INTRODUÇÃO
A exemplo do que já ocorreu em anos anteriores, mais uma vez a administração Pública se depara com mudanças nas orientações para contratações públicas, nas vésperas do final de ano. Presentinho Natalino. Neste final de 2019 tivemos o Decreto nº 10.183 publicado no D.O.U em edição extra em 20 de dezembro de 2019, que alterou o Decreto 9.507/2018, que dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Mais precisamente foram duas mudanças, que serão tratadas brevemente aqui, na qual também será apresentado um breve panorama da terceirização frente ao Decreto 9.507/18 alterado.
CENÁRIO NORMATIVO DA TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL
Todos estamos acompanhando o avanço das terceirizações no Brasil que rumou para a possibilidade de ser realizada também em relação às atividades-fim, e não só as atividades consideradas meio, como inicialmente se prospectava. É nessa linha que o legislador traçou a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017 e 13.429/17) bem como o Supremo Tribunal Federal nos julgados das ADPF nº 324 e REXT nº 958.252. Entretanto, a ampliação para as atividades-fim não se aplica para a administração pública, porque o ponto de discussão para ela é outro. Como diz a expressão popular: o buraco é mais embaixo para terceirização no âmbito público.
A administração pública, por força do inc. II do art. 37 da Constituição Federal, não pode valer-se da terceirização com a mesma amplitude das empresas privadas, cujo teor obriga o concurso público para o provimento de cargos e empregos públicos, sendo este o maior óbice para a terceirização, em linhas gerais. Se a Constituição consagra o concurso público como meio de ingresso aos quadros da administração pública, é a legislação infraconstitucional que dispõe sobre a listagem de afazeres que os servidores concursados terão.
Com efeito, tanto a Lei 8.666/93 quanto a Lei 13.303/16, prescrevem normas gerais de licitações e contratos para a administração pública e para as empresas públicas e empresas de economia mista, respectivamente. No entanto, não trazem em seu escopo os parâmetros e condições, bem como os tipos de serviços que podem ou não ser terceirizados, o que atualmente, no nível federal, é feito pelo Decreto 9.507/2018[1] e pela IN n° 5/2017.
O Decreto 9.507/2018, por sua vez, estabeleceu regras distintas para a administração pública federal direta, autárquica e fundacional e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, prescrevendo dois regimes diferentes, na qual se verifica pela leitura do seu artigo 4º[2] que as Estatais possuem maior flexibilidade para a terceirização, o que se justifica, tendo em vista serem pessoas jurídicas de direito privado e, algumas ainda exploram diretamente atividade econômica, estando inseridas num cenário concorrencial, submetendo-se ao regime jurídico das empresas privadas, nos termos do inc. II do § 1º do art. 173 CF/88.Precisam, portanto, compatibilizar as regras do setor público, dentre os quais se aplica a exigência de concurso público, com este espírito do direito privado. Tarefa sempre bastante desafiadora.
A terceirização nas empresas estatais e subsidiárias, aproxima-se da linha adotada pelo STF expressa no verbete do Tema 725 do STF cujo acórdão de mérito foi publicado em 13 de setembro de 2019, que permite às “empresas” uma gestão técnica mais descentralizada, na tão falada “terceirização empresarial”.
Tema 725 STF:“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
No caso das Estatais e subsidiárias, as atividades não terceirizáveis compatíveis com as atribuições de seus cargos, podem ser suavizadas pela justificativa nos princípios da eficiência, economicidade e razoabilidade, mas não podem distanciar-se dos basilares princípios da eficiência, impessoalidade e moralidade, que norteiam todas as contratações na área pública.
Mas voltando para a administração pública federal direta, autárquica e fundacional, nos incisos do artigo 3º do Decreto 9.507/2018, estão previstos os serviços que não podem ser terceirizados por elas:
“Art. 3º Não serão objeto de execução indireta na administração pública federal direta, autárquica e fundacional, os serviços:
I – que envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle;
II – que sejam considerados estratégicos para o órgão ou a entidade, cuja terceirização possa colocar em risco o controle de processos e de conhecimentos e tecnologias;
III – que estejam relacionados ao poder de polícia, de regulação, de outorga de serviços públicos e de aplicação de sanção; e
IV – que sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade, exceto disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
Desta feita, sem querer esgotar a temática, nem entrar na fundamentação que justifica cada inciso do art 3º, podemos concluir, que a terceirização deve ser restrita à atividade não coincidente com as atribuições de cargos e empregos públicos e que não diga respeito às questões maiores institucionais e estratégicas ou ao exercício do poder de polícia. Como se pode observar e como não poderia deixar de ser, o Decreto 9.507/2018 foi bem mais restrito para a Administração Pública Federal do que a linha de terceirização adotada pela Lei 13.429/19 para a iniciativa privada, na qual deixa claro que a terceirização na administração pública fica restrita às atividades secundárias, de suporte ou apoio e desde que não abrangidas nas atribuições de cargos e empregos públicos, em respeito à regra constitucional do concurso público, pouco fugindo da linha tênue do conceito relativo a atividades-meio, na qual se vale a tão falada e temida Súmula 331 do TST.
