- Introdução
O tema envolvendo recursos no Pregão Eletrônico é bastante instigante e relevante na conjuntura atual, notadamente quando se refere à modalidade de licitação mais adotada nos últimos anos, de acordo com os dados estatísticos do site de Compras do Governo Federal[1], além da publicação do Decreto Federal nº 10.024, de 20 de setembro de 2019, que trouxe a obrigatoriedade de utilização do Pregão Eletrônico, no âmbito federal e a competência do Pregoeiro para decidir recursos quando mantiver sua decisão.
O objetivo do presente artigo é trazer uma reflexão a respeito da competência para julgamento dos recursos em sede de Pregão Eletrônico, uma vez que, tanto a doutrina quanto a dinâmica na prática trazem entendimentos flutuantes sobre a matéria.
Inicialmente, antes de adentrarmos, propriamente, no mérito da competência para julgar os recursos na modalidade de Pregão, interessante trazer à baila a contextualização histórica sobre o Pregão, inclusive sob a perspectiva constitucional, de onde surgiu, e as razões pelas quais foi instituído no ordenamento jurídico pátrio.
- Do contexto histórico do pregão
A modalidade Pregão surgiu nas Ordenações Filipinas, conhecida como a primeira manifestação normativa adotada no campo da licitação no território brasileiro. Pronta desde 1595 só entrou em vigor no reinado de Filipe II, através de Lei de 11 de janeiro de 1603, mantendo-se a sua vigência até o Código Civil de 1867 em Portugal, e até o Código Civil de 1917 no Brasil.
Preocupava-se com a obrigatoriedade da adoção do Pregão, para obtenção de preços mais vantajosos e também sobre a questão da publicidade dos seus atos, senão vejamos:
Em se fazendo obra, primeiro andar em pregão, para se dar a empreitada a quem houver de fazer melhor e por menos preços; porém as que não passarem de mil réis, se poderão mandar fazer por jornais, e umas e outras se lançarão em livro, em que se declare a forma de cada uma, lugar em que se há de fazer, preço e condições do contrato. E assim como forem pagando aos empreiteiros, farão ao pé do contrato conhecimento do dinheiro, que vão recebendo, e assinarão os mesmos empreiteiros e o Escrivão da Câmara; e as despesas que os Provedores não levarem em conta, pagá-las-ão os Vereadores, que as mandaram fazer.
Já era possível identificar, apesar da precariedade do modelo, a mesma dupla finalidade objetivada nas licitações de hoje: a obtenção da proposta mais vantajosa (economicidade) e a igualdade entre os participantes (isonomia). Naquela época, usava-se “o sistema denominado ‘vela e pregão’, que consistia em apregoar-se a obra desejada, e, enquanto ardia uma vela os construtores interessados faziam suas ofertas. Quando extinguia a chama adjudicava-se a obra a quem houvesse oferecido o melhor preço”[2].
Referida modalidade volta a ser adotada de forma exclusiva pela Agência Nacional de Telecomunicações, por força dos artigos 54 e 56 da Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997. Com a publicação da Lei nº 9.986, de 19 de julho de 2000, todas as Agências Reguladoras também puderam utilizar a modalidade pregão (art. 37).
Como alertado por Vera Monteiro (2003, p. 29), o pregão:
[v]eio definido no art. 56 da LGT como a modalidade de licitação para aquisição de bens e serviços comuns, em que a disputa pelo fornecimento é feita por meio de lances em sessão pública. A grande característica dessa nova modalidade – segundo se colhe dos arts. 55, VIII, 56 e 57 da LGT – é a ocorrência da inversão das fases de habilitação e julgamento, se comparada com os procedimentos fixados na Lei 8.666. No pregão a qualificação subjetiva será sempre feita após a etapa competitiva, o que significa dizer que a habilitação será feita após a verificação e decisão quanto ao preço oferecido, e apenas com relação àquele classificado em primeiro lugar. Na Lei 8.666 os procedimentos licitatórios seguem lógica completamente inversa: a habilitação dos participantes deve sempre preceder o julgamento das propostas comerciais.
Já, a possibilidade de utilização geral veio em 18 de julho de 2000, por meio da Medida Provisória nº 2.062-2, de 29 de junho de 2000, publicada no DOU de 30.06.2000. Reeditada sem alterações até a nº 8, de 21 de dezembro de 2000, quando foi substituída pela Medida Provisória nº 2.108-9, de 27 de dezembro de 2000, e nº 2.108-10 de 26 de janeiro de 2001, também sem alterações.
