Repensando a Separação Estanque entre Orçamentação de Compras e serviços em geral e Obras e serviços de engenharia na Lei 14.133/21

Introdução:

A regulação referente à orçamentação de compras e obras, conforme delineada pelo artigo 23 da Lei 14.133/21, busca estabelecer diretrizes claras para a estimativa de custos em procedimentos licitatórios.

Para compras e serviços em geral, os parâmetros são apresentados sem uma ordem de preferência objetiva, possibilitando a utilização de composições de custos unitários, contratações similares, dados de pesquisas especializadas, consulta direta com fornecedores e consulta à base de notas fiscais eletrônicas de forma combinada ou não, sem uma hierarquia estabelecida entre eles (conforme o §1º do art. 23 da Lei 14.133/21).

Por outro lado, para obras e serviços de engenharia, há uma ordem específica estabelecida para a utilização dos parâmetros na determinação do valor estimado. A legislação determina que a composição de custos unitários do SICRO ou do SINAPI seja o primeiro parâmetro considerado, seguido pela utilização de dados de pesquisas especializadas, contratações similares realizadas pela Administração Pública e, por último, a pesquisa na base nacional de notas fiscais eletrônicas (conforme o §2º do art. 23 da Lei 14.133/21).

Contudo, é comum, na prática administrativa, deparar-se com serviços que se enquadram na categoria de engenharia ou arquitetura, englobando uma ampla variedade de atividades supervisionadas por profissionais habilitados. Esses serviços podem variar desde a manutenção de equipamentos médicos até o desenvolvimento de softwares específicos ou sistemas de vigilância. Entretanto, muitos desses serviços não encontram correspondência nas tabelas oficiais, como a SINAPI, a qual se limita aos índices da construção civil.

Ou seja, para alguns serviços de engenharia, seguir o roteiro estabelecido pela lei pode não ser suficiente para calcular o orçamento estimado da licitação. Isso é especialmente relevante dada a falta de flexibilidade no roteiro direcionado às obras e serviços de engenharia, que não permite a opção de cotação com fornecedores, mesmo em último caso. Surge então a questão: caso não haja nenhuma referência disponível seguindo esse roteiro, qual seria a alternativa?

A rigidez imposta pela Lei 14.133/21 nas formas de pesquisa de preços para obras e serviços de engenharia não deve ser interpretada como uma impossibilidade absoluta de recorrer a outras fontes de pesquisa, caso os parâmetros legais sejam insuficientes. Este engessamento pode, na verdade, comprometer a eficiência e a celeridade na satisfação das necessidades públicas, violando os princípios de gestão pública eficaz e responsiva.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, especialmente em seu artigo 22, incita uma mudança paradigmática no direito público, promovendo uma interpretação mais consequencialista dos atos administrativos. Este dispositivo preconiza que, na interpretação de normas sobre gestão pública, devem ser considerados os obstáculos e dificuldades reais enfrentados pelo gestor, bem como as exigências das políticas públicas sob sua responsabilidade. Assim, ao avaliar a regularidade de condutas ou a validade de atos administrativos, deve-se levar em conta as circunstâncias práticas que influenciaram as decisões dos agentes públicos.

Esta abordagem permite uma flexibilização necessária, garantindo que a pesquisa de preços em obras e serviços de engenharia seja adaptada à realidade prática, sem prejuízo dos direitos dos administrados, e assegurando uma administração pública mais ágil e eficaz.

Diante deste contexto, é plenamente viável que o gestor público adote medidas alternativas e recorra a outras fontes de pesquisa, visando concretizar os objetivos do artigo 11 da Lei de Licitações, especialmente quando as diretrizes do §2º do artigo 23 da Lei 14.133/21 se mostram insuficientes para a formação de uma estimativa de preço. Essa flexibilização é justificada pelas circunstâncias do caso concreto, permitindo que tais medidas sejam implementadas mesmo na ausência de autorização explícita em regulamento próprio, atendendo assim às exigências práticas e imediatas da administração pública.

É crucial distinguir o orçamento das fontes de cotações de preços a que se refere o artigo 23 da Lei 14.133/21. O orçamento representa o resultado de um trabalho intelectual elaborado por um profissional com conhecimento técnico especializado. Por isso, a planilha de preços de obras e serviços de engenharia deve ser desenvolvida por um profissional habilitado, devidamente registrado no CREA local, em conformidade com os artigos 9º e 42 da Resolução n. 1.137/23 do Confea.

Compete a esse profissional analisar criticamente as cotações de preços mencionadas no artigo 23 e, por meio de cálculos estatísticos e matemáticos, estabelecer o preço estimado da contratação. As fontes de cotação listadas no referido artigo não devem limitar o trabalho do orçamentista na busca de um orçamento alinhado com o preço de mercado.

