Resumo:
Este artigo explora a aplicabilidade dos conceitos indeterminados no ato administrativo, abordando a definição e a evolução do conceito de ato administrativo ao longo do tempo. Em seguida, examina-se a introdução dos conceitos indeterminados, aplicados pela Administração Pública, com uma análise de sua função e controle em sistemas jurídicos comparados. A Lei 14.133/21, que rege as licitações e contratos administrativos no Brasil, serve como foco para conectar esses conceitos à prática dos atos administrativos, assegurando eficiência e transparência nos processos de contratação pública.
1. Introdução
O ato administrativo é uma manifestação fundamental do poder público, possibilitando que a Administração tome decisões orientadas ao interesse coletivo. A inserção de conceitos indeterminados nesses atos confere à Administração flexibilidade para se adaptar às complexidades e dinâmicas sociais e econômicas contemporâneas. Contudo, a latitude interpretativa proporcionada por esses conceitos exige a presença de um controle judicial, que tem o papel de prevenir o uso arbitrário dessa flexibilidade, garantindo que a Administração se mantenha dentro dos limites legais e constitucionais.
Odete Medauar, ao citar Merlin, observa que “a expressão ato administrativo surge como uma decisão de autoridade administrativa ou uma ação, um fato da administração que tenha relação com suas funções’” (Medauar, 2011, p.16). Essa definição ressalta o caráter funcional do ato administrativo, que deve sempre visar a realização dos objetivos do poder público e o respeito aos princípios que regem a administração.
2. Conceito e Evolução do Ato Administrativo
O ato administrativo é um instituto que evoluiu para adequar-se às transformações da sociedade e do direito público. No início, era visto como um ato unicamente de autoridade, subordinado a normas rígidas e com pouca margem para interpretação. Com o tempo, tornou-se um mecanismo dinâmico, permitindo que a Administração Pública atue com flexibilidade.
Segundo Hely Lopes Meirelles, o ato administrativo é “toda manifestação unilateral da vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos administrados ou a si própria” (Meirelles, 2013, p. 165). Essa definição clássica enfatiza o caráter vinculado e unilateral do ato, mas autores contemporâneos destacam que, em situações complexas, o ato administrativo pode necessitar de uma aplicação flexível para atender a variáveis sociais e técnicas.
No direito comparado, o ato administrativo passou por uma evolução significativa. Na Alemanha, no final do século XIX, ele foi caracterizado como uma ação estatal que deve obedecer rigorosamente ao princípio da legalidade, mas com margens de apreciação reconhecidas em determinadas circunstâncias, especialmente em casos que envolvem os chamados “conceitos indeterminados”. Como observa Otto Mayer, citado por Odete Medauar, “o ato administrativo é o pronunciamento autoritário de pertinência da administração, determinativo no caso particular para o súdito, indicando o que, para ele, deve ser conforme o direito” (Medauar, 2011, p. 23). Essa definição destaca o papel diretivo e vinculativo do ato administrativo, que impõe ao administrado uma conduta conforme o entendimento jurídico da administração, conceito ainda hoje utilizado.
Na França, o ato administrativo é analisado principalmente sob a ótica do controle de excesso de poder, pelo qual o Conselho de Estado exerce a função de moderar a discricionariedade da Administração, avaliando se os atos administrativos estão em conformidade com os direitos e liberdades individuais. Conforme explica Odete Medauar, “a busca por um critério de separação da competência entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa levou ao empenho doutrinário na definição e caracterização do ato administrativo” (Medauar, 2011, p. 17). Esse esforço doutrinário estabeleceu um entendimento que distingue a atuação administrativa da judicial, reforçando o controle sobre os limites do poder discricionário da Administração.
2. Conceitos Indeterminados: Definição e Direito Comparado
Os conceitos indeterminados são amplamente utilizados para situações em que a interpretação objetiva não é possível ou desejável. Em termos comparados, sua aplicação varia conforme o sistema jurídico, adaptando-se às particularidades de cada país.