Em 8 de agosto de 2000, foi publicado o Decreto nº 3.555, que aprovou o Regulamento para a Modalidade Presencial do Pregão, bem como listou os bens e serviços comuns. Foi alterado duas vezes pelos Decretos nº 3.693, de 20 de setembro de 2000 e nº 3.784, de 6 de abril de 2001. Também foi editado o Decreto Federal nº 3.697, de 21 de dezembro de 2000, ainda na vigência da MP nº 2.026-7 (sua sétima reedição), para regulamentar o pregão por meio da utilização de recursos de tecnologia da informação – o pregão eletrônico. No dia 17 de julho de 2002, tomando como referência o Projeto de Lei de Conversão nº 19, de 2002, da Medida Provisória nº 2.182-18, de agosto de 2001, foi instituída a caçula das modalidades de licitações, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.[3]
Por sua vez, a conversão na Lei nº 10.520[4], somente ocorreu em 17 de julho de 2002[5], momento em que, como normal geral exarada nos termos do art. 22, inciso XXVII, da CF/1988, passou a ser observada por todos os entes federativos. Assim, convém ressaltar que se trata de competência privativa da União legislar sobre normas gerais de licitações e contratos, daí porque sobreveio a Lei nº 10.520/2002, instituindo, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, nos termos do art. 37, inciso XXI da própria Constituição Federal, a modalidade de pregão para a aquisição de bens e serviços comuns. Ademais, é de se perceber que, a modalidade de Pregão foi instituída por Lei própria, qual seja, a Lei nº 10.520/2002, não fazendo parte, portanto, do rol das modalidades tradicionais trazidas no bojo da Lei nº 8.666/1993.
- Da fase recursal no pregão e suas peculiaridades.
Ultrapassada a parte introdutória e a retrospectiva histórica sobre a modalidade de Pregão, convém destacar as principais características do procedimento e abordar também as questões intrínsecas à fase recursal. Dentre as principais características da modalidade pregão, a identificar ter um regime jurídico próprio e especial, destacam-se: (i) destina-se a aquisição de bens e serviços comuns; (ii) pode ocorrer de forma presencial ou eletrônica; (iii) o critério de julgamento adotado, em regra, é o menor preço; (iv) a disputa é feita por lances apresentados pelos licitantes; (v) a negociação com o fornecedor para obtenção de melhores preços; (vi) não há limite de valor para utilização da modalidade, como existe nas licitações tradicionais da Lei 8.666/93 e (vii) adota a regra da inversão de fases, o que implica a fase da classificação anteceder à habilitação.
Como decorrência da inversão de fases, o pregão passa a ter uma fase recursal una[6], que ocorre após a “decisão que indica o vencedor (ou declara fracassado o procedimento), momento em que os licitantes poderão manifestar intenção de recorrer”[7], a significar a irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias tomadas durante a sessão pública.
Sobre a fase recursal, disciplina o art. 4º, incisos XVIII a XXI, da Lei nº 10.520/2002, que:
Art. 4º A fase externa do pregão será iniciada com a convocação dos interessados e observará as seguintes regras:
XVIII – declarado o vencedor, qualquer licitante poderá manifestar imediata e motivadamente a intenção de recorrer, quando lhe será concedido o prazo de 3 (três) dias para apresentação das razões do recurso, ficando os demais licitantes desde logo intimados para apresentar contrarrazões em igual número de dias, que começarão a correr do término do prazo do recorrente, sendo-lhes assegurada vista imediata dos autos;
XIX – o acolhimento de recurso importará a invalidação apenas dos atos insuscetíveis de aproveitamento;
XX – a falta de manifestação imediata e motivada do licitante importará a decadência do direito de recurso e a adjudicação do objeto da licitação pelo pregoeiro ao vencedor;
XXI – decididos os recursos, a autoridade competente fará a adjudicação do objeto da licitação ao licitante vencedor;
Depreende-se da leitura do dispositivo acima que a fase recursal é única, conforme descrito alhures, mas interessante destacar que a Lei traz dois conceitos importantes e é necessário estabelecer diferença entre eles: a manifestação da intenção de interpor recurso administrativo e a apresentação das razões recursais – e na prática, é de grande relevância traçar essa diferenciação, seja no formato eletrônico, seja no presencial. Inclusive, o próprio Tribunal de Contas União já tratou sobre essa temática, quando prevê que “não se confunde a intenção de recorrer com a efetiva interposição de recurso, a ser concretizada em 3 dias, quando deverão ser apresentadas suas razões recursais” (TCU. Acórdão 1.650/2010 – P)[8].
