Grau de Risco de Integridade (GRI): a necessidade do respeito à Constituição para a legalidade da exigência.
Voltou à pauta do cenário da Gestão de Riscos e do Compliance nacional a discussão sobre o GRI (grau de risco de integridade), com a decisão da Petrobrás em “excluir” do processo concorrencial determinado Consórcio de empresas, em razão de seu alto grau de risco de integridade.
Para que não se diga que sou contra a avaliação realizada com base no grau de risco de integridade (GRI) e de que ele não é um importante e eficaz instrumento de combate à corrupção, deixo claro desde já: trata-se de um instrumento muito importante para que as contratações públicas no país sejam pautadas pela ética e pela moralidade, portanto, sou favorável à exigência, contudo, não para fins de exclusão do processo competitivo (porque isto é evidentemente inconstitucional), mas para fins de reforço às garantias e exigências contratuais. Caso contrário, esta importante ferramenta, terá sua inconstitucionalidade questionada e seguramente reconhecida pelo Poder Judiciário, quando for manejada tese concreta neste sentido[1].Explico.
Nesse sentido, compartilho alguns aspectos que devem ser observados neste tema, e os faço por meio de questões objetivas:
1. É possível solicitar o preenchimento, por potenciais licitantes ou contratados, de questionário de due diligence de integridade (informações relacionadas a perfil da pessoa jurídica, gestão da entidade, relacionamento com agentes públicos, histórico de litígios, programa de integridade e relacionamento com terceiros)?
É perfeitamente possível. Essa exigência não conflita com os princípios gerais das licitações públicas previstos no art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal de 1988, tampouco com as normas gerais disciplinadas na Lei nº 8.666/1993 e na Lei nº 13.303/2016, ao contrário, busca exaltar os princípios constitucionais da legalidade e da moralidade, de modo a conjugar esforços para concretização da integridade contratual, mitigação e redução dos riscos e obtenção de melhores resultados.
A due diligence, como conceito, é um processo que visa buscar informações sobre determinadas empresas e pessoas com as quais a Administração tem a intenção de se relacionar. Esses processos podem ser realizados em diversas situações, como a contratação de fornecedores, prestadores de serviços, terceiros, patrocinados, consorciados e empregados (background check), entre outras situações.
Durante esse processo, analisam-se informações fornecidas pela pessoa física ou jurídica interessada, bem como informações coletadas por meio de bases de dados específicas para cada diligência.
Essas informações – no caso dos contratos com estatais, por exemplo – são estruturadas de forma que apoiem determinadas decisões e os controles relativos à contratação pretendida.
Portanto, esse questionário tem como principal objetivo permitir que a Administração conheça efetivamente seu contratado e suas práticas de mercado, principalmente aquelas vinculadas a condutas éticas em sua atuação comercial ou, ainda, outras que possam prejudicar o relacionamento das partes durante o período de vigência contratual.
O questionário deve ter como premissa a avaliação de risco de integridade, podendo, por exemplo, utilizar-se de parâmetros de avaliação e localização geográfica da empresa e da execução de seus negócios, de seu histórico reputacional e relacional, de sua interação com agentes públicos, bem como da efetividade de seu eventual programa de integridade entre outros.
2. Em que momento do procedimento é possível exigir esse preenchimento? Pode-se exigi-lo como condição para integrar o cadastro de fornecedores, como condição de habilitação ou como condição de contratação?
Aqui, existem dois cenários distintos: (a) o primeiro refere-se ao momento em que é possível exigir o questionário; (b) o segundo refere-se ao momento em que essa exigência pode tornar-se executável do ponto de vista de exclusão do licitante/interessado no processo competitivo.
Com relação à exigência do questionário, a resposta não demanda maiores problemas, por um simples fator: é possível exigir o preenchimento do documento em quaisquer das fases do procedimento – quando do cadastro de fornecedores; como declaração constante dos documentos que compõem a habilitação da empresa; ou ainda, no momento da convocação para a assinatura do contrato. Exigir o preenchimento, portanto, é mera formalização da vontade administrativa em conhecer seu futuro contratado, sem que, com isso, decorra ônus algum aos licitantes ou aos interessados.
