Após o Congresso Nacional derrubar o veto integral que havia sido aposto pelo Presidente da República ao Projeto de Lei nº 4.489, de 2019, do Deputado Efraim Filho, foi promulgada a Lei n. 14.039/2020, que “altera a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, e o Decreto-Lei nº 9.295, de 27 de maio de 1946, para dispor sobre a natureza singular e notória dos serviços de advogados e de profissionais de contabilidade”.
Na justificação do projeto, apresentado na Câmara pelo Deputado Efraim Filho, destacou-se que diante da “relevância profissional da atividade do advogado” e “dos contornos éticos e do múnus público” atribuídos a tal profissional pela Constituição Federal, os serviços por ele prestados seriam, por sua própria natureza, técnicos e singulares, em razão de sua notória especialização intelectual, mas também da confiança que lhe é outorgada por seu contratante. Em suma, tal proposição legislativa buscou tornar incontestáveis os atributos da singularidade e notória especialização, assentando-os em sede de lei.
E ao defenderem a derrubada do veto, os senadores argumentaram que o trabalho dos advogados e dos contadores precisa ser de confiança do gestor público que vai contratá-los. “— Não estamos querendo burlar a legislação. Não estamos dizendo que esta proposta visa impedir que os gestores façam concursos públicos para procuradores. Estamos apenas fazendo o reconhecimento da singularidade dessas atividades” — afirmou o líder do PSB, senador Veneziano Vital do Rêgo (PSB-PB), que relatou o projeto no Senado.[1]
Ainda, a OAB Nacional destacou, em nota, que “por não ter sido pacificada a discussão sobre a inerência da singularidade aos serviços advocatícios, muitos profissionais estão sendo condenados pela presença prática de atos de improbidade administrativa, depois de terem celebrado contrato com entes públicos para o simples desempenho de atividades que lhe são próprias, e em hipóteses em que licitação se afigura, por via de regra, patentemente inexigível”.
Mas será que tal reconhecimento legal da natureza singular dos serviços prestados por advogados e contadores é a saída para justificar/autorizar contratações diretas de modo automático e afastar o risco de ações de improbidade? Será que a partir de agora o administrador está isento do dever de motivar seus atos para justificar a contratação pautada em inexigibilidade de licitação? Será que os Tribunais de Contas e órgãos jurisdicionais aceitarão o quesito “confiança” como justificativa única e suficiente para comprovar a inviabilidade de competição no caso concreto exigido pela Lei 8.666 para as situações de inexigibilidade de licitação?
A resposta, em nosso sentir, é negativa para todas essas questões.
Primeiro porque a motivação é da essência do ato administrativo e, conforme ensina Celso Antonio Bandeira de Mello, “implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo.”[2]
No mesmo sentido, explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“O princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões. Ele está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutiam se a sua obrigatoriedade alcançava só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos.
Na Constituição Federal, a exigência de motivação consta expressamente apenas para as decisões administrativas dos Tribunais e do Ministério Público (arts. 93 e 129, § 4o, com a redação dada pela Emenda Constitucional no 45/04), não havendo menção a ela no artigo 37, que trata da Administração Pública, provavelmente pelo fato de ela já ser amplamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência. Na Constituição Paulista, o artigo 111 inclui expressamente a motivação entre os princípios da Administração Pública.”[3]
Segundo, porque a própria Lei de Licitações exige, para a regularidade da inexigibilidade de licitação com fundamento no art. 25, II, que haja a demonstração da inviabilidade de competição para a contratação de serviço técnico profissional, de natureza singular, o qual demanda sua regular execução por notório especialista, assim entendido como aquele que, no campo de sua atuação, é o mais adequado à plena satisfação do objeto a ser contratado.
Da mesma forma, exige o art. 26 que as situações de dispensa e inexigibilidade devem ser necessariamente justificadas, devendo o processo ser instruído, inclusive, com a razão da escolha do fornecedor ou executante.
Logo, ainda que a partir de agora a singularidade do serviço advocatício e de contabilidade esteja legalmente reconhecida (o que não se concorda com a generalização in abstrato[4] ), o administrador tem o dever de justificar porque escolheu determinado profissional em detrimento de outros, demonstrando ser aquele o mais confiável para a regular execução de um objeto complexo, pois detém especialização e capacitação para o exercício da atividade com características e habilidades que não são usuais a qualquer profissional da área, visto que a especialização agrega ao profissional uma capacitação superior a usualmente identificada no mercado, conforme aduz Justen Filho: “O especialista é aquele prestador de serviço técnico profissional que dispõe de uma capacidade diferenciada, permitindo-lhe solucionar problemas e dificuldades complexas”.[5] (grifou-se)
Entende-se, assim, que o administrador ainda tem o dever de demonstrar a correlação lógica entre a demanda pública que se pretende atender, a qual, por ser complexa e possuir singularidade importante para a Administração, exige a contratação de notório especialista para executá-la satisfatoriamente. Em outras palavras, não está afastada a necessidade de a Administração motivar a definição e os contornos dados ao próprio objeto almejado, fazendo com que se apresente a necessidade de se contratar um profissional com capacidade acima da média para executá-lo e atender plenamente o interesse público envolvido.
Afinal, a Administração não define primeiramente o executor do contrato para depois delinear o objeto de sua demanda. A lógica é inversa. Primeiro se define o objeto, diante de uma necessidade pública a ser atendida. Em face das características desse objeto é que a Administração irá selecionar o melhor prestador, o que a rigor, se faz mediante disputa licitatória, mas que no caso de haver complexidade técnica importante para a execução de determinado serviço técnico-profissional admite-se o afastamento do certame para a contratação de notório especialista, o que acaba por inviabilizar a competição por falta de critérios objetivos de comparação.
Nessa linha, já apontou Fabrício Motta:
“Para além dessas questões, convém ressaltar que a caracterização objetiva do serviço a ser contratado é o primeiro requisito essencial para a validade da contratação direta. Esse aspecto passa pela adequada percepção do que se deve entender por serviço de natureza singular. O fato é que nem todo serviço é singular; tampouco todo serviço é comum. É ainda possível que serviços a priori comuns transmudem-se, a depender das circunstâncias fáticas e das necessidades da Administração, em serviços singulares.
A característica singular dos serviços de advocacia deve ser apta a exigir a contratação de advogado ou escritório com qualificações diferenciadas: atividades jurídicas rotineiras, próprias do dia a dia do funcionamento dos Municípios — desempenháveis de maneira idêntica e indiferenciada (tanto faz quem o executa) por qualquer profissional — não haverão de ser objeto de contratação direta por inexigibilidade (ver TCU: Acórdão 5.318/2010-2ª Câmara, TC-030.816/2007-2, Rel. Min-Subst. André Luís de Carvalho, 14.09.2011).”[6] (grifou-se)
Enfim, a nosso ver, ainda existirão apontamentos pelos órgãos de controle e demandas judiciais questionando-se contratações de notórios especialistas se não existir motivação suficiente no processo a respeito do objeto da contratação e de que o interesse público envolvido será melhor atendido dessa maneira. Portanto, as alterações legislativas promovidas pela Lei 14.039 não criaram nova hipótese de contratação direta, tampouco são uma chancela para contratações indiscriminadas de advogados e contadores pela Administração Pública, cabendo muita cautela nesse sentido.
Nosso entendimento se mantém na linha de que a contratação direta por inexigibilidade é medida excepcional, devendo ser utilizada apenas em casos especiais, relacionados a objetos particulares, evitando-se contratações corriqueiras que podem ser atendidas por profissionais da área sem maior grau de especialização.[7]