JURISPRUDÊNCIA COMENTADA – PREGÃO ELETRÔNICO – SANEAMENTO DE DEFEITOS NA HABILITAÇÃO POR PARTE DO PREGOEIRO E NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DO ATO

Acórdão 1211/2021 Plenário (Representação, Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues) Licitação. Habilitação de licitante. Documentação. Documento novo. Vedação. Definição. A vedação à inclusão de novo documento, prevista no art. 43, § 3º, da Lei 8.666/1993 e no art. 64 da Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações), não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta, que não foi juntado com os demais comprovantes de habilitação e da proposta, por equívoco ou falha, o qual deverá ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro.

      O precedente em tela aborda tema que ainda controvertido, em se tratando de julgamento de licitações, notadamente, por parte dos licitantes, qual seja, a possibilidade de correção, pelo julgador do certame, de defeitos nos documentos de habilitação ou na proposta.

      É sabido que para o fim de obter contrato junto ao Poder Público, o particular deve, antes, disputar a oportunidade de negócio oferecida com outros interessados, em virtude do comando consignado no art. 37, XXI da CRFB. Essa disputa, passa pelo crivo de exigências de cunho habilitatório, na qual se impõe ao participante que o mesmo apresente, na data da licitação, documentos que comprovem sua condição jurídica, técnica, econômico-financeira, fiscal e trabalhista. Além disso, deve cumprir os requisitos formais e materiais necessários à aceitação da sua proposta, isto é, deve o licitante comprovar o cumprimento dos critérios de aceitabilidade de proposta formulados no edital.

      Também não é novidade alguma que dentre os princípios jurídicos que norteiam o instituto da licitação pública, o da vinculação ao instrumento convocatório se revela dos mais importantes, uma vez que representa a garantia de que a Administração não causará surpresa aos competidores, alterando, na mesa de julgamento (ainda que eletrônica) as regras que foram originalmente estabelecidas.

      No entanto, a aplicação de um princípio jurídico nunca se faz de forma isolada. Isto porque, o mesmo instituto é orientado por diversos princípios que são aplicáveis de forma conjunta e o devem ser em interpretação que os harmonize. Nada obstante, diante do caso concreto, é possível que haja necessidade de se temperar este ou aquele princípio, de modo, conjugando-os, visando obter o melhor resultado possível.

      A possibilidade de se levantar diligências para o fim de esclarecer ou complementar a instrução do processo é autorizada no art. 43, § 3º, da Lei no. 8.666/1993, que, entretanto, veda a “inclusão de documento ou informação que deveria constar originalmente na proposta”.

      A interpretação literal deste dispositivo levou as Comissões de Licitações e, posteriormente, também os Pregoeiros a cometerem aquilo que se convencionou chamar de julgamento com rigor excessivo, que seria o afastamento de licitantes por falhas que seriam perfeitamente sanáveis e que não prejudicassem o interesse dos demais concorrentes e também a regularidade do processo. Esse entendimento não é recente na doutrina, tampouco na jurisprudência. Cite-se:

A licitação é procedimento e não uma atividade lúdica; não se trata de um concurso de destreza para escolher o melhor cumpridor do edital” (DALLARI, Adilson Abreu. Licitação- Competência para classificar propostas, adjudicar, homologar e anular. NDJ: São Paulo. BLC no 06/94, p. 245).(GN)

[…] a licitação não é um fim em si mesma. O processo licitatório, embora de natureza formal, supera e transcende o mero ritual burocrático, porquanto é orientado pelos princípios globais e teleológicos afirmados no art. 37 da Constituição Federal e traduzidos no art. 3o da Lei no 8.666/93” (MOTTA, Carlos Pinto Coelho. NDJ: São Paulo, BLC, no 12/95, p.596).

“…o rigor formal não pode ser exagerado ou absoluto. Como adverte o já citado Hely Lopes Meirelles, o princípio do procedimento formal não significa que a Administração deve ser formalista a ponto de fazer exigências inúteis ou desnecessárias à licitação, como também não quer dizer que se deva anular o procedimento ou o julgamento, ou inabilitar licitantes, ou desclassificar propostas, diante de simples omissões ou irregularidades na documentação ou na proposta, desde que tais omissões ou irregularidades sejam irrelevantes e não causem prejuízo à Administração ou aos concorrentes.” (TCU, Decisão no. 570/1992, Plenário, Proc. no TC-009.546/92-8, publicado no DOU DE 29/12/92)

“Nesse sentido, vale lembrar a lição do saudoso mestre Hely Lopes Meirelles ao comentar que: não se anula procedimento diante de meras omissões ou irregularidades impertinentes e irrelevantes na documentação ou na proposta. Não se pode confundir forma legal com formalismo, que se caracteriza por exigências inúteis e desnecessárias. Aliás, é a regra dominante nos processos judiciais: “não se decreta nulidade onde não houver dano para qualquer das partes” ¾pas de nullité sans grief, como dizem os mestres franceses” (TCU, Decisão no. 472/1995, Proc. no TC-006.029/95-7, Rel. Min. Adhemar Paladini Ghisi, DOU de 02/10/95, citando Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 19a Ed., p. 248).