A manifestação da intenção de interpor recurso administrativo, que deve ser feita de maneira imediata e motivada, deve ocorrer para que o licitante comunique a sua real intenção em insurgir-se contra a decisão do Pregoeiro, seja em relação a sua desclassificação, seja em relação à habilitação equivocada de uma empresa concorrente. Importante frisar que essa manifestação da intenção de recorrer deve ser motivada; o licitante deverá indicar os motivos pelos quais o levaram a interposição do recurso, em conformidade com o inciso XVIII do art. 4º da Lei nº 10.520/2002 e também no caso do Pregão Eletrônico, no art. 44, §3º do Decreto Federal nº 10.024/2019.
Vale acrescentar que a ausência de manifestação da intenção de recorrer implica na “decadência do direito”[9], ou seja, o licitante não terá oportunidade para apresentar sua irresignação contra decisão do Pregoeiro através de recurso, com seus efeitos pertinentes, salvo através do direito de petição, constitucionalmente previsto (art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”).
Necessário salientar, que o Pregoeiro deve analisar tão somente os pressupostos/requisitos de admissibilidade recursal, como tempestividade, motivação, sucumbência e legitimidade recursal, conforme dispõe orientação do Informativo de Licitações e Contratos n° 190 do Tribunal de Contas da União, litteris:
3. Em sede de pregão eletrônico ou presencial, o juízo de admissibilidade das intenções de recurso deve avaliar tão somente a presença dos pressupostos recursais (sucumbência, tempestividade, legitimidade, interesse e motivação), constituindo afronta à jurisprudência do TCU a denegação fundada em exame prévio de questão relacionada ao mérito do recurso.
No pregão presencial, a manifestação da intenção de recorrer se dá de forma oral, na sessão pública, quando oportunizado pelo Pregoeiro, e no formato eletrônico, a manifestação deve ser feita através de campo específico no sistema eletrônico, onde ocorre a licitação.
Já as razões recursais, referem-se à exposição da argumentação fática e jurídica do licitante, dos motivos que ensejaram a sua irresignação, no prazo de 3 dias, conforme previsão do inciso XVIII, do art. 4º da Lei nº 10.520/2002. Ademais, nesse momento de apresentação das razões recursais, pode o licitante inserir argumentos que extrapolem o quanto exposto na intenção de recorrer e até mesmo ampliar os questionamentos aventados a priori, quando da manifestação da intenção recursal.[10]
Feita essa distinção, cabe mencionar que a Lei nº 10.520/2002 não faz referência à competência para decidir os recursos interpostos, o que acaba por estar indicado nos respectivos regulamentos.
O Pregão, na forma eletrônica, inicialmente regulamentado, na esfera federal, pelo Decreto nº 5.450, de 31 de maio de 2005, foi revogado pelo Decreto nº 10.024/2019. Sobre a competência para julgar os recursos, merece atenção o contido no art. 13, inciso IV, que indica caber à autoridade competente decidir os recursos contra os atos do pregoeiro, quando este mantiver sua decisão, e no art. 17, inciso VII, pelo qual compete ao pregoeiro, em especial, receber, examinar e decidir os recursos e encaminhá-los à autoridade competente quando mantiver sua decisão.
Tendo em vista a expressa referência de que o Pregoeiro pode decidir recursos, sob o enfoque do que se entende por segregação de funções e competência, importante entender se tem referido agente público essa competência ou não.
- Da segregação de funções e da competência
Uma vez delineada a fase recursal, diante de suas peculiaridades e características procedimentais, e feita a diferenciação entre a manifestação da intenção de recorrer e propriamente a apresentação das razões recursais no Pregão, convém discorrer sobre a segregação de funções e a competência recursal nesta modalidade, especificamente em seu formato eletrônico.
A multiplicidade de atos e fatos que são praticados durante a realização do pregão eletrônico envolve uma diversidade de atores, dentre os quais destacam-se: autoridade competente, pregoeiro, equipe de apoio e licitante.
Para que seja possível identificar a responsabilidade de cada um desses atores, necessário que, em atendimento ao princípio da segregação de funções, haja expressa identificação do papel de cada um deles. Isto porque, referido princípio “decorre do princípio da moralidade (art. 37, da CF/88), e consiste na necessidade de a Administração repartir funções entre os agentes públicos cuidando para que esses indivíduos não exerçam atividades incompatíveis umas com as outras, especialmente aquelas que envolvam a prática de atos e, posteriormente, a fiscalização desses mesmos atos”[11].