Agora, bastante distinta é a pergunta relacionada ao momento em que é possível exigir, para fins de exclusão da participação do licitante/interessado, pois daqui, derivam aspectos constitucionais e legais relevantes. Vejamos.
2.1 A questão das inconstitucionalidades formal e material da exigência do GRI
Aqueles que defendem a inconstitucionalidade formal aventam que a exigência dos questionários de integridade nas licitações, independentemente da fase, estaria violando a competência privativa da União para dispor sobre normas gerais de licitações e contratos, disciplinada no art. 22, inc. XXVII, da Constituição Federal de 1988. Isto é, as inovações normativas criariam uma condição especial mais restritiva, que somente poderia ser veiculada por meio de norma geral, ou seja, de novo diploma normativo de caráter geral que previsse, especificamente, esse critério como condição limitadora do relacionamento entre as partes.
Neste ponto, em minha análise, a exigência de questionários de integridade nas relações com a Administração Pública (direta ou indireta) não imputa nenhuma inconstitucionalidade formal, já que, ao contrário dos que entendem que não haveria fundamento de validade da referida exigência em norma de caráter geral, a requisição de “indicadores de integridade” vai exatamente ao encontro (corrobora) das diretrizes básicas da Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/1993) e da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016), que, como normas gerais aplicáveis respectivamente à Administração direta e indireta, deixam evidente seu apego e sua aderência aos princípios da moralidade e da probidade administrativa, conferindo, portanto, caráter constitucional à exigência.
Em suma, sob o aspecto formal, não há inconstitucionalidade alguma, pois as leis gerais que regem as contratações pretendidas ratificam os princípios da legalidade, da moralidade e da probidade administrativa, que balizam a referida exigência. É que, se a requisição está em estrita concordância às diretrizes da norma geral, ainda que esta não tenha disciplinado de modo expresso determinada obrigação – o que sequer é de sua natureza, já que as normas gerais disciplinam balizas, que serão mais bem delineadas pela legislação específica sobre o tema –, não há de se falar em inconstitucionalidade.
A questão polêmica sobre a inconstitucionalidade da exigência decorre da análise de seu fundamento material de constitucionalidade diante da exigência de questionários de integridade como condição nos processos de contratação pública.
E neste tema, me parece evidente que, ao tratar-se da inconstitucionalidade material, haveria restrição à competitividade do certame pela violação direta do art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal, que assegura a igualdade de concorrência entre todos os participantes.[1] É aqui que a questão ganha relevância, ou seja, na análise das fases em que a exigência é executada (ou executável).
Obviamente que, para fins de participação na licitação – quando a exigência é solicitada como condição excludente de participação no processo competitivo –, há direta e evidente violação do caráter material previsto na Constituição. Não se pode permitir, por lei ou ato normativo posterior, de caráter não geral, a previsão de condições restritivas de competição. Isso viola a própria lógica do processo concorrencial e de obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração. Portanto, não se pode, por um indicador de risco da futura contratação, impedir que um licitante/interessado participe livremente do processo competitivo, sob pena de inconstitucionalidade material da exigência.[2]
E que não se diga que o art. 32 da Lei das Estatais (Lei 13.303/16) autoriza interpretação contrária ao texto constitucional, pois ao mencionar que “nas licitações e contratos de que trata esta Lei” será observada a “política de integridade nas transações com partes interessadas”, a referida Lei nunca esteve a autorizar: a) o estabelecimento de caráter restritivo que derroga a previsão constitucional de não restrição de competitividade e; b) que a política de integridade como ato normativo seja utilizado como veículo de impedimento do direito de contratar pelo particular, com caráter sancionador, sem o devido processo legal (ampla defesa) e contrário à regra expressa do art. 37, XXI da CF.
Referida inconstitucionalidade, em minha análise, ganha contornos mais evidentes com a objetivação de alguns conceitos, que ainda não foram colocados à análise do Poder Judiciário e reforçam a inconstitucionalidade da medida para fins de exclusão do processo. Sob essa perspectiva é importante a análise: (a) Qual o conceito de risco?; (b) Os critérios da due diligence (DDI e GRI) são pautados pela Administração ou por critérios aferíveis em um contexto dialógico (de participação com o particular)?; (c) Os critérios da due diligence (DDI e GRI) são fixados previamente e abertos ao contraditório em sua formação, ou exigidos do particular e, eventualmente, conferido contraditório posterior?
