EDIÇÃO 3 – ENSAIOS SOBRE O PROJETO DE LEI NO. 1.292/1995

A nova sistemática das modalidades licitatórias

Os aspectos gerais das modalidades licitatórias: Leis no. 8.666/1993 e 10. 520/2002 X PL no. 1.292/1995  

Se, conceitualmente, licitação pública é “o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse”[1], podemos definir que as modalidades licitatórias são as espécies de procedimento a ser adotado para cada caso concreto a fim de obter o resultado pretendido, ou seja, a forma pela qual a Administração Pública obterá a proposta mais vantajosa. Assim, pode-se identificar que o instituto da licitação é gênero, e as suas modalidades são suas espécies.

Historicamente, desde o Decreto no. 2.926 de 14 de maio de 1862 – primeira norma licitatória importante no País – as modalidades licitatórias destinadas à contratação de coisas, obras e serviços eram definidas a partir do valor estimado da contratação. Este sistema foi mantido e ainda previsto na lei atualmente vigente, somente sendo “quebrado” com a Lei no. 10.520/2002, que instituiu a modalidade pregão na qual a sua aplicação independeria do valor do futuro contrato, mas sim sobre a natureza comum do objeto.

Para os fins deste trabalho, vamos nos concentrar nas modalidades licitatórias a serem empregadas para contratação de coisas, obras e serviços. O concurso e leilão serão alvo de trabalho específico mais adiante, assim como a modalidade diálogo competitivo, este, por tratar-se de uma inovação importante em termos de contratação.

Retomando, a distinção das modalidades em razão do valor estimado seguia a ideia a partir da qual quanto maior o gasto da Administração, mais rigoroso deveria ser o controle. Daí porque, desde as normas mais antigas, os valores mais elevados exigiam mais amplitude de divulgação e de público alvo. Essa perspectiva se mantém até hoje na Lei no. 8.666/1993, muito embora tenha se esvaziado bastante com a utilização quase obrigatória da modalidade pregão. Assim, se acha em vigor o seguinte texto: 

Lei no. 8.666/1993:
Art. 22.  São modalidades de licitação:
I – concorrência;
II – tomada de preços;
III – convite;
IV – concurso;
V – leilão.
§ 1o  Concorrência é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados que, na fase inicial de habilitação preliminar, comprovem possuir os requisitos mínimos de qualificação exigidos no edital para execução de seu objeto.
§ 2o  Tomada de preços é a modalidade de licitação entre interessados devidamente cadastrados ou que atenderem a todas as condições exigidas para cadastramento até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas, observada a necessária qualificação.
§ 3o  Convite é a modalidade de licitação entre interessados do ramo pertinente ao seu objeto, cadastrados ou não, escolhidos e convidados em número mínimo de 3 (três) pela unidade administrativa, a qual afixará, em local apropriado, cópia do instrumento convocatório e o estenderá aos demais cadastrados na correspondente especialidade que manifestarem seu interesse com antecedência de até 24 (vinte e quatro) horas da apresentação das propostas.
[…]

Art. 23.  As modalidades de licitação a que se referem os incisos I a III do artigo anterior serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratação: (Vide Decreto nº 9.412, de 2018)
I – para obras e serviços de engenharia
a) convite – até R$ 330.000,00 (trezentos e trinta mil reais);
b) tomada de preços – até R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil reais);
c) na modalidade concorrência – acima de R$ 3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil reais); e
II – para compras e serviços não incluídos no inciso I:
a) na modalidade convite – até R$ 176.000,00 (cento e setenta e seis mil reais);
b) na modalidade tomada de preços – até R$ 1.430.000,00 (um milhão, quatrocentos e trinta mil reais); e
c) na modalidade concorrência – acima de R$ 1.430.000,00 (um milhão, quatrocentos e trinta mil reais).

Nota-se que, quanto mais elevado o valor, maior é a amplitude do público alvo. No convite, destinado às despesas de menor monta, somente podem participar as empresas do ramo pertinente ao objeto do certame aqueles que a Administração convidar diretamente. Mesmo a extensão do convite a outros possíveis interessados, guarda limitação importante, na medida em que aquele que não for alvo de convite direito e tomar conhecimento da disputa, só estará autorizado a se apresentar caso seja cadastrado previamente no órgão/entidade e manifestar interesse em participar até 24 horas antes da data prevista para apresentação da proposta. Ates do advento do pregão, a modalidade convite somava, em quantidade, mais da metade das licitações do País.

