COMPETÊNCIAS GERAIS E ATRIBUIÇÕES DA ASSESSORIA JURÍDICA E SEU PAPEL NA ESTRUTURA DA GOVERNANÇA PÚBLICA

Uma vez que deixamos estabelecidas as premissas a partir das quais atua o advogado público na atividade de advocacia preventiva, cumpre agora a missão de estabelecer as margens de sua atuação, considerando não só sua atividade-fim, mas também o seu papel no sistema de Governança Pública, notadamente como orientador dos diversos setores e agentes da Administração que intervêm no conjunto de procedimentos que compõe o ciclo da contratação.

Visão sistêmica do processo de contratação pública

No MUNDO em que hoje vivemos, mesmo diante das maravilhosas implicações que a modernidade traz, percebemos com bastante nitidez uma exagerada compartimentalização do conhecimento, ou seja, excessiva especialização de áreas do conhecimento que se tornam cada vez mais específicas, dividindo e subdividindo o conhecimento humano, bem como os processos cognitivos em uma catarse que parece não ter fim. Essa característica do MUNDO moderno acarreta um sério problema que se resume no afastamento da noção de indivisibilidade humana. Em uma visão peculiarmente pragmática, Getúlio Silva Lemos[1] anota que, como consequência do que há pouco foi exposto, vem “surgindo os estudiosos que sabem quase tudo de quase nada.” Com isso, os processos cognitivos complexos, isto é, aqueles que envolvem, necessariamente, várias áreas do saber humano, acabam limitados justamente por não ultrapassar os limites científicos daquele específico tema, quando, em verdade, é intrinsecamente dependente dessa liberdade. Já nos idos da década de 70, Hilton Japiassu[2], um dos maiores estudiosos do fenômeno da interdisciplinaridade no Brasil, era enfático quando afirmava que “cativado pelo detalhe, o especialista perde o sentido do conjunto, não sabendo mais situar-se em relação a ele.” O autor acrescenta ainda que:

“Há problemas que para serem resolvidos pressupõem o diálogo entre saberes, conhecimentos e disciplinas. No entanto, ainda trabalhamos por disciplinas. Cada disciplina através de seu enfoque específico desenvolve instrumentos para conhecer a realidade e os problemas a partir de um determinado ponto de vista, ou seja, é capaz de revelar uma dimensão do humano. Mas essa visão unidisciplinar necessariamente fragmenta o objeto e o reduz (de acordo com os próprios limites da disciplina).”

Trazendo essa problemática para o campo do processo de contratação, podemos verificar que esse excesso de compartimentalização também se mostra prejudicial ao seu desiderato precípuo, que é o atendimento às demandas de interesse público a que servem.

O desenvolvimento sistêmico da instrução do processo de contratação desde a fase interna até a execução completa do contrato, com o recebimento definitivo do objeto, envolve, necessariamente, a intervenção de várias especialidades profissionais e de vários setores administrativos do órgão. Estes setores congregam seus esforços, conhecimentos e técnicas para atingir a finalidade pretendida. Entretanto, o que se observa na imensa maioria dos órgãos e entidades é que cada um desses agentes, atuando dentro da sua especialidade, se comporta de forma desconectada das demais atividades, concentrando-se especificamente na sua. Pode-se dizer que o processo de trabalho sofre uma abordagem meramente multidisciplinar, ou seja, a soma da atividade de profissionais de diversas áreas, não implicando necessariamente em integração destes para atingir o nível de entendimento mais amplo do processo. Desprovido, portanto, de visão de conjunto. Cada profissional se restringe a atuar de modo a somar com a atividade inerente à sua especialidade para o andamento do processo. O seu fim é a sua própria e restrita atividade e não o resultado do processo. Com isso, anotamos uma série de problemas que atravancam a marcha processual, mas que facilmente poderiam ser evitados. A lentidão do processo causada, por essa abordagem estabelecida de forma cultural, invariavelmente provoca a demora no atendimento da necessidade, e, não raro, a inviabilização da execução dos projetos a que serviriam. Um exemplo prático (e muito frequente) ilustrará bem a presente situação. Alertamos que qualquer semelhança, não terá sido mera coincidência.

