Critérios de Desempate na Lei 14.133/21: Análise do Artigo 60, com Foco no Inciso III (Equidade de Gênero) e sua Regulamentação pelo Decreto nº 11.430/2023 

Resumo 

O presente artigo analisa os critérios de desempate previstos no Artigo 60 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021), dando especial destaque ao disposto no inciso III, o qual estabelece como fator de decisão em casos de empate a implementação de ações que promovam a equidade entre homens e mulheres no ambiente laboral. A análise aborda a regulamentação específica deste dispositivo por meio do Decreto nº 11.430/2023, explorando em detalhes quais são as ações consideradas adequadas para caracterizar tal promoção de equidade. Além disso, discutem-se as implicações práticas dessa norma, seus objetivos enquanto política pública e os principais desafios enfrentados para sua efetiva aplicação no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. O artigo trata, ainda, das questões relacionadas aos métodos previstos para a comprovação e aferição dessas ações, cuja definição foi delegada a ato complementar específico, gerando desafios à sua plena operacionalização imediata. 

Palavras-chave: Lei 14.133/21; Licitação Pública; Critérios de Desempate; Artigo 60; Equidade de Gênero; Decreto 11.430/2023; Contratação Pública; Desenvolvimento Sustentável. 

1. Introdução 

A promulgação da Lei nº 14.133, em 1º de abril de 2021, inaugurou uma nova fase nas licitações e contratos administrativos no Brasil, com a finalidade de modernizar procedimentos, ampliar a eficiência e a transparência e incorporar objetivos alinhados ao desenvolvimento sustentável nas aquisições públicas. Dentre as significativas inovações introduzidas pela Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC), destaca-se o artigo 60, que estabelece critérios claros e objetivos para resolver situações de empate entre propostas, circunstância crítica que demanda critérios justos e alinhados aos princípios norteadores da Administração Pública. 

Embora o empate não seja frequente, constitui uma ocorrência possível que requer mecanismos previamente definidos, visando garantir a isonomia e selecionar a proposta mais vantajosa, considerando não apenas aspectos financeiros, mas também outros fatores relevantes. A NLLC trouxe inovação significativa ao elencar critérios que ultrapassam a mera disputa por preço, incluindo elementos como programas de integridade e, particularmente, o incentivo às políticas sociais. 

Refletindo a intenção do legislador de utilizar o poder de compra governamental como ferramenta de fomento à igualdade de gênero, o inciso III do artigo 60 assume especial importância. Ele estipula que o desenvolvimento de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, na forma de regulamento, servirá como critério para desempatar propostas equivalentes. 

Este artigo objetiva analisar a aplicação dos critérios de desempate previstos no artigo 60 da Lei nº 14.133/2021, com enfoque especial no inciso III e em sua regulamentação trazida pelo Decreto nº 11.430, de 8 de março de 2023. Pretende-se, assim, examinar o alcance dessa disposição normativa, as ações de equidade estabelecidas pelo decreto regulamentador, seu âmbito de aplicação e suas implicações práticas para licitantes e para a Administração Pública federal. 

2. O Artigo 60 da Lei 14.133/21: A Sequência dos Critérios de Desempate 

O Artigo 60 da NLLC estabelece uma ordem hierárquica e sucessiva para resolver o empate entre duas ou mais propostas consideradas equivalentes após a fase de julgamento. A aplicação dos critérios deve seguir rigorosamente a sequência definida, passando ao critério seguinte apenas se o anterior não for suficiente para declarar um vencedor. Os critérios são: 