Já a tomada de preço, tem público alvo bem específico que são as empresas previamente cadastradas no órgão ou entidade, ou as que demonstrarem condições de cadastramento até 3 dias anteriores à data da apresentação da proposta. O objetivo dessa modalidade licitatória era, sem dúvida, privilegiar as empresas que se dispunham a manter documentos cadastrais atualizados no órgão, o que, em tempos anteriores à internet, era especialmente importante tanto para expedir cartas-convites, como para concretizar contratações por dispensa ou inexigibilidade de licitação.

Finalmente, a concorrência era destinada a qualquer interessado, cadastrado ou não. Como é a modalidade destinada às contratações de gasto mais elevado (não se levando em consideração o que se contrata por meio do pregão), tinha o público alvo mais abrangente dentre as modalidades tradicionais. Não dependida de ser convidado pela administração, tampouco de possuir cadastro prévio junto ao promotor do torneio.

No que concerne à publicidade, esta também se ampliava em razão do volume de recursos a serem empregados na contratação. No convite, a publicidade era mínima e se resumia às cartas-convite expedidas e à afixação em mural de avisos do edital para os demais interessados que cumprissem os requisitos do § 3º do art. 22, acima transcrito. Não se exige publicação sequer na imprensa oficial. Já a concorrência, deve ser publicada na imprensa oficial e em jornal de grande circulação nacional, podendo ficar disponível por até 45 (quarenta e cinco) dias se o critério de julgamento for melhor técnica ou técnica e preço.

Conforme se verá a seguir, essa sistemática desaparece no PL no. 1.292/1995. As modalidades licitatórias destinadas às compras, obras e serviços não mais serão determinadas pelo valor estimado da contratação. Senão vejamos.

As modalidades licitatórias no PL 1.292/1995

O texto substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal, cria uma Seção exclusiva para as modalidades licitatórias. O novo texto, caso aprovado sem alteração, terá a seguinte redação: 

Seção II – Das Modalidades de Licitação

Art. 28. São modalidades de licitação:
I – pregão;
II – concorrência;
III – concurso;
IV – leilão;
V – diálogo competitivo.

De plano já enxergamos que as modalidades convite e tomada de preço deixam de existir. Também se percebe que a modalidade pregão passa a ser regulada na Nova Lei Geral. A Lei no. 10.520/2002 será revogada juntamente com a Lei no. 8.666/1993.

De fato, as modalidades convite e tomada de preço davam muito trabalho para a doutrina e para a jurisprudência. A primeira quanto ao aspecto do número mínimo de convidados presentes. O TCU passou a entender que a licitação realizada nessa modalidade somente seria válida se, ao final, sobrassem ao menos 03 (três) propostas válidas[2]. Mas esse entendimento não era adotado, por exemplo, pelo TCE/RJ, que aceitava a presença de no mínimo três licitantes no certame.

A tomada de preços era outra dificuldade, em razão da aplicação do requisito da reunião das condições de cadastramento “…até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas, observada a necessária qualificação.” Alguns autores e Tribunais de Contas entendiam que seria necessário às empresas não cadastradas reunir no prazo de três dias anteriores à data da apresentação da proposta todas as condições exigidas para o cadastramento; e outros concordavam que bastaria a esse público alvo reunir as condições específicas para a habilitação na licitação pretendida.

Essas questões dificultavam bastante o dia a dia tanto dos agentes públicos responsáveis pelos processos de contratação, notadamente, as Comissões de Licitação e de Cadastramento, como também os licitantes, que tinham muito mais dificuldade em reunir a necessária condição de se apresentar à disputa.

Destaco que, a despeito de ainda estarem em vigor, estamos usando tempo verbal no pretérito para estas modalidade, em razão da sua quase obsolescência, visto que, hodiernamente, se encontram praticamente em desuso, ainda mais após o reconhecimento pela doutrina e agora, por regulamento federal da possibilidade de se julgar serviço comum de engenharia na modalidade pregão. Vamos adiante:

§ 1º Além das modalidades referidas no caput deste artigo, a Administração pode servir-se dos procedimentos auxiliares previstos no art. 77 desta Lei.
§ 2º É vedada a criação de outras modalidades de licitação ou, ainda, a combinação daquelas referidas no caput deste artigo.