Digamos que o setor de TI elabore um Termo de Referência para contratação de um determinado serviço. Este documento de referência irá balizar a produção do edital e da minuta do contrato. Uma vez que tais minutas estejam finalizadas, segue-se, por força do comando insculpido no art. 38, par. único da L. 8.666/93, para aprovação da Assessoria Jurídica. Lá chegando, o parecerista vislumbra cláusulas que entende restritivas ao caráter competitivo do torneio e o devolve ao Setor de TI, responsável pela elaboração do Termo de Referência, para readequação. A área de TI, desejando insistir na cláusula embargada pelo setor Jurídico, elabora uma justificativa técnica e a apresenta ao Jurídico, que mantém a discordância. Fácil perceber que este processo permanecerá se movimentando se, contudo, nada produzir, adiando a providência.

Considerando o nosso exemplo acima, e também o fato de que a movimentação de processos administrativos, mesmo nos órgãos de estrutura mais moderna e organizada (infelizmente uma pequena minoria, diga-se), sempre será rebuscada de burocracia. Cada despacho de encaminhamento levará alguns dias para ser cumprido. E isso se reflete diretamente no tempo de atendimento da demanda. Políticas públicas que dependiam daquela contratação levarão maior tempo para serem implementadas; os estoques de materiais não serão repostos em tempo adequado, o que prejudica imediatamente a prestação dos serviços públicos, obras vão ver seus cronogramas-físico financeiros sendo adiados, causando prejuízos com o perecimento daquilo que já fora executado e encarecendo o custo do componente da administração local. Essas e outras mazelas são anotadas diariamente. Há (muitos) relatos de processos licitatórios que levam quase um ano para serem concluídos desde a deflagração até a data da realização da licitação.

Isso ocorre justamente porque a modelagem de trabalho, por não haver compartilhamento de conhecimento, e consequentemente, comprometimento, entre os setores operacionais e o órgão consultivo jurídico, pois cada um realiza a sua tarefa apenas somando-a ao conjunto de atos já desenvolvidos, não como se fosse atividades complementares, mas, sim, autônoma. Como a atuação do Jurídico depende da correta instrução dos setores que lhe antecederam, ele só poderá executar positivamente a sua atividade (dando prosseguimento ao processo com parecer favorável, aprovando a minuta) se a atividade anterior chegar a ele já saneada. Mas, porque razão ambos os setores — TI e Jurídico — não “conversaram” antes para que o processo já fosse encaminhado devidamente alinhado? Porque esse desperdício de tempo?

Essa abordagem multidisciplinar encarada de forma simplista pelos respectivos atores acarreta um grave problema de comunicação entre os diversos setores envolvidos no processo de comunicação, o que contribui decisivamente para a excessiva e desnecessária demora no atendimento à demanda de interesse coletivo. Se tomarmos o exemplo acima, é bem provável que tanto o setor de TI como o Jurídico passem a se enxergar com antipatia causando maior ruído no canal de comunicação entre eles.

Na abordagem interdisciplinar esses problemas não ocorreriam, pois esta pressupõe trabalho e estudo de profissionais das diversas áreas do conhecimento ou especialidades sobre uma determinada tema ou área de atuação, implicando necessariamente na integração dos mesmos para uma compreensão mais ampla do assunto.

Diante disso, muito embora tratado quase à unanimidade pelos órgãos públicos como um processo multidisciplinar, o mais adequado é deferir ao mesmo um tratamento interdisciplinar, a fim de provocar a interação e integração dos vários profissionais e setores (disciplinas) para atuarem de forma complementar ao outro, desenvolvendo a sua atividade já de acordo com os problemas inerentes à atividade dos demais, empregando ao processo visão e tratamento sistêmico.

Boas práticas de contratação

Historicamente, no Brasil a Administração Pública é sinônimo de burocracia e ineficiência. Ainda é presente a ideia geral (com alguma dose de razão) segundo a qual o funcionário público pendura seu paletó na cadeira e nunca está presente. Também a percepção da sociedade sobre o que é uma “repartição pública” chega a ser deprimente, pois se imagina logo uma sala repleta de papel e processos para todos os lados e servidores mal remunerados (isso é bem a realidade ainda hoje, se tomarmos o contexto nacional) e mal-humorados; desprovidos mesmo de um mínimo de compromisso para com aqueles a quem serve (a sociedade). E isso tudo é alimentado por uma cultura organizacional que se preza pela falsa premissa segundo a qual os diversos setores operacionais são autônomos entre si. Quantos cidadãos, ao procurar uma repartição para resolver um problema qualquer não ouviu as célebres respostas: “isso não é comigo” ou “Esse não é o setor competente”? Quantos empresários e representantes comerciais já não ficaram perdidos dentro de um órgão público sem saber com quem ou em qual setor se encontra o seu processo de pagamento? É preciso romper os modelos antigos de se administrar a coisa pública.