  • Inciso I: Disputa final: Os licitantes empatados têm a oportunidade de apresentar uma nova proposta (lance) em ato contínuo à classificação. Este é o primeiro e mais direto mecanismo, buscando resolver o empate por meio de uma nova disputa focada no preço ou na oferta. 
  • Inciso II: Avaliação do desempenho contratual prévio: Caso o empate persista após a disputa final (ou se esta não for aplicável), a Administração avaliará o histórico de desempenho dos licitantes empatados em contratos anteriores com a Administração Pública. A lei incentiva o uso de registros cadastrais oficiais para essa avaliação, valorizando licitantes com bom histórico de cumprimento de obrigações. 
  • Inciso III: Desenvolvimento de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho: Persistindo o empate, o critério seguinte é a comprovação, pelo licitante, do desenvolvimento de ações que promovam a igualdade de gênero em seu ambiente laboral, conforme detalhado em regulamento específico. Este é o foco principal deste estudo. 
  • Inciso IV: Desenvolvimento de programa de integridade: Como último critério principal, avalia-se se o licitante desenvolve um programa de integridade (compliance), seguindo orientações dos órgãos de controle. Este critério visa fomentar a ética e a conformidade nas empresas que contratam com o poder público. 

É importante notar que o § 2º do Artigo 60 ressalva que esses critérios não prejudicam a aplicação do regime diferenciado para microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP), previsto no Art. 44 da Lei Complementar nº 123/2006, que estabelece o “empate ficto” e a preferência de contratação para essas empresas em certas condições. 

Adicionalmente, o § 1º do Artigo 60 elenca critérios de preferência — aplicáveis apenas se os incisos I a IV não resolverem o empate —, favorecendo sucessivamente empresas locais, brasileiras, investidoras em P&D nacional e com práticas de mitigação.  

Realizando um comparativo com os critérios de desempate anteriormente previstos no Art. 3º, § 2º, da Lei nº 8.666/93, observa-se que esta ordem de preferência (§ 1º do Art. 60 da NLLC) inovou ao incluir o favorecimento a empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal onde se realiza a licitação (Inciso I) – ajustando o escopo geográfico da preferência que antes podia se referir a bens/serviços locais – e a empresas que comprovem a prática de mitigação ambiental (Inciso IV). Por outro lado, deixou de figurar nesta fase a preferência por bens e serviços de empresas que cumpram a reserva de cargos para pessoa com deficiência ou reabilitado da Previdência Social, matéria que foi reposicionada na nova lei como requisito de habilitação em certas contratações (conforme Art. 63, IV). 

Retornando, porém, aos critérios primários de desempate listados no caput do Artigo 60, nossa análise detalhada será direcionada ao Inciso III. 

3. Análise do Inciso III do Art. 60: A Equidade de Gênero como Critério de Desempate 

A inclusão do desenvolvimento de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho como critério de desempate representa uma significativa inovação e um alinhamento da legislação de compras públicas com agendas sociais contemporâneas. O objetivo subjacente é claro: utilizar o expressivo volume de contratações públicas como ferramenta para incentivar o setor privado a adotar práticas mais justas e igualitárias em termos de gênero. 

Essa medida se insere no contexto mais amplo do “desenvolvimento nacional sustentável”, um dos objetivos expressos da licitação na NLLC (Art. 11, IV), que abrange não apenas a dimensão ambiental e econômica, mas também a social. Ao premiar empresas que demonstram compromisso com a equidade de gênero, o Estado sinaliza a importância dessa pauta e estimula um ciclo virtuoso no mercado. 

Contudo, a redação do Inciso III (“conforme regulamento”) deixava claro que sua aplicação prática dependia de normatização infralegal para definir o que seriam essas “ações de equidade” e como sua existência seria comprovada pelos licitantes e verificada pela Administração. Essa regulamentação veio com o Decreto nº 11.430/2023. 

4. A Regulamentação pelo Decreto nº 11.430/2023 

Publicado em 8 de março de 2023, data simbólica do Dia Internacional da Mulher, o Decreto nº 11.430/2023 veio regulamentar dois dispositivos da NLLC no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional: 

  1. A exigência de percentual mínimo (8%) de mão de obra constituída por mulheres vítimas de violência doméstica em contratos de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra (Art. 25, § 9º, I da Lei 14.133/21), detalhada no artigo 3º do Decreto. 
  2. A utilização do desenvolvimento de ações de equidade entre mulheres e homens no ambiente de trabalho como critério de desempate (Art. 60, III da Lei 14.133/21), tratada especificamente no artigo 5º do Decreto. 

Embora o decreto trate de ambos os temas, nosso foco recai sobre a regulamentação do critério de desempate. 