ADMINISTRATIVO. LICITAÇAO. HABITAÇÃO. VINCULAÇÃO AO EDITAL. MANDADODE SEGURANÇA. 1. A interpretação das regras do edital de procedimento licitatório não deve ser restritiva. Desde que não possibilitem qualquer prejuízo à administração e aos interessados no certame, é de todo conveniente que compareça à disputa o maior número possível de interessados, para que a proposta mais vantajosa seja encontrada em um universo mais amplo. 2. O ordenamento jurídico regulador da licitação não prestigia decisão assumida pela Comissão de Licitação que inabilita concorrente com base em circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, fazendo exigência sem conteúdo de repercussão para a configuração de habilitação jurídica, da qualificação técnica, da capacidade econômico-financeira e da regularidade fiscal. 3. Se o edital exige que a prova da habilitação jurídica da empresa deve ser feita, apenas, com a apresentação do “ato constitutivo e suas alterações, devidamente registrada ou arquivadas na repartição competente, constando dentre seus objetivos a exclusão de serviços de Radiodifusão…”, excessiva e sem fundamento legal a inabilidade de concorrente sob a simples afirmação de que cláusulas do contrato social não se harmonizam com o valor total do capital social e como correspondente balanço de abertura, por tal entendimento ser vago e impreciso. 4. Configura-se excesso de exigência, especialmente por a tanto não pedir o edital, inabilitar concorrente porque os administradores da licitante não assinaram em conjunto com a dos contadores o balanço da empresa. 5. Segurança concedida. (STJ – MS: 5779 DF 1998/0026226-1, Relator: Ministro JOSÉ DELGADO, Data de Julgamento: 09/09/1998, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 26/10/1998 p. 5)

      As normas licitatórias mais recentes passaram a conter disposições que dessem supedâneo ao enfrentamento dessa questão, com dispositivos que sustentariam o agir do Pregoeiro ou Comissão no sentido de corrigir defeitos na proposta ou na habilitação de licitantes, tais como o art. 4º, par. único do Decreto Federal no. 5.450/2005 (pregão eletrônico); o art. 12, IV, da Lei Federal no. 11.079/2004 (Lei das PPPs); art. 24, I, da Lei Federal no. 12.462/2011 (RDC). Mais recentemente, o art. 47, do Decreto Federal no. 10.024/2019 (novo pregão eletrônico) e o art. 64 da Lei Federal no. 14.133/2021 (nova lei de licitações e contratos).

      Nada obstante, nenhuma dessas normas se ocupou em estabelecer quais seriam os limites para essas correções, com exceção do art. 64, da Lei no. 14.133/2021 que estabelece que o saneamento de defeitos será admitido para complementação das informações de documentos já apresentados e necessários para apurar fatos já existentes à época da abertura do certame (inciso I) ou para atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data do recebimento das propostas (inciso II). Mas essa delimitação encontra espaço para interpretação extensiva se observado o que dispõe o parágrafo 1º, do mesmo dispositivo:

§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.

      Sendo assim, permanece a dúvida de quais seriam os limites a serem observados para correção de defeitos na documentação apresentada por licitantes em certames licitatórios. E são distintos, para a habilitação e para a proposta. Senão vejamos.

      Os documentos de habilitação são de natureza declaratória, isto é, dizem respeito a fatos pretéritos, portanto já consolidados pelo tempo. Basta ver, por exemplo, que os atestados de capacidade técnica fazem referência à execução contratual anterior; o balanço patrimonial é o do último exercício, e assim por diante. Poder-se-ia argumentar no sentido de que as certidões negativas de débito, por conterem prazo de validade para frente, não seriam relativos a fatos pretéritos, o que não é verdade. A despeito da validade de tais certidões operarem para momento futuro, o conteúdo da certidão diz respeito a fato pretérito, que é a inexistência “até a data da sua emissão” de débitos. E mais. Em todas, há declaração no sentido de que a mesma não se refere a lançamentos ou inscrições posteriores à sua emissão.