O entendimento sobre a nova concepção da Administração Pública oferece cada vez menos espaço para esse pensamento retrógado e exige mudanças. E elas estão vindo rapidamente. Basta notar que hoje há muito mais meios de controle da eficiência da Administração Público do que há 10 anos. E a tendência é que cada vez mais os gestores sejam controlados pela sociedade. A chamada New Publica Mangement (NPM), que teve origem nos anos 70 no Reino Unido e nos EUA, é centrada na aplicação de técnicas de administrar concebidas para setor privado, adaptadas ao setor público. Suas principais características são na delegação da gestão financeira e novas formas de prestação de serviços.[3]

E faz todo o sentido trazer para o setor público tais conceitos, considerando a óbvia necessidade de as empresas se tornarem cada vez mais competitivas e com menor custo possível para atingir sua finalidade precípua: o lucro. Ora, se as empresas utilizam técnicas gerenciais e modelos corporativos que lhes permitem aumento de ganho de eficiência e lucratividade, claro está que no setor público essas técnicas possibilitam melhoria dos serviços públicos prestados à sociedade, que é o fim primeiro e último do Estado. Daí se instala o conceito de Governança Pública, no qual passa a tratar o cidadão não a partir de uma relação de dominação, mas como seu cliente em um movimento, a partir da Constitucionalização do Direito, que se denominou de Estado pós-moderno, conforme bem explica Jessé Torres e Marinês Restellato[4]:

“O movimento jurídico que então se inicia, e se expande no século XXI, almeja a reconstrução de outro modelo de Estado, chamado de pós-moderno, em que se soleniza o compromisso da gestão pública com resultados que assegurem a concretização daqueles direitos, sem exclusões, nem discriminações, pelo só fato de serem direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, e não favores ou liberalidades do Estado.

A gestão de resultados, por oposição à gestão patrimonialista do Estado, desenvolve métodos e formas de atuação, articulação e intervenção dos poderes públicos, que, passados 40 anos de formulações — com avanços e recuos — podem ser traduzidos através de quatro paradigmas essenciais para a operação dos sistemas jurídico: a) efetividade dos princípios; b) motivação necessária; c) controle da discricionariedade; e, d) supremacia da Constituição, de que fui o caráter cogente das políticas públicas nela traçadas.”

Assim considerado, adotar medidas que possibilitem maior agilidade e eficiência nos processos de contratação é pedra fundamental para a concretização dos ideais do Estado e realização a contento do dever de servir à coletividade. Pois, como já aqui enfatizado, a atividade contratual da Administração Pública constitui uma das principais ferramentas para realização das políticas públicas, conforme Bresser Pereira[5] quando abordava a reforma administrativa do Estado brasileiro, em especial quando analisa a gestão no setor público como estratégia e estrutura para um novo Estado:

“O objetivo é construir um Estado que responda às necessidades de seus cidadãos; um Estado democrático, no qual seja possível aos políticos fiscalizar o desempenho dos burocratas e estes sejam obrigados por lei a lhes prestar contas, e onde os eleitores possam fiscalizar o desempenho dos políticos e estes sejam obrigados por lei a lhes prestar contas. Para tanto, são essenciais uma reforma política que dê maior legitimidade aos governos, o ajuste fiscal, a privatização, a desregulamentação – que reduz o ―tamanho‖ do Estado – e uma reforma administrativa que crie os meios de se obter uma boa governança”.

Considerando o que foi explicitado, faz-se mister que todos os atores envolvidos no processo de contratação se posicionem como parte de uma equipe e, com isso, adotar postura colaborativa. E o assessor jurídico é peça fundamental nesse tabuleiro.

Praticamente nada sai do lugar sem que, antes, a assessoria jurídica se manifeste. Em muitas oportunidades os encaminhamentos são até redundantes ou até mesmo desnecessários, mas é indubitável que o órgão consultivo jurídico exerce um papel a de altíssima relevância no contexto da contratação.

