No último dia 10/09, o Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória (MPV) nº 850/2018, a qual autoriza o referido Poder a instituir a Agência Brasileira de Museus – Abram, Serviço Social Autônomo (SSA), na forma de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos. Como consequência, extingue o Instituto Brasileiro de Museus – Ibram, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira, e vinculada ao Ministério da Cultura (MinC).
Como grande novidade, a referida MPV determina que os recursos provenientes de contribuições sociais sejam considerados receitas da Abram, ao lado de dotações orçamentárias, doações e outras receitas, nos termos do disposto no § 4º do art. 8º da Lei nº 8.009, de 12 de abril de 1990 (Lei que dispõe sobre a extinção e dissolução de entidades da administração Pública Federal, e dá outras providências).
De modo a viabilizar a nova fonte de receita, o art. 23 da MPV n.º 850/2018 modifica os §§ 3º e 4º do já citado art. 8º da Lei nº 8.029/90, para alterar a proporção destinada ao Sebrae, de 85,75% para 79,75% do adicional às alíquotas das contribuições sociais destinadas ao SENAI, SENAC, SESI, SESC, passando a diferença de 6% a ser destinada à Abram e mantendo-se os percentuais destinados à Apex-Brasil e ABDI.
Na sequência, o art. 26 da referida MPV determina que o Sebrae deve remanejar, transpor ou transferir para a Abram as dotações orçamentárias aprovadas no seu orçamento referentes ao exercício financeiro no qual a Abram venha a ser instituída.
No mais, há menção, como nos intitulados SSA da nova geração[1], quanto à supervisão ministerial, prestação de contas junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) e elaboração de contrato de gestão, o qual inclusive inseriu o pseudo argumento que sensibiliza a caracterização da eventual urgência e relevância, uma vez que firma o compromisso de instituir fundo patrimonial privado com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas, com o objetivo de reconstruir e modernizar o Museu Nacional.
Assim como já mencionado em artigo publicado por este mesmo autor, utiliza-se do discurso retórico do orçamento e disponibilidade financeira, para tentar tirar da “cartola” uma solução simplesmente mágica, chamada Serviço Social Autônomo.
Tal solução realmente parece ser cômoda, rápida e eficaz, pois se utilizando da prerrogativa Estatal de exação fiscal, por meio de ato normativo de índole precária, simplesmente se autoriza a “geração” de uma pessoa (jurídica) completamente dependente financeiramente de outra, que diante de sua pujança financeira arcará com sua total assistência. Contudo, sem precisar fazer teste de DNA posterior, verifica-se que a aproximação só existirá no nome dado (Serviço Social Autônomo). Na realidade, trata-se mais de um homônimo do que outra coisa. Nada mais.
No caso da Abram, há uma evidente transfiguração do que vem a ser um Serviço Social Autônomo[2], acompanhada de um mutilamento institucional, diante da verdadeira tredestinação[3] do recurso, haja vista a flagrante impertinência temática.
Sinal da assertiva acima é o massivo repúdio público retratado na enquete gerada pela própria Câmara dos Deputados[4], no que tange ao apoio à referida proposição (MPV n.º 850/2018), onde 97% não apoia a referida medida, bem como na justificação de algumas emendas parlamentares ao referido ato normativo.
Outra demonstração da aversão ao novo SSA é retratada pelo próprio Sebrae em sua exímia peça inicial (MS n.º 35981-DF)[5], onde após traçar breve e consistente histórico sobre a contribuição de intervenção no domínio econômico – CIDE, chega a conclusão de que os objetivos fixados na MPV n.º 850/2018, para a Abram, estão muito distantes daqueles trazidos no art. 170 da CF, o que, por si só, faz com que o ato do executivo atraia vício de inconstitucionalidade, em razão da criação de uma CIDE sem nenhuma vinculação com os preceitos da ordem econômica insculpidos no art. 170 da CF.
Mais uma vez, percebe-se nitidamente a esquiva do Estado em enfrentar um problema mais complexo do que aparenta ser, o que definitivamente, não é bom. Não é, porque já revelamos que o tema de fundo propulsor da MPV n.º 850/2018 (má gestão pública e orçamentária) é umproblema público, que traz consigocaracterísticas relevantes como: Afetação abrangente (muitos ou todos) e Não excludabilidade (impossível um ou outro se desafetar do problema).
Contudo, alguns problemas públicos são ainda classificados como complexos, ao ponto de nos provocar a seguinte reflexão: “Existiriam então problemas insolúveis?” É o que a doutrina estrangeira chama de wicked problems, ou seja, problemas “intratáveis”[6]. Esse tipo de problema é complexo, justamente porque carrega as seguintes características:
- Imprevisível, instável, dinâmico;
- Múltiplas variáveis e determinantes com causações circulares;
- Totalidade, transversalidade, conexões, integrações;
- Múltiplos atores, interesses, pressões;
- Requer atuações (soluções, resoluções e dissoluções) complexas: multi-institucionais, sem fronteiras políticas, em rede, coordenação, integração etc.
Coincidência ou não, dúvida não há que o imbróglio do Museu Nacional possui plena aderência à tais características. Mas, como tentar combater esses tais wicked problems? Para sermos efetivos nessa demanda, sugere-se que sigamos 3 passos básicos: Entender, estruturar e solucionar (dissolver/ resolver). Vejamos:
O grande entrave para exercermos esses 3 passos fundamentais é a pressa em buscar a solução, sempre considerando que haverá respostas prontas, mirabolantes, a serem executadas em breve espaço de tempo, e o pior, sem a articulação/conversa com todos ou a grande maioria dos atores do processo.
Para nós, em uma sociedade ora apolítica, ora extremamente polarizada, como a brasileira, não há visão de governo com a sensibilidade humanitária em se respeitar uma “transitividade” (terminologia da economia) de propostas, pois não se pensa em rede, não se pensa em resolução de problemas de forma transgovernamental, que deve ser revisitada frequentemente à luz dos novos conhecimentos.
Em face do exposto, para tentar minimizar os efeitos dos wicked problems há de dar tempo ao tempo. Tempo para escutar e melhor compreender os tais problemas, para depois tentar melhor estruturar o problema (seja de forma linear ou em rede – o ideal) e aí sim pensar, ciclicamente e continuamente, em soluções que irão ser até pontuais, mas que em certa medida, quando consistentes, assim como já comentado anteriormente, conseguem frear ou eventualmente dissolver ou solucionar parte do problema[7], mas nunca ele por completo, pois é natural do ambiente de sociabilidade, a geração natural de problemas.
Infelizmente, as inúmeras intervenções sistêmicas, em especial as políticas, ignoram esse tempo, desqualificam praticamente tudo o que se fez até então, quebrando qualquer possibilidade de transitividade e esmaecendo toda a sociedade. Uma lástima!!!
Toda essa manobra governamental por meio da MPV nº 850/2018 só nos faz lembrar da paradigmática frase de Henry Louis Mencken: “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante (rápida) e completamente errada”. Que possamos aprender a ter a paciência necessária para tratar de problemas públicos complexos, sob pena de não conseguirmos promover a evolução social desejada.