2.1 Alemanha
Na Alemanha, os conceitos indeterminados são historicamente aplicados com uma doutrina de controle progressivo. Inicialmente, o Tribunal Administrativo Federal (BVerwG) conferia ampla discricionariedade à Administração na interpretação de conceitos legais indeterminados. Segundo Engisch, esse processo de interpretação envolve uma decomposição dos conceitos nos seus “elementos típicos constitutivos,” permitindo que a Administração responda às nuances de cada caso (Engisch, 1968, p. 103).
Desde 1991, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BVerfG) intensificou o controle sobre atos administrativos em áreas sensíveis, como o direito de acesso à educação, de modo a garantir a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Antonio Francisco de Sousa observa que essa mudança decorreu de uma ampliação da interpretação do princípio da legalidade, que passou a incluir a supervisão mais próxima da atuação administrativa em setores diretamente relacionados aos direitos fundamentais. Segundo Sousa, “o controle jurisdicional sobre a administração pública deve se intensificar especialmente quando se trata de direitos essenciais à dignidade e ao desenvolvimento pessoal, como a educação” (Sousa, 1994, p. 161). Essa ampliação reflete a compreensão de que, mesmo em contextos de discricionariedade técnica, a Administração não está isenta de respeitar critérios de proporcionalidade e razoabilidade, assegurando que seus atos estejam sempre subordinados aos valores constitucionais.
2.2 França
Na França, o Conselho de Estado (CE) adota o recours pour excès de pouvoir como principal instrumento de controle dos atos administrativos, aplicando-o em diferentes graus de rigor: mínimo, normal e máximo. A intensidade do controle é ajustada de acordo com a natureza do ato e seu impacto nos direitos dos indivíduos. Em áreas sensíveis, como as liberdades públicas, o CE adota um controle mais rigoroso para garantir que a Administração respeite as garantias fundamentais dos cidadãos. De acordo com o princípio estabelecido, quanto maior o impacto do ato administrativo sobre as liberdades individuais, mais estrito é o controle exercido pelo Judiciário.
Nos casos de “alta polícia”, como em questões de segurança pública, o CE aplica um controle mínimo, conferindo à Administração uma maior margem de ação, mas ainda assim assegurando que os atos se mantenham dentro dos limites da legalidade.
Conforme observa Antonio Francisco de Sousa, “é a jurisprudência e não a doutrina que constitui o grande motor do direito administrativo” francês (Sousa, 1994, p. 164). Nesse contexto, o recours pour excès de pouvoir surge como um recurso essencial, pois visa a anulação de atos administrativos que ultrapassem os limites de autoridade conferidos à Administração, assegurando que o poder público não invada áreas protegidas pelos direitos individuais.
2.3. Portugal
Em Portugal, a jurisprudência tende a equiparar os conceitos indeterminados a uma “discricionariedade técnica.” Segundo o entendimento de Marcello Caetano, a “discricionariedade técnica” permite à Administração aplicar critérios de valoração especializados, especialmente em áreas de natureza técnica, sem sujeição plena ao controle jurisdicional (Caetano, 2000, p. 219). O Supremo Tribunal Administrativo português (STA), porém, limita o uso dessa discricionariedade, impondo controle quando há erros manifestos de apreciação ou violação dos princípios administrativos fundamentais.
2.4. Brasil
No Brasil, os conceitos indeterminados são amplamente empregados na regulamentação de políticas públicas e contratos administrativos, conferindo à Administração Pública flexibilidade para responder a situações complexas e mutáveis. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “os conceitos jurídicos indeterminados são aplicáveis quando a lei utiliza noções vagas, vocábulos plurissignificativos que deixam à administração a possibilidade de apreciação segundo critérios de oportunidade e conveniência administrativa” (Di Pietro, 2013, p. 223). Esse uso permite que a Administração ajuste suas ações de acordo com a especificidade de cada caso, especialmente em áreas sensíveis, como saúde pública e meio ambiente. Em questões desse tipo, os tribunais brasileiros exercem um controle rigoroso, buscando equilibrar a discricionariedade administrativa com a necessidade de proteção dos direitos fundamentais, garantindo que o uso de conceitos indeterminados seja orientado pelos princípios da legalidade e da proporcionalidade.
