Nesse momento de exceção em que vivemos, a Administração Pública brasileira se vê forçada a executar ações que, claramente, darão novo significado a pelo menos dois de seus princípios norteadores: impessoalidade e legalidade estrita.
O impacto imediato de decisões relacionadas às contratações públicas no mercado privado, na sociedade, na prestação de serviços públicos, na própria contenção da situação emergencial e na responsabilidade dos agentes envolvidos exigirá prudência, bom-senso e, sobretudo, coragem. Entraremos em um período em que não será possível observar estritamente a Lei 8.666/93 e a Lei 10.520/06, nem seguir à risca orientações dos tribunais de contas ou da doutrina a que estamos acostumados a consultar. Isso também não será algo que se possa exigir, de forma justa, daqueles que estão à frente da solução de problemas concretos.
Para além das contratações emergenciais da 13.979, as contratações regulares precisarão ser repensadas para sejam o motor da estratégia que irá movimentar a economia nos próximos meses. Isso poderá significar abrir mão do exercício de prerrogativas públicas, tomar decisões sem o atendimento de um ou alguns requisitos legais ordinários, tomar providências que não atendam 100% ao interesse público e, sobretudo, interpretar as leis sob a perspectiva da solução do problema, minimizando o tecnicismo e valorizando a profusão de variáveis concretas em que o gestor estará envolvido.
Nesse contexto, seguem algumas proposições que visam afastar o receio dos fornecedores em contratar com a Administração, frente ao risco de não receber ou de serem sancionados caso não consigam cumprir o compromisso, bem como estratégias preliminares para a utilização do poder de compras como motor fundamental ao fomento da economia:
- Redução dos quantitativos contratados por licitação ou contratação direta realizada, ou em cada lote, se for o caso, para que seja possível contratar com mais de um fornecedor, estimulando a economia dos pequenos com a melhor distribuição de recursos e reduzindo os riscos do inadimplemento;
- Para contratações que não sejam emergenciais, priorizar a dispensa em razão do valor pelas mesmas razões acima, em detrimento das orientações jurisprudenciais sobre fracionamento de despesa para objetos que não caibam a modalidade pregão;
- Ausência de previsão de penalidades, especialmente a multa, porque a mera previsão, com necessidade de justificativas aceitas pela Administração para não ser penalizado, pode gerar o receio do fornecedor em participar;
- Oferecer garantias de que o pagamento ocorrerá ou, em última medida, disciplinar de forma transparente as condições de pagamento e suas dificuldades, caso existam, fortalecendo a relação de parceria e aumentando a segurança jurídica;
- Simplificar ao máximo o conteúdo dos editais, utilizando linguagem simples e direta para estimular a participação e evitar a necessidade de pedidos de esclarecimento e impugnações;
- Estender a todas as contratações, por período a considerar, a flexibilização da exigência de certidões de habilitação, de forma devidamente motivada, incluindo certidões de regularidade fiscal, já que a realidade será de não pagamento de tributos de qualquer natureza e, provavelmente, de recrutamento de toda força de trabalho possível, em alguns casos.
A certeza de que a maioria dessas providências não seria sequer cogitada em tempos de normalidade é a mesma que dá suporte à possibilidade absoluta de sua implementação, isoladamente ou em conjunto, mediante ato normativo ou decisão de autoridade competente, conforme o caso, devidamente motivada, visando a superação dos obstáculos que se já avizinham. É fundamental compreender que, apesar de não se tratar de um cheque em branco, a situação ora vivenciada e cujos efeitos se farão sentir por tempo ainda indeterminado, está muito além de eventuais arguições formais de inconstitucionalidade ou ilegalidade de decisões, cumprindo ao gestor atuar com agilidade e assertividade em busca da minimização ou contenção dos seus efeitos.