Ponto nodal do instituto da terceirização, é que ela diz respeito a uma atividade, nunca a uma carreira. Terceiriza-se, sempre, um serviço, não uma atribuição de um cargo. Contrata-se o serviço, nunca a mão de obra em si. De forma alguma, pode-se identificar superposição de atividades ou funções entre os terceirizados e as funções exercidas por servidores ou empregados de carreira[3], afastando-se cogitações de infringência à regra do concurso público.
Nessa linha ainda, o Decreto 9.507/2018 foi ainda mais limitador e previu no parágrafo 1º do art 3º que a Administração Pública pode contratar serviços para o apoio de suas atividades, sem transferir a decisão ou ato derradeiro. A palavra final é sempre da Administração Pública, que pode ser apenas subsidiada por terceiros, nunca por eles substituído. A atuação dos terceirizados precisa ser secundária, atuando como suporte ou apoio, nunca principal, na mesma linha insculpida pelo artigo 13 da Lei nº 8.666/1993 que permite a terceirização dos serviços técnicos profissionais especializados.
“Art. 3º […] […] § 1º Os serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios de que tratam os incisos do caput poderão ser executados de forma indireta, vedada a transferência de responsabilidade para a realização de atos administrativos ou a tomada de decisão para o contratado.”
REVOGAÇÃO DA LIMITAÇÃO PARA TERCEIRIZAR SERVIÇOS DE APOIO RELACIONADOS AO PODER DE POLÍCIA
Por sua vez, a limitação a terceirização na Administração Pública, imposta pelo Decreto 9.507/18 foi intensificada pelo parágrafo 2º do art. 3º, cujo teor prescrevia que “os serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios de fiscalização e consentimento relacionados ao exercício do poder de polícia não serão objeto de execução indireta”. Esta limitação, finalmente e com salva de palmas, foi revogada com a publicação em 20 de dezembro de 2019 D.O.U do Decreto 10.183 e com isso, abre-se novamente a possibilidade de contratar serviços de apoio às atividades próprias ao poder de polícia.
Muito criticada, a limitação imposta pelo parágrafo segundo do art 3º, então revogado, acabava por dificultar as atividades operacionais de muitas instituições, além de não ser coerente frente à possibilidade expressa de terceirizar serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios de atos institucionais, estratégicos ou de regulação e proibi-los para os atos de apoio ao poder de polícia, tão importantes quanto aqueles, e que afeta a esfera jurídica de terceiros em todos os casos, ainda que indiretamente.
Como já bastante debatido no âmbito doutrinário, o poder de polícia não pode ser terceirizado pela Administração Pública, por tratar-se de atividades que compreendem limitações de direitos individuais de livre iniciativa da atividade econômica, tratando-se de uma atividade inerentemente estatal. Com relação a essa questão, não parece haver controvérsias.
Conforme Carvalho Filho (2008), a expressão poder polícia pode comportar dois sentidos, sendo um amplo, significa toda e qualquer atividade estatal que restringe direitos individuais e no sentido restrito, onde estariam incluídas tão-somente atividades administrativas, subjacentes à lei.
Tecnicamente a definição legal do vem a ser poder polícia, é feita no art. 78 do Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Há muitos anos[4], vinha sendo reconhecido como passível de terceirização atos auxiliares, instrumentais ou acessórios ao poder de polícia, desde que preservada a competência do agente público com relação à produção do ato final que interfere na esfera jurídica de terceiros.
Nas palavras do grande jusadministrativista Justen Filho (2012) a atividade de poder de polícia se dá basicamente por três formas: a regulamentação (edição de normas infralegais gerais); a emissão de decisões; e a coerção fática propriamente dita.
O Superior Tribunal de Justiça, no emblemático REsp 817.534/MG (Segunda Turma, rel. Min. Mauro Campbell, julgado em 10.11.2009), considerou que as atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupos, a saber: (I) legislação, (II) consentimento, (III) fiscalização e (IV) sanção. Nessa linha, cogita-se a possibilidade de terceirizar, apenas atos de consentimento e de fiscalização acessórios relacionados aos fatos administrativos do poder de polícia propriamente dito, pois atos referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção, constituindo monopólio estatal.Os terceirizados podem colocar à disposição do Poder Público os recursos materiais e técnicos necessários ao exercício da autoridade. Não se admite, que um terceiro exerça são atividades onde se verifique a imperatividade e atividades de cunho coercitivo estatal.
Em outras palavras, defende-se é a possibilidade de repassar para terceiros atos que deflagram efeitos meramente materiais, operacionais ou de execução, incapazes de influenciar direitos, que poderiam ser classificados comofatos administrativos (ou fatos da administração, na definição de Di Pietro)[5], pois não se destinam aproduzir efeitos no MUNDO jurídico. São atos de natureza eminentementeexecutória, derivados de condutas administrativas. Conforme a definição de José Cretella[6], o fato administrativo tem por objetivo efeitos práticos, que apenas servirão de apoio na consecução do poder de polícia, podendo ou não ser derivados de um ato administrativo.