É essencial compreender que as fontes dispostas no artigo 23 da Lei 14.133/21 são consideradas mais confiáveis por presunção legal, mas não são as únicas disponíveis. Portanto, é permitido ao orçamentista utilizar outras fontes além das especificadas no Lei Geral de Licitações, caso as fontes legalmente preferidas sejam inadequadas.

Ainda sob a égide da legislação anterior, há o precedente do Tribunal de Contas da União, no sentido de que, mediante justificativa do gestor acerca das limitações enfrentadas na obtenção da pesquisa de preços, é possível apresentação de cotações de preços inferior ao normalmente recomendável.[1] E no insucesso da busca de preços de obras e serviços de engenharia, seguindo-se o rol da Lei 14.133/21, Ronny Charles aponta que a cotação direta com fornecedores poderia ser realizada de forma residual.[2]

Para assegurar maior segurança aos agentes públicos e promover celeridade na elaboração dos orçamentos estimativos, evitando questionamentos sobre a legalidade das medidas adotadas, é vantajoso que os regulamentos das entidades já prevejam a possibilidade de recorrer a outras fontes de pesquisa na hipótese de insuficiência do 23, §2 º da Lei 14.133/21.

A discussão, portanto, ainda, levanta a possibilidade de os regulamentos dos entes federados serem ajustados para lidar com essa questão, permitindo o abrandamento da regra geral prevista no art. 23, de forma a ampliar as fontes e métodos de pesquisa de preços para obras e serviços de engenharia.

No contexto das contratações administrativas e licitações, a Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso XXVII, atribui à União a competência exclusiva para editar normas gerais sobre licitações e contratações administrativas. Essas normas gerais visam estabelecer um regime jurídico uniforme em todo o país, conforme destacado por Justen Filho.[3] Esse modelo uniforme objetiva não apenas garantir uma padronização mínima nos processos licitatórios e nas contratações administrativas, mas também assegurar a efetividade do controle por órgãos externos e pela comunidade.

As normas gerais estabelecidas pela União devem ser mais genéricas, fornecendo diretrizes e princípios gerais que serão aplicados pelos legisladores regionais e locais de acordo com suas realidades específicas. Essa abordagem preserva a autonomia dos entes federativos e estabelece critérios mínimos para a defesa do interesse público em todo o território nacional.[4]

No entanto, a definição do conceito de “normas gerais” é amplamente indeterminada. Isso cria uma “zona cinzenta” que requer análise casuística por parte dos tribunais, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, para determinar se uma norma é considerada geral ou específica.

Nesse contexto, o artigo 23 da Lei 14.133/21, que trata da estimativa de preços, pode ser considerado, pelo menos em parte, norma específica, conforme reconhecido pelo próprio legislador. O legislador reconheceu a natureza específica de parte da densidade normativa do artigo 23 ao permitir que seja regulamentada por estados e municípios. Isso é evidenciado no primeiro e segundo parágrafos do artigo, que estabelecem que o orçamento deve ser feito conforme a lei e também de acordo com regulamentos específicos.

Além disso, o terceiro parágrafo permite que, nas contratações realizadas por entes federativos que não envolvam recursos da União, o valor estimado da contratação possa ser definido por outros sistemas de custos adotados pelo respectivo ente federativo.

Contudo, embora os entes federativos disponham de certa margem de competência regulamentar para conduzir pesquisas de preços dentro de seu âmbito, não parece que o ordenamento jurídico permita um desvirtuamento completo que desconsidere as diretrizes gerais estabelecidas pela Lei 14.133/21.

Para a formação do preço estimado relativo às aquisições e serviços em geral, embora a lei não estabeleça uma ordem de preferência para a utilização das fontes, é recomendável adotar uma cesta variada de fontes de pesquisa de preços, conforme entendimento reiterado pelo Tribunal de Contas da União. [5] Isso implica na combinação máxima possível dos critérios previstos no parágrafo primeiro do artigo 23 da Lei 14.133/21. Em contrapartida, para a orçamentação de obras e serviços de engenharia, deve-se respeitar a sequência de parâmetros com uma clara preferência pela utilização de tabelas oficiais de custos.

O regulamento do ente federativo não pode contrariar a definição geral dessa ordem de parâmetros para obras e serviços de engenharia, pois há uma presunção legal de que eles foram ordenados em grau de grandeza, partindo do parâmetro que melhor reflete o preço de mercado.

Dessa forma, a estipulação por regulamento de algum ente federado de preferência pela cotação com fornecedores para a orçamentação de obras e serviços de engenharia pode ser considerada uma violação à regra geral estabelecida pela Lei 14.133/21.

Por outro lado, entende-se compatível com o nosso ordenamento jurídico a previsão pelos regulamentos da utilização de roteiros similares ao de compras e serviços em geral, adaptados para atender às particularidades dos serviços de engenharia nas situações em que esses fossem insuficientes. Essa solução poderia ser adotada pelos regulamentos, de forma a viabilizar uma adequada pesquisa de mercado nas obras e serviços de engenharia, na busca por seu preço estimado e melhor reflexo do mercado.