Os conceitos indeterminados, também chamados de conceitos vagos ou normativos, são termos que permitem múltiplas interpretações, utilizados em normas e atos administrativos para dotar a Administração de capacidade de adaptação. Eles surgem como resposta à necessidade de um sistema jurídico que possa acomodar realidades mutáveis, permitindo que a Administração interprete normas de acordo com o contexto e as especificidades de cada caso.
3. Aplicabilidade dos Conceitos Indeterminados nos Atos Administrativos
A aplicabilidade dos conceitos indeterminados permite que a Administração adapte suas decisões às nuances de cada situação, evitando interpretações absolutas e inflexíveis. Esses conceitos são fundamentais em áreas que envolvem avaliação técnica ou de mérito, como segurança, saúde e educação. Em Portugal, Marcello Caetano esclarece que os conceitos indeterminados atribuem à Administração um grau de discricionariedade técnica que permite uma valoração conforme critérios especializados, com o entendimento de que essas decisões técnicas devem ser respeitadas, exceto quando há erro manifesto (Caetano, 2000, p. 218).
No Brasil, o controle dos conceitos indeterminados está relacionado ao cumprimento dos princípios constitucionais, como a moralidade e a eficiência, aplicáveis aos atos administrativos que impactam diretamente os direitos dos administrados. Assim, a Administração Pública pode tomar decisões baseadas em conceitos indeterminados desde que os aplique de forma razoável e transparente.
4. Aplicação dos Conceitos Indeterminados nos Atos Administrativos
Os conceitos jurídicos indeterminados desempenham um papel importante no campo do direito administrativo, pois permitem que a Administração Pública adapte suas decisões às variáveis sociais e econômicas. Esses conceitos são propositalmente vagos, sendo compostos por termos plurissignificativos que conferem uma margem de interpretação à Administração, permitindo uma análise baseada na conveniência e na oportunidade do caso concreto. Essa flexibilidade, contudo, é sempre limitada pelo princípio da legalidade, que orienta a atuação administrativa e garante que a discricionariedade não ultrapasse os limites impostos pela legislação e pelos princípios constitucionais.
No contexto das contratações públicas, os conceitos indeterminados são amplamente utilizados para garantir que a Administração possa identificar e selecionar as propostas que melhor atendem ao interesse público, indo além de critérios puramente objetivos, como o preço. A Lei 14.133/21, que regula licitações e contratos administrativos no Brasil, faz uso de termos indeterminados, como “vantajosidade” e “adequação”, conferindo à Administração a possibilidade de avaliar as propostas de forma ampla, considerando fatores que melhor atendam à finalidade pública.
Para Meirelles, “proposta mais vantajosa é a que melhor atende ao interesse da Administração, aquela que melhor servir aos objetivos da licitação, dentro do critério de julgamento estabelecido no edital” a vantajosidade de uma proposta em licitações públicas deve ser fundamentada em critérios que vão além do preço, atendendo ao princípio da eficiência (Meirelles, 2013, p. 337). Isso permite à Administração escolher uma proposta que, embora possa não ser a mais barata, demonstre ser a mais adequada para o serviço ou obra pretendida. No entanto, o uso de conceitos indeterminados em contratações públicas exige um controle rigoroso por parte dos órgãos de fiscalização e do Poder Judiciário, assegurando que as escolhas administrativas estejam de acordo com os princípios da economicidade, transparência e moralidade.