Como aponta o Tribunal de Contas da União, “a segregação de funções, princípio básico de controle interno que consiste na separação de atribuições ou responsabilidades entre diferentes pessoas, deve possibilitar o controle das etapas do processo de pregão por setores distintos e impedir que a mesma pessoa seja responsável por mais de uma atividade sensível ao mesmo tempo”[12].
Com fundamento nesse princípio, teria o Pregoeiro competência para decidir recursos interpostos contra atos por ele mesmo praticados, especialmente ciente da existência de uma autoridade hierarquicamente superior?
De início, não se questiona ter o Decreto Federal nº 10.024/2019, em seu art. 17, inciso VII, indicado ter o Pregoeiro competência para decidir os recursos e encaminhá-los à autoridade competente quando mantiver sua decisão. Entretanto, ponderando-se o que se entende por competência, é possível aceitar que um decreto possa ter dado ao pregoeiro uma atribuição decisória? Este é um ponto que merece reflexão e parcimônia na análise.
Entende-se por competência o “círculo compreensivo de um plexo de deveres públicos a serem satisfeitos mediante o exercício de correlatos e demarcados poderes instrumentais, legalmente conferidos para a satisfação de interesses públicos”[13]. Como decorrência, as competências têm as seguintes características: a) não se presumem, já que decorrentes de expressa previsão legal; b) são de exercício obrigatório; c) improrrogabilidade – diante da falta de uso, não se transferem a outro agente; d) inderrogabilidade ou irrenunciabilidade – o titular não pode abrir mão delas enquanto as titularizar; e) incaducabilidade ou imprescritibilidade – mesmo que não utilizadas pelo titular, não importando por quanto tempo, nem por isso deixam de persistir existindo; f) são intransferíveis – não podem, em regra, ser objeto de transação (arts. 11 a 14 da Lei Federal n° 9.784/1999); e g) são imodificáveis – não podem, em regra, ser dilatadas ou restringidas pela vontade do titular (art. 15 da Lei n° 9.784/1999).
Se uma determinada decisão, resultado do exercício de competência administrativa, foi utilizada de forma insatisfatória ou injurídica, é possível a parte diretamente interessada questioná-la na mesma esfera administrativa, mediante, dentre outras hipóteses, do pedido de reconsideração ou do recurso hierárquico. Enquanto o pedido de reconsideração dirige-se à mesma autoridade prolatora da decisão, postulando que a modifique ou suprima, o recurso hierárquico dirige-se à autoridade imediatamente superior à que proferiu a decisão questionada, postulando sua reforma ou supressão[14].
Sendo a Lei nº 10.520/2002 omissa quanto às questões procedimentais do processamento do recurso, aplicando-se subsidiariamente o §4º, do art. 109 da Lei nº 8.666/1993, é possível concluir que o recurso deverá ser dirigido à autoridade superior, por intermédio da quem praticou o ato (pregoeiro), a qual poderá reconsiderar o decidido ou fazê-lo subir devidamente informado, hipótese em que a autoridade superior tomará a decisão final[15].
Pela própria sistemática recursal do Pregão, verifica-se, em princípio, se tratar de recurso hierárquico e não de pedido de reconsideração, já que quando o pregoeiro mantém sua decisão, passa a ser da autoridade competente essa atribuição. Inclusive, traçando um paralelo nessa análise, o próprio Decreto Federal nº 10.024/2019 estabelece expressamente, que quando não há recursos, o Pregoeiro pode adjudicar o objeto ao licitante vencedor (art. 17, inciso IX), ao passo que, quando há recurso interposto, cabe a autoridade competente fazê-la (a adjudicação) – art. 13, inciso V.
- Do julgamento dos recursos no pregão
Observado o princípio da segregação de funções e fazendo um recorte na legislação no que tange ao Pregão Eletrônico, especificamente, tem-se a necessidade de reflexão a respeito da competência para julgamento dos recursos no Pregão.
Quando da apresentação das razões recursais pelos licitantes pode o Pregoeiro, pela sistemática indicada no Decreto Federal nº 10.024/2019[16]:
1) não conhecer do recurso (juízo negativo de admissibilidade), em razão da ausência superveniente de algum requisito de admissibilidade recursal; ou
2) conhecer do recurso (juízo positivo de admissibilidade) e, no mérito, acolhê-lo, realizando um juízo de retratação e, desse modo, reconsiderando sua decisão e revendo seus próprios atos;
3) conhecer do recurso (juízo positivo de admissibilidade) e manter a sua decisão, devendo prestar as devidas informações à autoridade competente para o efetivo julgamento do recurso.