4.1. O Artigo 5º do Decreto: Detalhando as Ações de Equidade 

O Artigo 5º do Decreto 11.430/2023 é o núcleo da regulamentação do Inciso III do Art. 60 da NLLC. Seu § 1º estabelece uma lista das ações de equidade que serão consideradas, respeitando uma ordem de prioridade na avaliação: 

I. Medidas de inserção, participação e ascensão profissional igualitária: Inclui a análise da proporção de mulheres em cargos de direção na empresa licitante. Este item foca na representatividade feminina em todos os níveis hierárquicos. 

II. Ações de promoção da igualdade de oportunidades e tratamento: Abrange políticas gerais que garantam tratamento isonômico em matéria de emprego e ocupação. 

III. Igualdade de remuneração e paridade salarial: Verifica a existência de políticas e práticas que assegurem remuneração igual para trabalho de igual valor, sem disparidades baseadas em gênero. 

IV. Práticas de prevenção e enfrentamento do assédio moral e sexual: Avalia a implementação de mecanismos para coibir e lidar com casos de assédio no ambiente de trabalho. 

V. Programas destinados à equidade de gênero e de raça: Reconhece a interseccionalidade, valorizando programas que abordem tanto a equidade de gênero quanto a racial. 

VI. Ações em saúde e segurança do trabalho que considerem as diferenças entre os gêneros: Considera a adoção de medidas de segurança e saúde ocupacional que levem em conta as especificidades e necessidades distintas de homens e mulheres. 

A ordem estabelecida no § 1º sugere que, no momento do desempate, a Administração deve verificar se os licitantes empatados desenvolvem ações do tipo I. Se apenas um deles desenvolver, este será o vencedor. Se ambos desenvolverem (ou nenhum desenvolver), passa-se à análise do tipo II, e assim sucessivamente, até que um dos critérios diferencie os licitantes ou se esgotem as categorias listadas. 

4.2. A Questão da Comprovação e Aferição: O Papel do Ato Complementar 

Um ponto crucial do Artigo 5º é o seu § 2º, que dispõe: 

§ 2º Ato do Secretário de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos disporá sobre a forma de aferição, pela administração, e sobre a forma de comprovação, pelo licitante, do desenvolvimento das ações de que trata o § 1º. 

Isso significa que o Decreto 11.430/2023, embora liste quais ações são consideradas para o desempate, delegou a um ato normativo complementar a definição dos meios concretos pelos quais os licitantes deverão provar que realizam tais ações e como a Administração Pública verificará essa comprovação de forma objetiva e padronizada. 

Até a data de elaboração deste artigo (abril de 2025), a publicação e ampla divulgação deste ato complementar específico, detalhando os procedimentos de comprovação (ex: apresentação de relatórios, políticas internas documentadas, certificações, dados estatísticos, etc.) e os métodos de aferição pela comissão de licitação, ainda gera incertezas sobre a plena operacionalização deste critério de desempate. Sem essa definição clara, a aplicação do inciso III pode enfrentar desafios relacionados à subjetividade, à dificuldade de comparação entre diferentes tipos de comprovação apresentados pelos licitantes e à segurança jurídica do processo. 

5. Implicações Práticas e Discussão 

A introdução do critério de equidade de gênero, regulamentado pelo Decreto 11.430/2023, traz diversas implicações: 