      Sendo assim, para fins de correção de defeitos na habilitação, o limite a ser observado é o de, com a correção, não alterar ou possibilitar a alteração do fato cujo documento deve comprovar. Afinal, o fato a ser comprovado não é mais importante que o meio de prova. Tendo apresentado documento defeituoso ou mesmo não tendo sido entregue o documento, será possível a sua correção (ou nova entrega) desde que essa correção não se consubstancie em alteração do fato descrito no documento original. Vamos a um exemplo.

      O licitante não juntou a CND estadual (não estamos falando da aplicação do art. 43, da Lei Complementar no. 123/2006). Ao ser julgada a sua habilitação, o licitante informa que se esqueceu de anexar o documento, mas garante que está em dia com as suas obrigações perante o fisco estadual. Ora, se ele trouxer a CND, mesmo extemporaneamente, e esse documento novo indicar que não constava débito na data da apresentação da proposta, a correção é possível, pois a situação fática não teria sido alterada a partir da correção. No entanto, se ficar demonstrado que, com a oportunização da correção, o licitante estava em débito na data da apresentação da proposta, mas conseguiu regularizar o débito por ocasião da diligência, significa que lhe foi viabilizado alterar a situação fática que era presente no momento da apresentação das propostas. Portanto, no segundo caso, a correção não poderia ser deferida.

      Já a proposta é um documento de natureza constitutiva, pois cria relações jurídicas novas a partir da sua emissão. Basta ver que o proponente só se obriga aos termos da sua proposta após a sua emissão e posterior recepção pelo oblato. Daí porque, a correção de defeitos em uma proposta encontra limite em seu próprio conteúdo material. Não será possível empreender uma correção que viesse alterar ou possibilitar a alteração do conteúdo da proposta, como por exemplo, indicar nova marca do produto, porque não aprovada a amostra exigida como critério de aceitabilidade de proposta.

      Assim estabelecido, pode-se ver que a Corte Federal de Contas adota em sua linha jurisprudencial tal entendimento. Nota-se que o precedente sub examine não condenou o agir do Pregoeiro que oportunizou as empresas a complementarem a documentação, inserindo documento que antes não constava. Isto porque, conforme explicado acima, mesmo que o documento somente tenha sido juntado após a abertura das propostas, se a situação fática a ser comprovada já era existente na data do certame, nenhuma violação teria sido cometida.

      O Tribunal apenas considerou irregular o ato por falta de motivação, ou seja, o ato foi exarado, porém desprovido de fundamentação que o justificasse, o que acabou não gerando qualquer efeito, pois o órgão (Diretoria de Abastecimento da Marinha) já havia revogado a licitação, o que causou a perda do objeto da Representação interposta.

      Pessoalmente, entendo que tão só a falta de motivação não seria suficiente para anular o ato. Partilho da corrente que entende que, em se tratando de licitações públicas, a ausência de motivação, como pressuposto de validade do ato administrativo, por regra, é vício sanável, admitindo convalidação. Isto porque, mesmo ausente a motivação, a parte interessada pode recorrer às instâncias competentes para buscar a garantia de seu direito. No caso em apreço, o licitante pode recorrer da decisão e, no seu julgamento, a autoridade competente, em suas razões de decidir, apontar a motivação do ato de saneamento da habilitação, inclusive, porque a homologação do torneio é o ato da autoridade a quo (Dirigente do órgão) que confirma a legalidade e correção dos atos da autoridade ad quem (Pregoeiro).

      A aplicação das normas licitatórias deve ser enxergada sob o prisma da obtenção de melhor resultado possívelpara a Administração. Atento a isso, o Tribunal de Contas da União mantém firme o posicionamento segundo o qual, o afastamento de licitantes em torneios licitatórios somente encontra espaço quando impossível o seu aproveitamento, sendo mesmo um dever de ofício, não mais um ato discricionário, frente ao dever de eficiência (art. 37, caput¸ da CRFB) o saneamento de falhas corrigíveis na habilitação e nas propostas.

*Luiz Claudio Chaves é especialista em Direito Administrativo e professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR e consultor do Instituto de Administração Municipal-IBAM Autor das seguintes obras: Curso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris; Licitação Pública – Compra e Venda governamental Para Leigos, alta Books; O Novo Pregão Eletrônico (co-autoria), JML, Curitiba, 2019; Gerenciamento de Riscos nas Aquisições e Contratações de Serviços da Administração Direta, Estatais e Sistema S, JML, Curitiba, 2020; e, Diálogos sobre a nova lei de licitações e contratações – Lei no. 14.133/2021, JML, Curitiba, 2021.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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