Aqui vamos encontrar uma impropriedade, logo de início. É que o art. 77 do PL no. 1.292/1995 aponta, como procedimentos auxiliares da licitação: o credenciamento; a pré-qualificação; o procedimento de manifestação de interesse; o sistema de registro de preços; e o registro cadastral. Nenhum destes institutos são alternativos às modalidades licitatórias ou as substituem.

Em linhas gerais, o credenciamento, hoje amplamente utilizado, é hipótese de contratação por inexigibilidade de licitação, fulcrada no caput do art. 25 da Lei no. 8.666/1993 (art. 73 do PL no. 1.292/1995); a pré-qualificação, quando adotada para a formação de banco de marcas pré-qualificadas, não exime a Administração de realizar a licitação na modalidade correspondente à natureza do objeto. E, se for o caso de padronização absoluta (escolha de apenas um marca por padrões de desempenho e qualidade), será caso também de inexigibilidade de licitação com base na cabeça do art. 25 da L. no. 8.666/1993 (art. 73 do PL no. 1.292/1995); a manifestação de interesse, é procedimento que antecede a uma licitação na qual um particular se responsabiliza por estudos técnicos e elaboração de projeto, visando a realização de uma licitação, logo, não substitui nenhuma modalidade; o SRP, em resumo, é só uma forma de gerenciar uma demanda de difícil precisão em termos quantitativos, mas depende da realização de licitação em uma das modalidade possíveis; e o registro cadastral é apenas um banco de dados no qual o órgão/entidade reúne informações de habilitação e histórico dos contratos das empresas cadastradas.

Quanto à vedação contida no § 2º, nenhuma novidade, pois repete a vedação contida no § 8º do art. 22 da Lei no. 8.666/1993.

Art. 29. A concorrência e o pregão seguem o rito procedimental comum a que se refere o art. 17 desta Lei, adotando-se o pregão sempre que o objeto possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado.

Parágrafo único. O pregão não se aplica às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia, exceto os serviços de engenharia de que trata a alínea a do inciso XXI do caput do art. 6º desta Lei.

Aqui é que se percebe a parte mais significativa do texto. Veja-se que o novel texto normativo não fará distinção do uso da modalidade licitatória entre pregão e concorrência quanto ao valor estimado da contratação. A distinção se fará exclusivamente sobre a natureza do objeto. Se este não puder ser descrito “…com padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado” a modalidade a ser utilizada será a concorrência. Por exclusão, o parágrafo único já afasta o uso da modalidade pregão nos casos de serviços a serem executados de forma predominantemente intelectual.

Portanto, há um abandono completo do uso do valor estimado da contratação para definição da modalidade licitatória, inaugurando uma nova era na sistemática das licitações. Em verdade, nem é de se estranhar, uma vez que a modalidade pregão se tornou, nessas quase duas décadas, a menina dos olhos da Administração Pública, reconhecidamente modalidade mais vantajosa em termos práticos e financeiros, mormente quando realizada no formato eletrônico.

Destaco crítica do ilustrado Professor Marçal Justen Filho, em artigo publicado na Gazeta do Povo, em 31/10/2019[3], citada por Jessé Torres Pereira Júnior[4] na qual o festejado mestre defende a ideia segundo a qual tal modalidade teria criado “um incentivo ao mercado oferecer produtos imprestáveis por preço reduzido.” Entende ainda que “o pregão conduz, em parte relevante dos casos, o governo a pagar pouco por algo que não vale nada.” Também anota que a modalidade pregão “beneficia enormemente as grandes empresas, que têm condições de praticar preços muito mais reduzidos.”

Com o devido respeito, ouso discordar dessa afirmação, tomando por parâmetro os anos (muitos) em que atuei como Pregoeiro e Membro de Comissões de Licitação junto ao Poder Judiciário fluminense. Acompanhei, de dentro, a transição das licitações das modalidades tradicionais para o pregão e o que podíamos perceber é que, bem ao contrário, as empresas de menor porte passaram a vencer licitações que antes não tinham condições de fazê-lo.