A assessoria jurídica deve abrir as portas de seu gabinete. Não deve ficar enclausurada em suas dependências. Quanto mais se aproximar das demais unidades técnicas, melhor será o seu trabalho. Ao determinar a exclusão de uma cláusula da minuta do contrato, a Assessoria Jurídica deve, antes, investigar (conversando com o setor técnico) a razão pela qual aquela cláusula fora pensada. É possível que a mesma tenha sido fruto de experiências negativas no contrato anterior e o órgão técnico tenha pensado naquela como forma de uma possível solução para os casos futuros. O parecerista, importando-se com a origem, ao invés de determinar a simples retirada do texto, pensaria, junto com o setor técnico, numa solução gerencialmente útil e juridicamente válida. O processo não só caminharia mais célere, como melhor ajustado. Se um órgão necessita adquirir um equipamento, que é comercializado em caráter de exclusividade, o fará nos termos e de acordo com os requisitos impostos no art. 25, I, da L. 8.666/93. Claro que essa contratação será submetida ao setor jurídico, que, muito embora não obrigatório, como já se viu em texto anterior, é costumeiramente a ele encaminhado para manifestação. Na abordagem multidisciplinar (o que é rotina na imensa maioria dos órgãos) o setor de compras (ou técnico) encaminharia o processo com as justificativas que reputa suficientes; mas ao chegar no órgão jurídico, o jurista o devolve por entender insuficiente a instrução. Já temos ida e vinda sem avanço objetivo para a aquisição pretendida. Na abordagem interdisciplinar, isto não ocorreria, porquanto o setor técnico já teria discutido a instrução antes do encaminhamento e, portanto, o processo caminharia ajustado sem a necessidade de retornos para diligências.

A assessoria jurídica deve se enxergar parte de um todo, e integrar esse todo a fim de que não haja retrabalho e que o processo siga curso em ritmo adequado à satisfação da necessidade de interesse público que pretende alcançar.

O princípio da segregação de funções e a cumulação entre o assessoramento jurídico e outras funções na Administração.

Na rotina dos órgãos e entidades da Administração Pública não é incomum encontrarmos servidores assoberbados de trabalho por acumular uma série de funções. Isso ocorre por desorganização ou, como na maioria dos casos, por falta de mão de obra qualificada em quantidade representativa. Nos setores relacionados às contratações, é bastante frequente um mesmo servidor ser, ao mesmo tempo, Pregoeiro, membro de Comissão de Licitação, responsável pelo setor de compras e fiscal de contrato. A mesma situação também ocorre com o assessor jurídico. Quanto menor a estrutura administrativa, mais carregada fica a rotina dos servidores mais bem preparados. E isso transforma em um círculo vicioso, pois, considerando a dependência que a Administração acaba nutrindo desses profissionais, deles não podendo prescindir, os mesmos costumam sequer ser liberados para treinamento e ações de atualização e aperfeiçoamento, pois quando se ausentam, a máquina administrativa emperra. Todavia, mesmo sendo em alguns casos, a única alternativa (por absoluta falta de mão de obra disponível), em certas posições isso deve ser evitado ao máximo. É o que ocorre no caso do assessor jurídico

Pela atividade técnica que executa e, principalmente, pelas competências que a lei lhe atribui, o assessor jurídico não deve desempenhar papeis que sejam técnica ou moralmente incompatíveis com o exercício livre e imparcial da advocacia. Trata-se de um corolário do princípio da segregação das funções.

Segregação de funções é o princípio por meio do qual se deve separar funções potencialmente conflitantes. Derivado do princípio da moralidade (art. 37, da CF), esse princípio impõe a necessidade de a estrutura administrativa prever a separação entre as funções de autorização/aprovação, execução, controle e contabilização, de tal forma que nenhum agente detenha competências e atribuições que moralmente seriam inconciliáveis.

Contudo, é de se reconhecer que, nos processos de contratação, a aplicação desse princípio se torna um tanto delicada, se considerarmos que muitas vezes um ato desenvolvido na fase de planejamento será fiscalizado ou revisto na fase contratual.

Já vimos que a advocacia preventiva cumpre a finalidade de evitar que os atos administrativos possam ser anulados ou que conduzam a prejuízos para o interesse público, antecipando os efeitos jurídicos eventualmente danosos ou impróprios. Se uma minuta de edital apresenta uma cláusula que restringe o caráter competitivo, ao ser bloqueada pela consultoria jurídica, evitar-se-á que a licitação venha a ser declarada nula mais adiante, o que certamente causaria enorme prejuízo para a Administração.

Em princípio, são incompatíveis com a atividade de advocacia preventiva que exerce o advogado público, qualquer atividade que redunde em fiscalização de si mesmo. Nesse diapasão, é possível afirmar que a função de assessor é inconciliável, dentro do mesmo órgão ou entidade com: funções de controle interno, de ordenação de despesa, de membro de órgão colegiado cujas decisões sejam submetidas à revisão da Assessoria Jurídica em grau de recurso, por exemplo, atuação em Comissão Permanente ou Especial de Licitação.