Essas são questões fundamentais à confirmação da inconstitucionalidade da exigência para fins de exclusão de participação do certame competitivo. Vejamos objetivamente:
a) O conceito de risco “envolve a quantificação e qualificação da incerteza, tanto no que diz respeito às ‘perdas’ como aos ‘ganhos’, com relação ao rumo dos acontecimentos planejados, seja por indivíduos, seja por organizações” (IBGC, 2007, p. 11, grifamos). O próprio Tribunal de Contas da União define risco como a “possibilidade de ocorrência de um evento que afete adversamente a realização de objetivos” (TCU, 2018a, grifamos) e ratifica tal conceito quando assevera que os riscos são “o efeito da incerteza sobre objetivos estabelecidos. É a possibilidade de ocorrência de eventos que afetem a realização ou alcance dos objetivos, combinada com o impacto dessa ocorrência sobre os resultados pretendidos” (TCU, 2018b, grifamos). Não há dúvida, portanto, que, ao balizar a exigência em indicadores de risco às contratações públicas, os questionários de integridade não podem ser utilizados como excludentes de participação do processo competitivo. Ora, seria não apenas ilegal, mas também ilógico pautar a exclusão de um pretenso licitante, que pode, inclusive, determinar a proposta mais vantajosa à Administração, por critérios futuros e incertos, que não são passíveis de materialização naquele contrato. É impedir a reabilitação da empresa, condicioná-la a uma penalização vinculada à lógica de “verdade-sabida” e com caráter atemporal. É dizer, a condição excludente não se sustenta pela natureza jurídica da própria exigência, pautada em uma incerteza que, não necessariamente, será materializada naquela contratação. Ora, se não há sobre estas empresas a penalidade administrativa de suspensão do direito de contratar, não pode a administração inovar uma condição de participação no certame que, para além de inconstitucional, se converte em sanção, aplicada sem o devido processo legal e não prevista na norma.
b) A segunda questão proposta consolida, ainda mais fortemente, a impossibilidade dessa exigência como excludente de participação no processo competitivo. Ora, se a incerteza por si só já impediria a exclusão, o que dizer, então, dos critérios para definição de due diligence para possível materialização da incerteza? Veja que a definição de “apetite de risco” traz a noção de “quantidade de risco em nível amplo que uma organização está disposta a aceitar na busca de seus objetivos” (TCU, 2018b), ou seja, o critério para definir o apetite de risco é discricionário e pode variar de uma organização para outra. É dizer, compelir o particular (licitante/interessado), como condição de participação nos processos competitivos da Administração, a estar aderente ao apetite discricionário de todos os entes/entidades em que tenha interesse em se apresentar como concorrente é algo que, além de não parecer razoável, traria inúmeras distorções à isonomia. Exemplifico: imaginemos que, em uma estatal, um dos critérios para aferição do nível de integridade seja a existência de “política de consequência ao código de conduta” e, em outra, isso não integre o questionário de integridade como condição de aferição do nível de risco e da aderência empresarial. Nesses casos, vislumbra-se claramente que as exigências seriam tão díspares e inerentes ao apetite de risco de cada uma das estatais que, sob o aspecto de competição isonômica, ficaria quase impossível a um particular estar plenamente aderente a todas as exigências estipuladas nos diversos “apetites de riscos” das estatais nas quais participa de processos competitivos e essa quebra de isonomia concorrencial é outro fator determinante para a ilegalidade da exigência para fins de exclusão do processo concorrencial.[3]
c) Por fim, como os critérios da exigência são definidos com base no apetite de risco da Administração, sequer é dado ao particular a possibilidade de participar da formação da “vontade estatal” em excluí-lo do processo concorrencial, pois os critérios de due diligence não são passíveis de impugnação por sua própria natureza jurídica. É dizer, além de todos os aspectos que justificam a análise de inconstitucionalidade da exigência, ainda este último complementa a assertiva, pois justifica condição restritiva e excludente de participação, sem que os critérios que fundamentam tal exclusão sejam passíveis de insurgência pelo particular. Mesmo que fosse dada, portanto, possibilidade de impugnação ou de recurso posterior à exclusão, isso poderia conferir um simulacro de legalidade, que, após já definida a exclusão por critérios de não atenção a requisitos discricionários de risco, submeteria o particular a um double-check de conformidade, sem a mínima chance de revisitação dos fatos que ensejaram sua classificação, que sob o aspecto reputacional – inclusive – lhe agrega um “carimbo” negativo, que sequer as eventuais sanções em processos anteriores lhe outorgaram.
