PARTICIPAÇÃO DE EMPRESAS ESTRANGEIRAS EM LICITAÇÕES PÚBLICAS NACIONAIS: A ILEGALIDADE DA INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 10/2020

SIDNEY BITTENCOURT
Mestre em Direito pela UGF, consultor, parecerista e conferencista consagrado. Autor de inúmeras obras jurídicas, além de articulista, com artigos, ensaios, pareceres e estudos publicados nos principais veículos de divulgação jurídica. Professor de cursos de pós-graduação em diversas instituições de ensino, tais como: Fundação Getulio Vargas, Universidade Candido Mendes, Lex Magister Cursos Jurídicos, Faculdade Béthencourt da Silva, COAD – Centro de Orientação, Atualização e Desenvolvimento Profissional , CEAP – Centro de Aperfeiçoamento Profissional, Materko e Centro de Instrução Almirante Newton Braga de Faria. Elaborador de mais de uma centena de artigos e com o maior número de livros editados sobre licitações e acordos administrativos do mercado jurídico nacional, o que motivou o emérito professor Ivan Barbosa Rigolin a asseverar que “é o mais prolífico e profícuo autor de obras
sobre assuntos que envolvem licitações e contratos”. É considerado um dos maiores
especialistas em licitações e contratos do País.
<htttp://www.sidneybittencourt.com.br>
Autor de diversas obras, tais como o “Licitação Passo a Passo” – 10ª edição (Editora Fórum) e do livro “Contratando sem licitação”  – 2ª edicoa (Editora Almedina Brasil).

Durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em janeiro de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou a intenção de o Brasil aderir ao Acordo de Compras Públicas, acordo plurilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC) que estabelece para os países signatários uma série de compromissos em matéria de transparência e acesso aos mercados de compras públicas que tem como meta promover a abertura mútua das compras governamentais, sem distinção de origem, imposição de barreiras para itens importados ou margem de preferência para produtos domésticos.[1]
Nesse cenário, num primeiro passo para a concretização dessa meta, o governo federal, via o mesmo ministério, editou a Instrução Normativa nº 10/2020, simplificando a participação de empresas estrangeiras em licitações públicas nacionais.
A instrução, que tem como escopo alterar a IN nº3/2018, que estabelece regras de funcionamento do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – Sicaf no âmbito do Poder Executivo federal, insere um artigo que versa sobre a participação em licitações nacionais de empresas estrangeiras que não funcionem no Brasil.

Art. 20-A. As empresas estrangeiras que não funcionem no País, para participarem dos procedimentos de licitação, dispensa, inexigibilidade e nos contratos administrativos, poderão se cadastrar no Sicaf, mediante código identificador específico fornecido pelo sistema, observadas as seguintes condições:
I – os documentos exigidos para os níveis cadastrais de que trata o art. 6° poderão ser atendidos mediante documentos equivalentes, inicialmente apresentados com tradução livre; e
II – para fins de assinatura do contrato ou da ata de registro de preços:
a) os documentos de que trata o inciso I deverão ser traduzidos por tradutor juramentado no País e apostilados nos termos do disposto no Decreto nº 8.660, de 29 de janeiro de 2016, ou de outro que venha a substituí-lo, ou consularizados pelos respectivos consulados ou embaixadas; e
b) deverão ter representante legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente.
§1° No caso de inexistência de documentos equivalentes para os níveis cadastrais de que trata o inciso I, o responsável deverá declarar a situação em campo próprio no Sicaf.
§2° A solicitação do código de acesso de que trata o caput deverá se dar nos termos do disposto no Manual do Sicaf, disponível no Portal de Compras do Governo Federal.

Assim, pela IN nº 10/2020, para participar de uma licitação nacional, a única exigência será a inclusão da empresa estrangeira no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf).
Posteriormente, para a assinatura do contrato, caso uma empresa estrangeira se sagre vencedora do certame, ou venha a ser selecionada para a assinatura da Ata de Registro de Preços (na hipótese de estar participando de uma licitação de registro de preços), é que: (a) os documentos exigidos para níveis cadastrais deverão ser traduzidos por tradutor juramentado no País e apostilados nos termos do disposto no Decreto nº 8.660, de 29.01.2016,[2] ou, alternativamente, serão consularizados pelos respectivos consulados ou embaixadas; e (b) será indicado o representante legal no Brasil, com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente.