Diante dessas possibilidades, surge o questionamento: quando o Pregoeiro realiza o juízo de retratação, pode ser entendido como decisão do recurso, ou apenas é uma etapa de instrução do processo, o qual deverá ser necessariamente remetido à autoridade para uma decisão final e definitiva?
Sobre este tema, Rafael Sérgio e Victor Aguiar (2020, p. 215) pontuam que
Ao reconsiderar a decisão, o Pregoeiro estará emitindo um novo ato decisório e, dessa forma, desconstituirá a decisão anteriormente adotada, desfazendo os atos subsequentes, na linha do que dispõe o inciso XIX do art. 4º da Lei nº 10.520/2002 e o §4º do art. 44 do Decreto Federal nº 10.024/2019.
Tal é a compreensão da SEGES ao parametrizar o Comprasnet, porquanto, ao reconsiderar a decisão, manifestando-se pela procedência do pleito recursal, o Pregoeiro acionará a operação denominada volta de fase, retornando ao momento procedimental que precede o último ato a ser desfeito. Note-se que, em tal hipótese, o sistema não oportuniza uma eventual chancela da autoridade superior quanto à reconsideração e mesmo quanto à consequente volta de fase por parte do Pregoeiro.
Em complementação, Jair Eduardo Santana (2009, p. 376) esclarece que, quando o pregoeiro exerce um juízo de retratação, revendo sua decisão anterior, trata-se de uma nova decisão, senão vejamos
Se antes habilitado estava A, por exemplo, com a redecisão (voltando) poderá ser inabilitado A e habilitado B, sendo este declarado o vencedor. Como o fluxo (ou o curso) do procedimento tem nova rota, prossegue-se como se aquela primeira etapa (superada com a nova decisão) não tivesse existência, o que implica – no plano prático – na possibilidade de um novo recurso a ser interposto com as naturais dificuldades existentes.
Como consequência, pode-se concluir que, se o pregoeiro tem competência para decidir um recurso interposto contra seus próprios atos, estamos diante de um pedido de reconsideração:
1º) hipótese em que deverá ser garantido aos demais licitantes a possibilidade de apresentação de novo recurso administrativo.
2º) caso não seja garantida aos demais licitantes a possibilidade de apresentação de novo recurso administrativo, há o estrito ferimento aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (inciso LV, art. 5º).
Se o entendimento for de que se está diante de um recurso hierárquico, considerando o previsto no art. 13, inciso II da Lei Federal nº 9.784/1999, que veda a delegação de competências que incluam a decisão de recursos, o juízo de retratação não tem o condão de decidir, tendo natureza somente de instrução processual, para que a autoridade competente possa estar devidamente informada dos elementos necessários à tomada de uma decisão.
De fato, não cabe ao Pregoeiro julgar os recursos de atos/decisões que ele próprio proferiu, sem avaliação da autoridade competente, pois seria ferir o princípio do duplo grau de jurisdição, da segregação de funções e também às disposições da Lei Federal nº 9.784/1999. A referida Lei dispõe, no §1º do art. 56 que nos processos administrativos o recurso deverá “ser dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual, se não a reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade superior”.
Como obtempera Sidney Bittencourt (2020, p. 155), pelas normas, apenas duas condutas são possíveis ao pregoeiro: reconsiderar a decisão prévia ou manter a sua decisão – e nessa última, seria necessário o envio à autoridade competente.
Além disso, muitos instrumentos convocatórios, de forma equivocada, atribuem ao Pregoeiro a competência para o julgamento dos recursos, entretanto, tal fato não é possível. “Não se pode admitir que a autoridade recorrida seja a mesma que decida o recurso, pois, em tese, ela já haveria tomado a decisão impugnada como fundamento em suas convicções sobre o problema posto, o que criaria uma tendência prejudicial ao reexame”[17].
E conclui Joel de Menezes Niebuhr (2020, p. 393):
Se o recurso fosse de alçada do pregoeiro, ele não se chamaria recurso, mas pedido de reconsideração. A reconsideração é dirigida ao sujeito que praticou o ato. O recurso é dirigido a outra pessoa que não aquele que praticou o ato recorrido, à autoridade superior ao pregoeiro. Pois bem, como o pregoeiro não tem competência para decidir o recurso, apenas, se for o caso, rever a sua posição, ele não exerce qualquer juízo de admissibilidade sobre o mérito.