Ao tempo das licitações exclusivamente presenciais, somente aquelas empresas de grande porte, com estrutura administrativa complexa, com filiais espalhadas pelo País e um quadro de empregados confortável é que conseguiam participar de muitas licitações. Era muito caro manter uma estrutura dessa envergadura, com vários representantes, inúmeras cópias autenticadas de documentos, procurações com firmas reconhecidas. Também eram elevados os gastos com viagens, alimentação e estada de representantes comerciais, às vezes por vários dias em razão da morosidade dos procedimentos tradicionais. As empresas de pequeno porte não conseguiam suportar esse custo e sobrava para poucos o que poderia ser distribuídos para muitos.

Com o advento do pregão, e, principalmente, com o formato eletrônico, o custo de participação se reduziu drasticamente e empresas de pequeno porte começaram a disputar praças que antes lhes eram impossíveis. Mesmo nos pregões presenciais, o que via era as mesmas empresas que antes disputavam convite, tomada de preços, participando de pregões e vencendo, agora com margem menor em razão da possibilidade efetiva de disputa comercial.

Quanto à qualidade dos produtos adquiridos, em que pese ser verdadeira a afirmação em termos estatísticos, a causa desse efeito negativo, com todas as vênias, não reside no formato da modalidade, tampouco pelo fato de não haver limites financeiros para sua utilização. O Governo compra produtos imprestáveis por preço reduzido, desde sempre. E as causas ainda vigoram.

O primeiro deles é a falta de estrutura logística e de pessoal que apoie adequadamente os atos de contratação. É useiro e vezeiro agentes públicos acumularem funções de elaborar termos de referência e editais de licitação e ainda atuar no setor de compras e fiscalizar contratos. Claro que o acúmulo de atribuições, não raro, de natureza técnica para o qual o agente não fora preparado, acarreta como efeito inafastável a aquisição/contratação de objeto inadequado.

O segundo, não menos importante, é a falta de investimento em qualificação do servidor público, ou o investimento mal dirigido nessa área. A falta de concursos públicos não oxigena o quadro de pessoal e a falta de investimento em capacitação leva a uma estagnação técnica que impede a melhoria contínua dos serviços internos.

Também deve ser arrolado como causa, infelizmente, a questão da quebra de integridade. Não raro (vemos muitos casos em telejornais) a aquisição ruim é propositalmente pensada, justamente para facilitar o pagamento de propinas e outros atos de corrupção, uma mazela que, a despeito de cada vez mais e melhor combatida pelos órgãos de controle e outras instâncias, ainda persiste existir.

Outra causa está no ato do recebimento do material. Muitas vezes, a proposta vencedora está de acordo com as especificações do edital; as especificações são adequadas, mas no momento da entrega, o fornecedor apresenta um produto de qualidade risível e o agente responsável pelo recebimento não recusa o material, por desconhecimento ou falta de compromisso com a coisa pública.

Finalmente, também podemos citar a cultura do gerenciamento de crises, no lugar de uma cultura do gerenciamento de riscos. A grande maioria dos órgãos do poder público não se ocupa de antecipar possíveis problemas, tampouco de melhor planejar as suas ações. São os casos de compra de equipamentos de grande porte cuja instalação exige uma obra civil prévia, mas que não é procedida no tempo adequado, gerando prejuízos com a compra de um produto que não pode ser instalado; ou ainda, a compra de um equipamento cuja marca não possui manutenção e peças de reposição no País, tornando inservível logo de início.

Se os problemas acima forem solucionados, e a nova legislação conta com instrumentos para esse fim, notadamente, com a valorização da etapa de planejamento, teremos um sistema, talvez imperfeito, mas muito mais avançado. Como a perfeição é uma utopia e processos de melhoria são infinitos, nos cabe apontar os ajustes que serão necessários.


[1]  MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 19ª ed.: São Paulo, Malheiros, 1994.
[2] TCU, Súmula 248: Não se obtendo o número legal mínimo de três propostas aptas à seleção, na licitação sob a modalidade Convite, impõe-se a repetição do ato, com a convocação de outros possíveis interessados, ressalvadas as hipóteses previstas no parágrafo 7º, do art. 22, da Lei 8.666/1993.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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