  • Empresas que desejam contratar com a Administração Pública federal (direta, autárquica e fundacional):  são incentivadas a não apenas implementar, mas também a documentar e sistematizar suas políticas e ações de equidade de gênero. Isso pode representar um diferencial competitivo em caso de empate. Empresas que já possuem práticas robustas nessa área (como programas de diversidade, políticas salariais transparentes, canais de denúncia de assédio, metas de representatividade feminina) levam vantagem. Por outro lado, pode representar um ônus adicional para empresas, especialmente as menores, que talvez precisem desenvolver e formalizar essas ações. A falta de clareza sobre os meios de comprovação (pendentes do ato complementar) dificulta o planejamento. 
  • A Administração Pública: exige capacitação das comissões de licitação e pregoeiros para analisar as ações de equidade de forma objetiva e isonômica, seguindo a ordem do Art. 5º, § 1º do Decreto. A ausência (ou desconhecimento) do ato complementar que detalha a aferição (Art. 5º, § 2º) representa um desafio significativo para a aplicação segura e uniforme do critério, podendo gerar questionamentos e recursos administrativos ou judiciais. A implementação eficaz demanda clareza procedimental. 
  • Benefícios Potenciais: O principal benefício é o fomento à igualdade de gênero no mercado de trabalho, utilizando o poder de compra estatal como indutor de mudanças sociais positivas. Alinha as contratações públicas aos objetivos de desenvolvimento sustentável e a princípios constitucionais de igualdade. 
  • Desafios e Controvérsias: Além da pendência regulatória sobre a comprovação/aferição, há o risco de o critério se tornar meramente formal (“compliance de fachada”), sem impacto real na cultura organizacional das empresas. O âmbito de aplicação limitado à esfera federal direta, autárquica e fundacional pelo Decreto também restringe seu impacto nacional (embora estados e municípios possam se inspirar na norma). Questionamentos sobre a possível complexidade adicional no processo licitatório e a subjetividade na análise (especialmente sem o ato complementar) podem surgir. 

6. Conclusão 

O inciso III do artigo 60 da Lei 14.133/21 representa um avanço ao incorporar a equidade de gênero como critério de desempate nas licitações públicas, refletindo uma tendência de alinhar as compras governamentais a objetivos sociais e de desenvolvimento sustentável. O Decreto nº 11.430/2023 deu um passo importante ao regulamentar este dispositivo para a esfera federal, listando as ações de equidade consideradas e estabelecendo uma ordem de prioridade para análise. 

No entanto, a plena efetividade e a segurança jurídica na aplicação deste critério dependem crucialmente da definição clara e objetiva dos mecanismos de comprovação pelos licitantes e de aferição pela Administração, algo que o próprio decreto delegou a um ato complementar do Ministério da Gestão e da Inovação. Enquanto essa regulamentação detalhada não for amplamente conhecida e consolidada, a implementação do critério pode enfrentar desafios práticos e gerar insegurança. 

Ainda assim, a existência do critério na lei e sua regulamentação inicial pelo Decreto 11.430/2023 já servem como um forte sinalizador para o mercado sobre a importância da equidade de gênero, incentivando as empresas a adotarem e aprimorarem suas práticas, na expectativa de que isso possa se tornar um diferencial relevante nas disputas por contratos públicos federais. Acompanhar a evolução da regulamentação complementar e a jurisprudência administrativa e judicial sobre o tema será fundamental para avaliar o impacto real desta inovação legislativa. 

7. Referências Bibliográficas 

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021. 

BRASIL. Decreto nº 11.430, de 8 de março de 2023. Regulamenta (…) a utilização do desenvolvimento, pelo licitante, de ações de equidade entre mulheres e homens no ambiente de trabalho como critério de desempate em licitações (…). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 mar. 2023. 

BRASIL. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (…). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 dez. 2006. 

BRAGAGNOLI, Renata. Normas que regulamentam a equidade salarial como critério de desempate nas licitações. https://www.conjur.com.br/2025-jan-27/normas-que-regulamentam-a-equidade-salarial-como-criterio-de-desempate-nas-licitacoes. Acesso em 10 de Abril de 25.  

CHARLES, Ronny. Os critérios de desempate nos procedimentos licitatórios regidos pela Lei nº 14.133/2021: ESG, dificuldades de implantação e alternativas. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/os-criterios-de-desempate-nos-procedimentos-licitatorios-regidos-pela-lei-no-14-133-2021-esg-dificuldades-de-implantacao-e-alternativas/#:~:text=vez%2C%20assim%20destaca%3A-,Art.,Lei%20n%C2%BA%2014.133%2C%20de%202021. Acesso em 10 Abril de 2025.  

NOHARA, Irene Patrícia Diom. Nova Lei de Licitações e Contratos Comparada. Revista dos Tribunais: 2021, São Paulo.  

Roberta Luanda Ambrósio

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