No caso especial da licitação na modalidade pregão, a incompatibilidade se dará em razão da função de pregoeiro, mas nenhum impedimento haveria no fato de o Assessor Jurídico fazer parte da equipe de apoio, muito embora se reconheça que seria desperdício de mão de obra altamente especializada, alocar o jurista em atividade de secretaria, como a que exerce o apoio ao pregoeiro.

Nos procedimentos que visam a investigar prática de ilícitos contratuais cometidos por fornecedores ou prestadores de serviço com vista à eventual aplicação de sanções administrativas, não considero adequado que a assessoria jurídica exerça o controle da instrução do processo, por não se tratar de prática de advocacia preventiva, caracterizando função atípica. Seria o caso de um setor ou comissão de sindicância especialmente designado para esse fim realizar os atos atinentes a essa espécie procedimental e, ao final, submeter o seu relatório à Assessoria Jurídica para parecer final. Porém, em caso de ser nomeada uma Comissão de Sindicância, não vislumbro óbice a que dela o Assessor faça parte. Neste caso, entendo que não haveria necessidade de o relatório final da comissão seja apreciada pelo setor jurídico da entidade, visto que, dada a participação de seu representante na comissão, por presunção lógica, a legalidade dos atos por ela desenvolvidos já teria sido alvo de acompanhamento.

Conflitos com o Controle interno

O caso mais crítico é a concatenação e correta separação de competências da Assessoria Jurídica e do Controle Interno, pois, em alguma medida, elas podem se confundir e até entrar em conflito. Para melhor compreensão, vamos observar o que dispõe a Constituição Federal sobre o Controle Interno:

Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:
I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;
II -comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;
III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;
IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.
§ 1º – Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.
§ 2º – Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.

Para melhor visualização desse preceito constitucional, aplicado na prática pelos órgãos da Administração Pública, tomemos como exemplo a organização administrativa do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.

Lá, encontra-se em vigor o Ato Normativo no. 13/2014, da Presidência do Tribunal de Justiça[6], que estabelece o Regimento Interno da Diretoria-Geral de Controle Interno daquele órgão, cujo art. 1º, §§ 1º e 2º, estabelecem a finalidade o conceito de controle interno, bem como as atribuições do setor. Já o art. 2º cuida do que constitui objeto das ações de controle interno:

Art. 1º. Compete à DGCOI, unidade técnica de assessoramento à Presidência, a avaliação da gestão e dos controles internos administrativos, com vistas a subsidiar o processo decisório estratégico por meio da fiscalização orçamentária, financeira, contábil, operacional e patrimonial, sob os aspectos da legalidade, legitimidade, economicidade, eficácia, eficiência e moralidade, bem como promover apoio ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ), no exercício do controle externo.
§ 1º Entende-se por controles internos administrativos do PJERJ o conjunto de atividades, planos, métodos, indicadores e procedimentos interligados destinados a mitigar os riscos e fornecer razoável segurança na consecução da missão, dos objetivos e das metas institucionais.
§ 2º São objetivos fundamentais dos controles internos:
I – observar o cumprimento das leis e normas aplicáveis;
II – assegurar a exatidão, confiabilidade, integridade e oportunidade das informações contábeis, financeiras, orçamentárias, operacionais e patrimoniais;
III – evitar erros, desperdícios, abusos, práticas antieconômicas e fraudes;
IV – propiciar informações oportunas e confiáveis, inclusive de caráter administrativo/operacional, sobre os resultados e efeitos atingidos;
V – salvaguardar os ativos financeiros e físicos quanto à sua boa e regular utilização e assegurar a legitimidade do passivo;
VI – permitir a implementação de programas, projetos, atividades, sistemas e operações, visando à eficácia, eficiência e economicidade na utilização dos recursos; e
VII – assegurar a aderência das atividades às diretrizes, planos e normas institucionais.