Há inúmeros cases polêmicos nesta linha, como a terceirização do serviço “190” da Polícia Militar do Estado de São Pauloe a terceirização do assessoramento do controle imigratório nos aeroportospela Polícia Federal em 2012. De forma prática, pode ser terceirizado os serviços de apoio a fiscalização, os chamados serviços de verificação independente (técnicos e empresas especializadas)[7], que envolvam elaboração de mapas, checklist e estudos técnicos, elaboração de relatórios, análise de planilhas e de documentação, bem como outras atividades não-coativas, que sirvam de apoio mas não um auto de infração, de apreensão ou de sanção que refere-se diretamente ao exercício do poder polícia.
RETIRADA A LIMITAÇÃO DA GARANTIA AO EQUIVALENTE A DOIS MESES DO CUSTO DA FOLHA DE PAGAMENTO DOS EMPREGADOS DA CONTRATADA
Outra alteração promovida pelo Decreto n. 10.183/19 foi a alteração do inciso IV do art 8º, que assim passou a dispor:
Art. 8º Os contratos de que trata este decreto conterão cláusulas que:
(…)
VI – exijam a prestação de garantia, inclusive para pagamento de obrigações de natureza trabalhista, previdenciária e para com o FGTS, em valor correspondente a cinco por cento do valor do contrato, com prazo de validade de até noventa dias, contado da data de encerramento do contrato; e
Na redação original do Decreto 9.507/18 a garantia exigida deveria corresponder a 5% do valor do contrato, porém limitada ao equivalente a dois meses do custo da folha de pagamento dos empregados da contratada. Tal obrigação trazia em seu bojo duas consequências diretas: (1) a necessidade de elaboração de planilhas de custos e formação de preços com nível de detalhamento que permita a identificação dos custos da mão de obra e, (2) a possibilidade da garantia ser pouco significativa em relação ao risco de descumprimento de obrigações sociais e trabalhistas em contratos onde o custo de equipamentos, materiais e uso de tecnologia pesam muito mais do que o custo da mão de obra propriamente dito. A primeira consequência não me parecia ser um problema. Ao contrário, é uma prática consolidada e embasada legalmente pela própria IN SEGES/MP n. 5/17. Já a segunda consequência da limitação, frequentemente tornava a garantia irrisória. Além do mais, tal limitação não encontrava guarida na determinação trazida pelo art. 56, §2º, da lei nº 8.666/93. Sendo a garantia contratual um ato discricionário da Administração Pública, de fato cabe a ela a definição do percentual que compreenda necessário para, ao menos minimizar, os riscos de possível descumprimento contratual.
CONCLUSÃO
É fato que a terceirização de serviços é caminho sem volta, tanto na esfera privada quanto na pública. Há inúmeras vantagens nela que até os mais resistentes às mudanças concordam. Mas também, um punhado grande de óbices legais, além do olhar de desconfiança da sociedade, que cresce na medida que casos de terceirizações mal sucedidas, ilícitas ou fraudulentas vêm a tona na mídia.
Não se pode negar o avanço normativo e doutrinário sobre a temática da terceirização, mas sua aplicação prática, de atividades que podem ou não ser terceirizadas, é sempre bastante emblemática. Nesse contexto, cabe ao gestor público a difícil, mas de fundamental importância, tarefa de identificar as situações em que é legítimo transferir para privados atividades atreladas ao atendimento de uma necessidade administrativa, verificando se a contratação terceirizada é medida adequada, necessária e proporcional às circunstâncias fáticas.
Em linhas gerais, a terceirização na administração pública no Brasil tem bases legais históricas, que permitem a execução indireta de atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade, excluídas apenas as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, sendo possível, após a edição do Decreto 10.183/2019 que revogou o parágrafo 2º do art. 3º do Decreto 9.507 publicado em 24 de setembro de 2018, aterceirização de atividades de apoio ao poder de polícia, desde que se limite a atividades materiais acessórias, objetivas, e não-coativas do Estado.
Desta forma, mais do que nunca, a contratação de um serviço terceirizado exige um planejamento prévio, bem construído, que enfrente essas questões relacionadas ao caso concreto. Não se admite improvisos ou arranjos, bem como a terceirização sendo utilizada como forma de suprir mão de obra, mas sim como um modelo estratégico de gestão, sempre relacionada com os princípios norteadores das contratações públicas.
BIBLIOGRAFIA
DECRETO Lei 10.183 de 20 de dezembro de 2019 publicado no D.O.U Extra de 21/12/2019. Altera o Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018, que dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/794991858/decreto-10183-19 Acesso em 26 de dezembro de 2019
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 16ª edição. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999
CARVALHO FILHO, J. dos S. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23a edição. São Paulo: Editora Atlas, 2010.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
(*) A autora é especialista em terceirização de serviços e elaboração de planilha de custos e formação de Preços e colaboradora deste Portal.
I – caráter temporário do serviço;
II – incremento temporário do volume de serviços;
III – atualização de tecnologia ou especialização de serviço, quando for mais atual e segura, que reduzem o custo ou for menos prejudicial ao meio ambiente; ou
IV – impossibilidade de competir no mercado concorrencial em que se insere.