Importante: Em uma leitura apressada deste texto, pode-se imaginar que a opinião aqui externada seria que a exigência é – em todos os casos – inconstitucional. Ora, isso não corresponde à realidade. Fica claro, de tudo o que foi aqui exposto, que a exigência de questionários de integridade (ou de programas de integridade) apenas como condição de participação no processo competitivo é inconstitucional, porém, não há nada de inconstitucional nessa mesma exigência para fins de contratação, é dizer, quando já houve a seleção da proposta mais vantajosa adjudicada a um dos licitantes do processo. Aqui, o preenchimento de questionários de integridade é exigida como obrigação contratual, e não como condição de habilitação ou participação. Em outras palavras, não se trata de uma condição à participação no certame, mas de uma obrigação que deverá ser concretizada após a assinatura do contrato. Assim, qualquer empresa poderá participar da licitação, e os critérios de risco avaliados no preenchimento do documento servirão para reforço de gestão contratual ou, ainda, como exigências de algumas condições mitigadoras do risco avaliado, a exemplo da obrigatoriedade de implementação de programa de compliance, do reforço aos controles internos ou de outras atividades de submissão a maior rigor na fiscalização contratual.
Dessa forma, é possível concluir que a exigência do preenchimento de questionários de integridade e a avaliação de grau de risco de integridade é possível, porém não pode restringir a possibilidade de participação dessas empresas no processo competitivo (licitação) em razão do grau de risco aferido pela análise do questionário aplicado pela Administração. Em contrapartida, é plenamente possível – não havendo inconstitucionalidade formal ou material – que tal exigência figure como condição de contratação, após a seleção da proposta mais vantajosa e no ato de assinatura do contrato, seja pelo estabelecimento de exigências posteriores e com prazo ao particular, a exemplo do estabelecimento de um programa de integridade com requisitos objetivos em um prazo de X dias para implementação (como é o caso de algumas legislações estaduais que inovaram o tema – Lei Estadual RJ nº 7.753/2017 e Lei Distrital DF nº 6.112/), seja pela submissão do particular e do contrato a condições mais rigorosas de fiscalização e controle.
O combate à corrupção é fundamental e o grau de risco de integridade um importante instrumento para sua efetivação, contudo, sem os devidos cuidados, o remédio – hoje heróico – pode, em um futuro próximo, ser prejudicial ao próprio interesse que hoje o legitima.
REFERÊNCIAS
IBGC – INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Guia de orientação para gerenciamento de riscos corporativos. São Paulo: IBGC, 2007.
TCU – TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Gestão de riscos: avaliação da maturidade. Brasília: SEGECEX, ADEGECEX, SEMEC, 2018a.
_____. Referencial básico de gestão de riscos. Brasília: SEGECEX, ADEGECEX, SEMEC, 2018b.
[1] “Art. 37. […] XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
[2] E que não se diga que o art. 58, inc. I, da Lei nº 13.303/2016 autoriza expressamente tal exigência como condição excludente de habilitação, pois, da leitura do referido inciso, fica claro que o objetivo de sua redação é pautar a razoabilidade da exigência de documentos relativos à habilitação jurídica do licitante e não dá “carta em branco” ao regulamento de licitações para criar condições excludentes distantes da norma constitucional, que preza pela isonomia concorrencial nos processos competitivos. O art. 37, inc. XXI, da CF é claro ao estabelecer que a lei deve assegurar igualdade de condições a todos os concorrentes, e não o contrário.
[3] Deixo de considerar ainda – pois tratamos, aqui, de uma situação objetiva e com a premissa da exigência para fins de probidade e ética relacional – a utilização de critérios distintivos (vinculados ao apetite de risco) pelas estatais para excluir “legalmente” determinadas empresas do processo competitivo, sem que isso fosse revisitado pelo Judiciário, em razão de albergar o mérito da análise administrativa.