A era digital prometeu controle. Dashboards em tempo real, KPIs piscando em telas de plasma, a ilusão de que o negócio inteiro cabia em um painel. No meu artigo anterior, argumentei que essa obsessão pelo mensurável nos torna cegos para o que realmente importa. É uma anestesia da complexidade.
Agora, essa ilusão ganha um novo e poderoso motor: a Inteligência Artificial. E com ela, um risco de magnitude muito superior.
Em uma de minhas áreas de atuação, a incorporação imobiliária, aprendemos uma lição primal: o fracasso de uma estrutura quase nunca está na sua fachada, mas em sua fundação. Ninguém inicia uma obra de vulto – ou não deveria iniciar – sem um laudo de sondagem do solo. Ignorar o que está abaixo da superfície não é um risco; é uma certeza de desastre.
No entanto, no mundo corporativo, vejo líderes autorizando a “construção” de estratégias de IA sem conduzir o equivalente a essa análise fundamental. Eles se encantam com o potencial do algoritmo, mas se esquecem de sondar o terreno sobre o qual ele será erguido: seus próprios dados.
Isso nos leva a um conceito que deveria ser a pedra angular de qualquer iniciativa de inovação: a sondagem estratégica de dados. Não é uma tarefa de TI. É uma disciplina de gestão de risco.
O erro fundamental não é tecnológico. É epistemológico: como “sabemos” o que nossos dados realmente representam?
Empresas alimentam modelos preditivos com bases de dados que são, na verdade, arquivos arqueológicos de seus próprios vieses, processos ineficientes e decisões passadas. A IA, com sua capacidade assombrosa de encontrar padrões, não aprende a verdade. Ela aprende a história oficial. O resultado é um sistema que não inova, mas replica a mediocridade pregressa com velocidade e escala industriais.
Um modelo de precificação imobiliária treinado com dados que ignoram o impacto de futuras obras de infraestrutura ou a mudança na percepção de segurança de um bairro não prevê o VGV – Valor Geral de Vendas. Ele simplesmente perpetua uma avaliação obsoleta. Não é um bug de software. É um passivo estratégico sendo capitalizado em tempo real.
A solução, portanto, não está em algoritmos mais complexos, mas em uma governança mais rigorosa.
- A Qualidade como Propósito: Thomas C. Redman, em “Data Driven” (2008), insiste que dados devem ser tratados como um produto, com um critério essencial de “adequação ao propósito” (fit for purpose). Se o propósito é tomar decisões estratégicas de alto risco, os dados não podem ser meramente “limpos”; eles precisam ser validados contra a realidade do negócio, um princípio fundamental de frameworks como o DAMA-DMBOK.
- A Auditoria dos Vieses: Os vieses cognitivos, mapeados por Daniel Kahneman em “Rápido e Devagar” (2011), não são apenas falhas humanas. Eles se fossilizam em nossos sistemas. A sondagem estratégica de dados é, em essência, uma auditoria desses vieses cristalizados. É a pergunta que antecede a análise: “quais regras não escritas, quais preconceitos e quais atalhos mentais do passado estão escondidos nesta planilha?”.
Do Laudo à Decisão
- Em uma incorporação: Antes de usar IA para otimizar a compra de materiais, a sondagem questionaria: nossos dados históricos de preços refletem a volatilidade de fornecedores em cenários de crise cambial ou apenas em períodos de estabilidade? A ausência dessa variável invalida qualquer previsão.
- Em uma licitação pública: Um algoritmo pode otimizar o lance para a vitória com base em dados passados. Mas a sondagem estratégica perguntaria: os dados capturam a nuance política de um novo governo, que pode alterar os critérios de avaliação de forma imprevisível? A IA pode vencer a batalha da planilha e perder a guerra do contrato.
A Inteligência Artificial é, de fato, uma alavanca de poder monumental. Mas toda alavanca exige um ponto de apoio sólido. Sem uma fundação de dados cuja integridade foi metodicamente verificada, a força dessa alavanca se volta contra a própria estrutura, gerando rachaduras onde se esperava crescimento.
O verdadeiro ROI de uma iniciativa de IA não é medido no dashboard de resultados. Ele é definido na sala de sondagem, na coragem de questionar a qualidade do terreno antes de desenhar o projeto.
A pergunta fundamental para qualquer líder, portanto, não é “qual o retorno que a IA pode nos trazer?”.
É “qual a integridade da fundação sobre a qual estamos apostando o futuro da empresa?“.
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O conteúdo deste artigo reflete a posição do autor e não, necessariamente, a do Grupo JML.