Portanto, é admissível que os regulamentos dos entes federados estabeleçam outras fontes de pesquisa ou mesmo a utilização subsidiária dos parâmetros para aquisições e serviços gerais previstos no art. 23, §1º, da Lei 14.133/21, quando as fontes dispostas no art. 23, §2º, da mesma lei, que tratam da orçamentação de obras e serviços de engenharia, se mostrarem insuficientes.

Tal caminho foi adotado pelo regulamento do Município de Novo Hamburgo/RS, por meio do Decreto Municipal n. 10.652/2023, que incluiu, além das fontes dispostas no art. 23, §2º da Lei 14.133/21, como um dos últimos parâmetros, a pesquisa direta com, no mínimo, 03 (três) fornecedores, não excedente a 06 (seis) meses de antecedência da data de divulgação do Edital, semelhante à orçamentação de compras e serviços em geral. [6]

No âmbito da União, a Instrução Normativa SEGES n. 65, de 7 de julho de 2021, que regulamenta a pesquisa de preços de compras e serviços em geral, em seu artigo 6º, §1º permite o uso de outros critérios ou métodos, desde que justificados pelo gestor responsável e aprovados pela autoridade competente. Ressalta-se que a regra supramencionada não se aplica a obras e serviços de engenharia, mas serve de reforço argumentativo acerca da possibilidade de inovação regulamentar acerca dos roteiros de fonte de pesquisa que dispõe o art. 23 da Lei 14.133/21.

Em face das limitações da separação estrita entre roteiros de orçamentação para compras e obras, torna-se evidente a necessidade de uma abordagem regulatória mais flexível e adaptável. Ao examinarmos os dispositivos do artigo 23 da Lei 14.133/21, constatamos que existe margem para regulação, sem violar os princípios legais estabelecidos. Propomos, portanto, que os regulamentos prevejam a flexibilização dessa separação, permitindo que parte do roteiro de orçamento seja considerada norma especial e sujeita à regulação pelos entes envolvidos. Essa abordagem não apenas asseguraria uma maior adaptabilidade às necessidades específicas de cada projeto, mas também garantiria uma orçamentação mais precisa e eficiente, especialmente para serviços de engenharia que não se encontram em tabelas oficiais. Ao dispor da possibilidade de utilizar um sistema de orçamentação mais preciso a necessidade da administração estaríamos promovendo uma maior racionalização de recursos e transparência nos processos de contratação pública, em consonância com os princípios da legalidade, da economicidade e da eficiência administrativa.

*Artigo publicado originalmente no Conjur, em 1/06/2024


[1]TCU, Acórdão n.2.203/2005 – 1ª Câmara: “1.2. observe os princípios de orientam o procedimento licitatório (art. 3º da Lei n.º 8.666/93), em especial ao princípio da isonomia entre os licitantes, ainda que se trate de simples cotação de preços junto a fornecedores a qual deve ser a mais ampla possível, porém dentro das limitações de mercado existentes para determinados objetos, cuja existência deve ser justificada;” – grifamos

[2] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis e Licitações Públicas Comentadas, 13. ed.rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022. p. 181.

[3] JUSTEN FILHO, M. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 15-17.

[4] MELLO, C. A. B. O conceito de normas gerais no direito constitucional brasileiro. Revista Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 13, n. 66, mar./abr. 2011. Disponível em: < https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2014/07/O%C3%82-conceito%C3%82-de%C3%82-normas%C3%82-gerais%C3%82-.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2023.

[5] Acórdãos do Plenário do TCU: 2170/2007, Relator Ministro Ubiratan Aguiar, 17/10/2007; 2637/2015, Relator Bruno Dantas, 21/10/2015; 1875/2021, Relator Ministro Raimundo Carreiro, sessão em 04/08/2021.

[6] Decreto Municipal 10.652/2021 do Município de Novo Hamburgo/RS, que regulamenta no seu âmbito a Lei Federal n. 14.133/2021: “Art. 30. No processo licitatório e nas contratações diretas, para contratação de obras e serviços de engenharia, o valor estimado, acrescido do percentual de Benefícios e Despesas Indiretas (BDI) de referência e dos Encargos Sociais (ES) cabíveis, será definido por meio da utilização de parâmetros na seguinte ordem: (…) V – pesquisa direta com, no mínimo, 03 (três) fornecedores, mediante solicitação formal de cotação, desde que seja apresentada justificativa da escolha desses fornecedores e que não tenham sido obtidos os orçamentos com mais de 06 (seis) meses de antecedência da data de divulgação do Edital; VI – pesquisa na base de notas de serviços dos cadastros da municipalidade.”

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