Assim, o uso de conceitos indeterminados nos atos administrativos de contratação pública exige não apenas uma fundamentação sólida, mas também uma análise que demonstre a coerência entre a decisão e os objetivos legais do ato. Isso garante que a discricionariedade seja exercida dentro dos limites estabelecidos pela Constituição e pela legislação, promovendo um equilíbrio entre flexibilidade administrativa e responsabilidade na gestão dos recursos públicos.
5. Controle pelo STF e TCU sobre os Atos Administrativos Baseados em Conceitos Indeterminados
O STF e o TCU desempenham papel fundamental no controle dos atos administrativos que empregam conceitos indeterminados em processos de contratação. O STF, ao analisar atos administrativos que aplicam conceitos indeterminados, enfatiza que a discricionariedade técnica não pode ser confundida com liberdade absoluta, mas deve respeitar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. “Os atos administrativos que envolvem a aplicação de “conceitos indeterminados” estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração” (RMS n. 24.699-DF, Relator: Min. Eros Grau).
No TCU, o controle ocorre com ênfase em garantir a eficiência e a economicidade nas contratações públicas. O TCU analisa o conceito de vantajosidade à luz de critérios objetivos, verificando se a escolha da Administração foi baseada em uma avaliação criteriosa das alternativas.
7. Conclusão
A aplicação de conceitos indeterminados nos atos administrativos representa uma estratégia fundamental para que a Administração Pública responda de maneira flexível às complexidades da sociedade contemporânea. Esses conceitos, caracterizados por vocábulos plurissignificativos, conferem à Administração uma margem interpretativa que possibilita a adaptação de suas decisões às particularidades de cada situação. No entanto, essa flexibilidade demanda uma vigilância constante para evitar abusos de poder e arbitrariedades.
No direito comparado, observa-se que países como Alemanha, França e Portugal enfrentaram o desafio de equilibrar a discricionariedade técnica e o controle jurisdicional, cada qual adotando mecanismos e graus de rigor específicos para garantir que o uso de conceitos indeterminados respeite os direitos fundamentais dos cidadãos. No Brasil, a aplicação desses conceitos encontra respaldo na Constituição e nos princípios administrativos, especialmente no que se refere às contratações públicas, onde a Lei 14.133/21 incorpora termos como “vantajosidade” e “adequação” para que a Administração selecione propostas que melhor atendam ao interesse público, sem se restringir a critérios exclusivamente objetivos.
Contudo, o exercício dessa discricionariedade não é ilimitado. A doutrina e a jurisprudência brasileiras destacam a necessidade de fundamentação sólida e de observância aos princípios da legalidade, moralidade, transparência e economicidade. Nesse sentido, o papel de órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Supremo Tribunal Federal (STF) é crucial para garantir que o uso dos conceitos indeterminados se mantenha dentro dos limites legais e constitucionais, assegurando que a atuação administrativa esteja em consonância com o interesse público e a proteção dos direitos fundamentais.
Em síntese, a aplicação de conceitos indeterminados nos atos administrativos promove uma atuação mais eficiente e adaptável da Administração Pública, mas também requer um controle rigoroso para evitar desvirtuamentos. A experiência comparada e o desenvolvimento da legislação e da jurisprudência brasileira revelam que a combinação entre discricionariedade e controle é fundamental para uma administração pública responsável, comprometida com a transparência e com o cumprimento dos objetivos constitucionais.
Bibliografia
– Caetano, Marcello. Manual de Direito Administrativo*. Coimbra: Almedina, 2000.
– Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Atlas, 2011.
– Debbasch, Charles. Le Contentieux Administratif. Paris: Montchrestien, 1984.
– Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2013.
– Engisch, Karl. Einführung in das juristische Denken. Heidelberg: Springer, 1968.
– Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2013.
– Medauar, Odete e Schirato, Vitor Rhein. Os Caminhos do Ato Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
– Sousa, Antonio Francisco de. Direito Administrativo Comparado: Alemanha, França, Portugal e Brasil. Coimbra: Almedina, 19