mobiliários. A representação apontou que a empresa vencedora do certame atuava como “empresa interposta” de uma empresa fabricante de móveis.
O cerne da questão era um evidente conflito de interesses, uma vez que o proprietário da empresa fabricante era o então dirigente máximo da entidade que conduziu a contratação. Na época dos fatos, o Regulamento de Licitações e Contratos (RLC) da entidade e de sua coirmã vedava expressamente a participação de empresas vinculadas a seus dirigentes, conforme seu art. 39. Em 2024, a norma foi atualizada para o Regulamento para Contratação e Alienação, onde o princípio se encontra no art. 45. O certame, que foi revogado pela entidade, serviu como ponto de partida para a apuração da atuação fraudulenta.
2. Da Fraude à Governança: Análise dos Pontos Críticos
A decisão do TCU demonstra que a fraude à licitação não se manifestou de forma isolada, mas foi o resultado de falhas sistêmicas em pontos críticos da governança. A análise do acórdão permite extrair lições sobre como fortalecer os mecanismos de controle.
2.1. A Imperatividade da Due Diligence Proativa
O caso é um exemplo clássico da falha na aplicação de due diligence (diligência prévia) nas contratações. A entidade não se limitou a seguir o rito formal do pregão; o TCU identificou uma série de vínculos e padrões que, se verificados previamente, teriam impedido a contratação. Um processo de due diligence robusto deveria ter incluído:
- Análise de Vínculos Societários e de Pessoal: O sócio-administrador da empresa interposta era um ex-funcionário da empresa fabricante. Adicionalmente, a empresa interposta não apresentava histórico de funcionários contratados. Esses fatos, combinados com a posição do dirigente máximo da entidade, deveriam ter sido considerados um fator de risco elevado.
- Verificação da Capacidade Operacional do Fornecedor: A empresa contratada atuava como mera revendedora de bens produzidos pela empresa fabricante. As propostas da revendedora eram enviadas em papel timbrado da fabricante, e seu cadastro na Receita Federal exibia o telefone da empresa fabricante. Essa falta de autonomia operacional era um forte indício de fraude.
- Monitoramento de Padrões de Fornecimento: A empresa interposta mantinha uma parceria praticamente exclusiva com a empresa fabricante para as vendas às entidades do Sistema S, totalizando mais de R$ 10 milhões em um período de anos. A constatação desse padrão recorrente deveria ter alertado a equipe de contratações.
- Análise do Comportamento em Outros Certames Públicos: Um dos elementos mais contundentes foi a descoberta de que as duas empresas utilizavam o mesmo endereço de IP (Internet Protocol) para participar de licitações concorrentes em outras plataformas, como o Comprasnet. Essa prática, que simula uma disputa, foi considerada “prova cabal” da atuação conjunta. O acórdão encaminhou cópia da decisão ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal para investigações mais aprofundadas sobre um “esquema de fraude a licitações”.
2.2. A Racionalidade na Escolha da Modalidade Licitatória e das Especificações
A decisão do TCU destaca a necessidade de as entidades do Sistema S optarem preferencialmente por modalidades licitatórias que garantam a ampla competitividade. A escolha do pregão na forma presencial foi criticada, pois esta modalidade é “notadamente mais restritiva da competitividade em comparação à modalidade eletrônica”, que, por sua vez, “facilita as ações de controle”.
Além disso, a análise do acórdão aponta que o “detalhamento excessivo dos itens do pregão” e o “agrupamento excessivo de itens” restringiram indevidamente a competição. Essas práticas foram vistas como um indicativo de direcionamento, uma vez que as especificações se adequavam perfeitamente ao que era produzido pela empresa fabricante.
2.3. A Abrangência da Jurisdição do TCU e a Natureza das Sanções
O acórdão reforça o entendimento de que a competência do TCU para aplicar a sanção de inidoneidade (art. 46 da Lei 8.443/1992) se estende às entidades do Sistema S. Os recursos que gerenciam, de natureza parafiscal, são considerados públicos e se sujeitam à fiscalização do Tribunal.
Mais importante, a decisão deixa claro que a sanção pode ser aplicada mesmo na ausência de prejuízo financeiro comprovado (sobrepreço). A fraude à licitação é configurada pela violação de princípios como a impessoalidade e a moralidade e pelo comprometimento do caráter competitivo do certame. A fraude, nesse contexto, é um ilícito de mera conduta, ou seja, se consuma com a sua prática, independentemente do resultado financeiro.
3. Conclusão
A análise aprofundada da decisão do TCU serve como um guia para aprimorar a governança nas contratações do Sistema S, em especial das entidades da indústria. As lições extraídas do caso demonstram que uma gestão de risco eficaz não se restringe a seguir as formalidades procedimentais. Ela exige a adoção de uma due diligence rigorosa, a preferência por modalidades mais transparentes e competitivas, e a vigilância contínua sobre a obediência aos princípios administrativos.
A inidoneidade declarada pelo TCU às empresas envolvidas reforça a seriedade do tema e a necessidade de que as entidades do Sistema S estabeleçam mecanismos de controle internos robustos. Ao fazê-lo, elas não apenas evitam sanções, mas também asseguram a integridade de seus processos de contratação e a correta aplicação dos recursos sob sua gestão.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1371/2025-Plenário. Ementa: Representação. Fraude à licitação. Utilização de empresa interposta para burlar a restrição, contida no regulamento de licitações, de contratação de empresas vinculadas a dirigentes do Sesi e do Senai. Oitiva das empresas. Rejeição das justificativas. Revelia. Declaração de inidoneidade. Relator: Ministro Benjamin Zymler. Brasília, DF, 25 jun. 2025. Processo nº TC 009.470/2021-2. Disponível em: http://www.tcu.gov.br/acordaos. Acesso em: 16 jul. 2025.
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