As entidades do Sistema S, embora regidas por regulamentos próprios de contratação (RCA), encontram-se sob a jurisdição do Tribunal de Contas da União (TCU). Uma recente decisão do Plenário (Acórdão 2612/2025) oferece um verdadeiro roteiro de boas práticas para gestores, especialmente sobre como fundamentar escolhas que, à primeira vista, poderiam ser consideradas restritivas à competição.
O caso analisado tratou de um chamamento público para a contratação de serviços de vale-alimentação, conduzido por uma entidade integrante do sistema S da indústria. A representação alegava, essencialmente, duas irregularidades:
- A exigência de que o serviço fosse prestado exclusivamente no modelo de arranjo de pagamento “aberto”, vedando o “fechado”.
- A exigência de um aplicativo (App) para consulta da rede credenciada, o que seria supostamente incompatível com o modelo “aberto”.
O TCU, no entanto, considerou a representação improcedente, validando o edital. A análise dessa decisão revela lições cruciais sobre a importância da fase preparatória da licitação.
Lição 1: O Planejamento e o Conhecimento de Mercado Legitimam a Discricionariedade
A principal lição do acórdão é que a escolha de um modelo ou requisito técnico específico insere-se no âmbito da discricionariedade do gestor, desde que essa escolha seja devidamente motivada e fundamentada no interesse público.
No caso do vale-alimentação, o TCU destacou que a própria legislação (Decreto 10.854/2021) confere ao gestor a margem de escolha, ao afirmar que o arranjo “poderá” ser aberto ou fechado.
O Papel do Estudo Técnico Preliminar (como atividade de planejamento)
Embora as entidades do Sistema S não estejam obrigadas a adotar o artefato “Estudo Técnico Preliminar (ETP)” nos moldes exatos da Lei 14.133/2021, elas não estão eximidas da obrigação de planejar. O acórdão valida integralmente a essência dessa atividade.
A entidade do Sistema S teve sua escolha (pelo arranjo aberto) validada porque soube justificar tecnicamente o porquê dessa opção ser a mais vantajosa. O Termo de Referência (TR) continha um item específico (16.1) que listava as razões da escolha, fruto evidente de um estudo prévio de mercado e das necessidades internas. As justificativas aceitas pelo TCU incluíram:
- Ampliação da competitividade e garantia de isonomia;
- Mitigação de riscos de concentração de mercado e dependência de um fornecedor específico;
- Promoção de maior segurança operacional;
- Permissão de escalabilidade e adaptação a demandas futuras;
- Garantia de atendimento uniforme em todo o território;
- Fortalecimento da transparência e aumento da probabilidade de obtenção da proposta mais vantajosa.
Ponto de Atenção: A discricionariedade não é um cheque em branco. Sem as justificativas técnicas listadas acima, que demonstram o elo entre a exigência e o interesse público, a decisão do gestor seria considerada arbitrária e restritiva. O planejamento da contratação, materializado em um estudo técnico preliminar (entendido como a análise de soluções de mercado), é a ferramenta que constrói essa fundamentação.
Lição 2: Requisitos Técnicos Devem Focar na Eficácia (e a Flexibilidade na Habilitação)
O segundo ponto da representação questionava a exigência de um aplicativo para consulta da rede credenciada, alegando ser uma restrição desnecessária no modelo “aberto” (onde a rede é ampla, como Visa ou Mastercard).
Aqui, o acórdão traz duas lições valiosas sobre como elaborar o TR:
- Justificar o Requisito pela Ótica do Usuário: A entidade defendeu com sucesso a exigência, não pela ótica da empresa, mas pela do usuário final. O TCU concordou que a funcionalidade era uma “opção adicional de acesso” e uma “funcionalidade mínima essencial à adequada gestão das informações pelos usuários”. Além disso, o App possuía diversas outras funções úteis (consulta de saldo, extrato, alteração de senha etc.), o que demonstrava a clara utilidade da ferramenta para a boa execução do contrato.
- Separar a Exigência Técnica da Comprovação na Habilitação: Este é um ponto de atenção crucial para o Sistema S. A entidade poderia ter inviabilizado a competição se exigisse, para fins de habilitação, que uma empresa de arranjo aberto listasse todos os estabelecimentos que a aceitavam. Contudo, a Comissão de Licitação demonstrou flexibilidade inteligente: manteve a exigência do App (pois era útil ao usuário), mas flexibilizou a comprovação. Foi esclarecido que, para a habilitação, a licitante poderia substituir a lista por uma “declaração informando a rede de atendimento e a bandeira utilizada”.
Essa atitude removeu o ônus desproporcional da habilitação, preservando a competitividade e, ao mesmo tempo, garantindo que a necessidade técnica da entidade fosse atendida na execução contratual.
Conclusão: O Roteiro para Contratações Seguras no Sistema S
O Acórdão 2612/2025-TCU – Plenário é categórico ao reforçar que a solidez de uma licitação, especialmente no Sistema S, reside na qualidade da sua fase preparatória.
Para gestores e comissões de licitação, as lições apreendidas são:
- Fundamentação é Defesa: Realizar um estudo técnico preliminar – entendido como o processo de analisar o mercado e as soluções técnicas disponíveis – não é mera formalidade. É esse estudo que fornece os argumentos técnicos (como os listados pela entidade) que blindarão o Termo de Referência contra questionamentos de restrição à competitividade.
- Competitividade Real: A prova de que as exigências não foram restritivas foi o fato de que ao menos três propostas foram apresentadas em conformidade com o edital. Um bom estudo de mercado antecipa se há fornecedores capazes de atender às demandas.
- Foco na Eficácia: Requisitos técnicos são legítimos quando visam assegurar a eficácia da execução contratual e o bom atendimento das necessidades dos usuários.
- Flexibilidade Habilitatória: É possível (e desejável) equilibrar exigências técnicas robustas com critérios de habilitação flexíveis, como a aceitação de declarações, garantindo a ampla participação sem abrir mão da qualidade desejada.
Fonte: Acórdão 2612/2025 TCU – Plenário
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