- Conclusão
Neste artigo pretendeu-se analisar de quem seria a competência para julgamento dos recursos interpostos nas licitações, cuja modalidade é o Pregão Eletrônico. A abordagem do contexto histórico trouxe a demonstração de que a celeridade e a obtenção da proposta mais vantajosa são os pilares que ensejaram a ampliação do uso do Pregão, sobretudo o Eletrônico, diante do advento do Decreto Federal nº 10.024/2019.
Ademais, demonstrou-se a necessidade de diferenciar a manifestação da intenção de recorrer da apresentação das razões recursais, de maneira que o Pregoeiro apenas tem competência para avaliar os pressupostos/requisitos de admissibilidade recursal, como sucumbência, tempestividade, legitimidade, interesse e motivação, conforme dito alhures.
Diante da análise dos princípios da segregação de funções, dos dispositivos da Lei Federal nº 9.784/1999, que regula os processos administrativos, no âmbito federal e da previsão do Decreto Federal nº 10.024/2019, entendemos que – muito embora exista uma divergência doutrinária sobre a natureza jurídica da manifestação do pregoeiro (se retratação ou decisão) – não cabe a ele decidir os recursos administrativos, sendo de competência, indelegável, da autoridade superior. Nesse cenário, mesmo sendo o recurso endereçado ao Pregoeiro, possível seria apenas a análise sob o aspecto dos pressupostos recursais relativos à manifestação da intenção de recorrer e da retratação da sua própria decisão (possibilidade de revisão dos seus próprios atos), deixando a cargo da autoridade superior a decisão dos recursos, a quem lhe é atribuída competência por lei.
[1] Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/noticias/decreto-aprimora-regras-do-pregao-eletronico. Acesso em: 29 de dezembro de 2020.
[2] Franceso di Renzo, I Contratti dela pubblica Amministrazione, citado por MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 29.
[3] CAMARÃO, Tatiana. Aspectos Relevantes do Pregão. Disponível em: https://professoratatianacamarao.jusbrasil.com.br/artigos/417461232/aspectos-relevantes-do-pregao. Acesso em: 23 Dez. 2020.
[4] Lembra Carlos Pinto Coelho Motta que a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, ao reintroduzir no Direito brasileiro a modalidade licitatória do pregão para aquisição de bens e serviços, reedita o modelo consagrado nas Ordenações Filipinas (MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas licitações e contratos: estudos e comentários sobre as Leis 8.666 e 8.987/95, a nova modalidade do pregão e o pregão eletrônico; impactos da lei de responsabilidade fiscal, legislação, doutrina e jurisprudência. 12. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 3).
[5] André Rosilho destaca que o pregão decorreu de uma reação ao modelo maximalista, como quarta fase, se concretizando com a erosão do modelo unitário de contratações públicas, bem como pela implantação de uma sistemática de competição, Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC (ROSILHO, André. Licitações no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013).
[6] “Ao contrário do que ocorre nas modalidades da Lei nº 8.666/1993, tem-se no pregão a unirrecorribilidade dos atos decisórios exarados pelo Pregoeiro, havendo, portanto, apenas uma oportunidade de recurso, cuja matéria pode envolver qualquer fase, aspecto ou ocorrência da etapa externa do pregão” (OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Pregão eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 209).
[7] MONTEIRO, Vera. Licitação na modalidade de pregão. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 158.
[8] TCU. Acórdão nº 1650/2010 – Plenário. Rel. Min. Aroldo Cedraz.
[9] Ronny Charles, em sua obra Lei de Licitações Públicas Comentadas, entende, amparado pelas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, que na verdade, nesse caso, não se trata de decadência do direito, e sim preclusão temporal, pois não é atingido o direito e sim, a perda da oportunidade processual, a qual concordamos (TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2021).
[10] TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1156.
[12] TCU. Acórdão nº 1375/2015 – Plenário. Rel. Min. Bruno Dantas. TCU. Acórdão nº 2829/2015 – Plenário. Rel. Min. Bruno Dantas.
[13] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 34. ed. 2019, p. 152.
[14] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 34. ed. 2019, p. 154.
[15] Merece destaque que a sistemática prevista no Projeto de Lei nº 4.253/2020, denominado de Nova Lei de Licitações e Contratos, não irá solucionar a questão, já que prevê, no §2º, do art. 164, situação semelhante.
[16] OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Pregão eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 214.
[17] TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p.1157.