Art. 2º. Constituem objetos principais das ações de controle exercidas pela DGCOI:
I – os sistemas administrativos e operacionais de controle interno administrativo utilizados na gestão orçamentária, financeira, contábil, patrimonial, operacional e de pessoal;
II – a execução dos planos, programas, projetos e atividades que envolvam aplicação de recursos geridos pelo PJERJ;
III – os contratos de prestação de serviços, de execução de obras e de fornecimento de materiais;
IV – os processos de licitação, de sua dispensa e de sua inexigibilidade;
V – os convênios, ajustes e quaisquer atos que resultem em direitos e obrigações para o PJERJ;
VI – os instrumentos e sistemas de guarda e conservação dos bens e do patrimônio;
VII – a arrecadação, a restituição e as renúncias de receitas;
VIII – os sistemas eletrônicos de processamento de dados;
IX – o cumprimento da legislação pertinente; e
X – os processos de admissão e desligamento de pessoal e os de concessão de aposentadoria e pensão.

Nota-se que o normativo acima transcrito atribui ao Controle Interno uma atividade privativa de advogado, pois, para “comprovar legalidade”, ou “observar o cumprimento de leis e normas aplicáveis” de qualquer ato, é necessário exame técnico-jurídico, que só os habilitados podem exercer. Nisto, em alguma medida, poderá se observar um conflito de competências. Muitas vezes, o mesmo ato segue para manifestação da Assessoria Jurídica e após, não raro, em ato contínuo, para exame pelo Controle Interno.

De qualquer modo, claro está que, dentre as suas várias atribuições, competirá ao Controle Interno, o controle da legalidade dos atos da Administração. A questão do possível conflito se resolverá com uma simples definição: à Assessoria Jurídica competirá a atividade eminentemente preventiva, ou seja, atuará sempre antes do ato, e a fundamentação de suas manifestações são incorporadas à motivação deste mesmo ato. O Controle Interno, quanto à comprovação de legalidade, atuará após o ato, examinado o correto cumprimento das regras legais a ele atinentes, bem como verificando seus desdobramentos e efeitos jurídicos. Um exemplo frequente no cotidiano das repartições públicas bem ilustrará essa necessária dicotomia de funções aparentemente conflitantes.

Já foi visto que compete à Assessoria Jurídica da Administração o exame prévio e a aprovação das minutas de editais, termos de contratos e convênios, a teor do disposto no art. 38, parágrafo único da Lei 8.666/1993. Uma vez aprovada a minuta, o processo segue seu curso ordinário com a publicação do aviso, realização da licitação, adjudicação do objeto ao vencedor e homologação do certame. Em muitos órgãos e entidades, o processo retorna ao gabinete da Assessoria Jurídica para exame do processado antes do ato de homologação (o que penso ser desnecessário). Mas seria o caso de o processo ser encaminhado para o Controle Interno, que, na esteira da competência de controle da legalidade, verificará se a autoridade julgadora, aplicou as cláusulas do edital tal como dispostas, bem como as normas licitatórias atinentes. Em sendo assim, não haveria conflito entre a Assessoria Jurídica e o Controle Interno.

Não se nega, contudo, que ambos os setores — Assessoria Jurídica e Controle Interno — devam “falar o mesmo idioma”. É cediço que a ciência jurídica não é exata e, portanto, um mesmo ato ou norma pode ser interpretado a partir de correntes doutrinárias distintas. É absolutamente imprescindível que tais setores estejam afinados quanto aos aspectos mais controvertidos da norma licitatória, a fim de que os setores técnicos e administrativos estejam bem orientados sob seu melhor cumprimento.

*Luiz Claudio Chaves é especialista em Direito Administrativo, professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR e da Escola de Administração Judiciária-ESAJ/TJRJ; professor convidado da Fundação Getúlio Vargas e da PUC-Rio. Autor das obras Curso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris e Licitação Pública – Compra e Venda governamental Para Leigos, alta Books. Ministra regularmente, em âmbito nacional o curso Análise de Mercado para Planejamento das Contratações Públicas –pesquisa de preços nas licitações, dispensa e inexigibilidade


[1] Interdisciplinaridade e pensamento complexo: dois caminhos em busca da totalidade perdida. Disponível em http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/035e3.pdf.
[2] Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 74.
[3] Nesse sentido: MATIAS-PEREIRA, José. A Aplicada Governança Corporativa no Setor Público brasileiro. Revista APGS:. Administração Pública e Gestão Social, Viçosa, v 2, n. 1, p. 110-135, janeiro/março 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 de setembro de 2015.
[4] Políticas Públicas nas Licitações e Contratações Administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 27-28.
[5] PEREIRA, Luiz Carlos Bresser, SPINK, Peter Kevin. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial, 7ª ed., Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 36.
[6] DJEERJ, de 1º. De setembro de 2014.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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