Em que pese o aparente avanço, com maximização da competitividade, essa normatização, a nosso ver, caracteriza subversão ao ordenamento jurídico vigente, já que as empresas estrangeiras sem autorização para funcionamento no Brasil só podem participar de licitações se tais certames tenham por objeto prestações que não impliquem a incidência da vedação do art. 1.134 do Código Civil, tendo, em tais condições, amparo no art. 32, §4º, da Lei nº 8.666/1993, caracterizando uma licitação internacional.
É o que também explicitou Rafael Schwind, ao balizar as licitações nacionais e internacionais realizadas de acordo com a legislação brasileira:

Mesmo uma licitação nacional realizada de acordo com a legislação brasileira admite a participação de concorrentes estrangeiros. A diferença é que, nas licitações nacionais realizadas de acordo com a legislação brasileira, o licitante estrangeiro, caso seja contratado, receberá seus pagamentos em moeda nacional e, para que haja a sua qualificação, e dependendo da natureza da prestação a ser executada, deverá comprovar que possui autorização para funcionamento no Brasil, na forma dos artigos 1.134 a 1.141 do Código Civil. Empresas com sede no exterior, portanto, podem participar de licitações nacionais, mas devem cumprir esses requisitos de ordem burocrática. Já nas licitações internacionais realizadas de acordo com a legislação nacional, os recursos podem ser de origem doméstica ou estrangeira, mas a licitação é expressamente aberta a licitantes estrangeiros, inclusive que não estejam em funcionamento no Brasil. Portanto, nesses casos, como regra geral, o licitante estrangeiro não precisa ser previamente autorizado a operar no Brasil, e pode receber pagamentos em moeda estrangeira.[3]

No mesmo diapasão, Erica Requi:[4]

A principal característica das licitações internacionais é a de expandir a possibilidade da participação de interessados na contratação. Ou seja, em vez de restringir o acesso ao certame somente aos licitantes nacionais ou estrangeiros com atuação regular dentro das fronteiras nacionais, a licitação internacional abre espaço para que interessados estrangeiros, sem qualquer relação com o Brasil (domicílio, atuação, entre outros), participem do certame. […] é possível entender que empresa estrangeira é a sociedade constituída e organizada de acordo com a legislação de seu país de origem e onde mantém sua sede. Logo, se uma empresa é constituída na forma da legislação brasileira e neste país está sua sede, esta é uma empresa nacional. […] Diante disso, se a licitação é nacional, para as empresas estrangeiras participarem desse certame, devem, como regra, estar instaladas no país e, por isso, é necessária a apresentação do decreto de autorização, na forma do inciso V do art. 28 da Lei nº 8.666/93. […] Agora, se a licitação é internacional, as empresas estrangeiras que não possuem funcionamento no país poderão participar. Para tanto, basta a apresentação de documentos de habilitação equivalentes e a representação legal no Brasil, na forma do § 4º do art. 32 da Lei nº 8.666/96. […] Observe-se que a possibilidade de empresas estrangeiras que não funcionem no país participarem de licitações, em princípio, restringe-se às licitações internacionais. A licitação internacional, portanto, possibilita que particulares sediados no estrangeiro e constituídos com fundamento na legislação do seu país de origem, participem do certame. Já as licitações nacionais são aquelas realizadas dentro das fronteiras do país, vale dizer, sem que se lance mão de medidas de divulgação e publicidade quanto à licitação no âmbito internacional. (grifo da autora)

E a inteligência de Marçal Justen:

A disciplina jurídica do funcionamento de·.empresas estrangeiras no Brasil consta dos arts. 1.134 a 1.141 do CC/2002. O princípio fundamental consiste em que as companhias estrangeiras não podem funcionar no Brasil sem uma autorização governamental. […] A regulação prevista na Lei nº 8.666/1993 é muito menos rigorosa do que a do Código Civil. […]. O Código Civil disciplina a concessão de autorização para companhias estrangeiras funcionarem no Brasil. A Lei regula a situação em que a empresa estrangeira não funcione no Brasil. Logo, os campos materiais de regulamentação dos dois diplomas são distintos. A empresa estrangeira, se desejar receber autorização para funcionar no Brasil, deverá cumprir as regras do Código Civil. Cumpridas tais regras, a sociedade sujeita-se a regime equivalente ao previsto para sociedades nacionais […]. Logo, não se aplica às sociedades estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil o disposto no art. 32, §4º da Lei. Esse dispositivo regula, exclusivamente, a situação da sociedade estrangeira que, não tendo autorização, desejar participar de uma licitação. Se tal for permitido no ato convocatório, existirá uma licitação “internacional”.[5]

Como é cediço, instruções normativas, assim como circulares, portarias, avisos etc., são atos que servem para que a Administração Pública organize as suas atividades, sendo denominados, no âmbito administrativista, de ordinatórios.
Funcionam, nesse contexto, como instrumentos de auxílio para a definição da organização interna.
Hely Lopes Meirelles os tinha em patamar bastante inferior, sustentando que deveriam consignar tão somente ordens escritas e gerais a respeito do modo e forma de execução de determinado serviço público, expedidas pelo superior hierárquico com o escopo de orientar no desempenho das atribuições que lhe estariam afetas e assegurar a unidade de ação no organismo administrativo.[6]
Contudo, na prática, não raro, muitos desses atos são adotados consignando amplo caráter normativo, impondo regras de toda ordem, diversas vezes substituindo o natural documento regulamentar, que é o decreto.
Pior, entretanto, quando são utilizados para engodar as regras legais estabelecidas.
Nesse campo, logo nos vem à mente alentada monografia de Toshio Mukai – que incansavelmente repetimos sempre que instados a tratar do tema, de título “E ainda se legisla por portarias e/ou instruções normativas” – na qual o ilustre doutrinador dá vazão a toda a sua preocupação quanto ao uso inapropriado dessa ferramenta.[7]
No mesmo contexto, comentando as inúmeras instruções concernentes às licitações e aos contratos administrativos que assolam o direito administrativo pátrio, Carlos Pinto Coelho Motta anotou que, em casos concretos, esses normativos tendem a extrapolar seus papeis:

Especificamente na área de licitações e contratos, verifica-se uma proliferação de toda sorte de regulamentos. É um campo a ser trilhado com cautela, por implicar na movediça questão das prerrogativas da Administração em contraponto aos direitos dos licitantes e contratados. (…). Tais atos não podem, contudo, limitar o universo potencial de licitantes engendrando requisitos ou obrigações não autorizados em lei.

Sobre as Instruções Normativas, asseverou com desapontamento:

 
Nos anos de vigência do Decreto-Lei de Licitações nº 2.300/1986, era constante a expedição de normas procedimentais específicas, tais como os múltiplos regulamentos de licitação das empresas estatais. Após a sanção da Lei nº 8.666/1993, essa práxis caiu em relativo desuso. Nos últimos anos, notadamente na esfera federal, foi retomada e consubstanciou-se, notadamente, em uma série de instruções normativas geradas pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, por meio de sua Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação. (…) A simples leitura das ementas indica que tais diretivas, a exemplo de alguns decretos, promoveram ampliações e complementações significativas aos textos legislados nº 8.666/1993 e nº 10.520/2002. De certa forma, introduziram inovações, fixando requisitos para habilitação, critérios de aceitabilidade de propostas e condições para apresentação de documentação e proposta.[8]

Destarte, fica claro que, no afã de solucionar a questão da participação de empresas estrangeiras em licitações nacionais, o elaborador da Instrução Normativa nº 10/2020 não atentou para as peculiaridades das regras legais que versam sobre a questão, incorrendo, por conseguinte, em flagrante ilegalidade.[9]

 
Vide que, mesmo amenizando o uso dos atos administrativos ordinatórios – dispondo que as tentativas de distingui-los têm sido infrutíferas, em face da variação que sofrem quanto ao conteúdo e à competência dos agentes, anotando que, na prática administrativa, é importante apenas entende-los como instrumentos de organização da Administração, cabendo verificar se, em cada caso, foi competente o agente que os praticou, se estão presentes seus requisitos de validade e, por fim, qual o propósito do administrador –, José dos Santos Carvalho ressalva que tais atos obviamente não poderão, em hipótese alguma, contrariar a lei ou o decreto regulamentar, caso exista, uma vez que consignam atos inferiores, de mero ordenamento administrativo.[10]


[1] Embora não seja signatário do acordo, o Brasil aderiu ao GPA no 2º semestre de 2017 como membro observador.
[2] Decreto que promulgou a Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, firmada pelo Brasil, em Haia, em 5.10.1961, conhecida como “Convenção da Apostila”, que estabelece que seus Estados Contratantes dispensarão, nas relações entre eles, o instituto da legalização de documentos estrangeiros.

[3]SCHWIND.Licitações internacionais. 2. ed. Fórum, 2017.

[4]RECHI.  Licitação nacional x Licitação Internacional. Disponível em: <https://www.zenite.blog.br/licitacao-nacional-x-licitacao-internacional/>.
[5]JUSTEN FILHO. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 16.  ed., p. 655.

[6]  MEIRELLES. Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed., p. 167.
[7]MUKAI. E ainda se legisla por portarias e/ou instruções normativas. Boletim Legislativo Adcoas, v. 30, n. 1, jan. 1996.
[8] MOTTA. Os efeitos das regulamentações complementares na condução dos pregões. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, abril/maio/junho 2010, v. 75, n. 2, p. 50.
[9]Registre-se entendimento divergente de Jonas Lima, um entusiasta da nova medida infralegal: “Desde 2009 venho alertando nos meus cursos de licitações internacionais que, apesar de não haver impedimento em lei para a participação de empresas estrangeiras nas licitações, apenas autorização por decreto para raras atividades que assim o exigem, para funcionamento no Brasil, no geral, o mercado de bens e serviços sempre esteve aberto. Havia impedimento apenas em norma administrativa e inviabilidade operacional de participação nos sistemas de pregãoeletrônico, por causa de questões de equalizações de propostas e outrasLIMA. Empresas estrangeiras poderão ter Sicaf para acesso às licitações”. Disponível em <https://www.inovecapacitacao.com.br/empresas-estrangeiras-poderao-ter-sicaf-para-acesso-as-licitacoes/>

[10] CARVALHO FILHO. Manual de Direito Administrativo. 23. ed.,  p. 151.

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