Devem ser designados servidores com capacidade específica para atuação de cada fase do processo de contratação
Por Edcarlos Alves Lima[1]
Gestão por competências no setor público
No direito administrativo, competência é, em síntese, a aptidão, atribuída expressamente em lei, para que o agente público possa praticar determinado ato administrativo. Em outras palavras, a competência é prevista e delimitada na lei, não sendo, portanto, competente quem deseja o ser, mas sim aquele a quem a lei atribui o conjunto de atribuições necessários à prática de determinado ato.[2]
Não é dessa competência, todavia, que iremos tratar no presente arrazoado. Em apertada síntese, a competência, objeto deste breve estudo, é aquela inerente ao conjunto de conhecimentos (saber o que e por que fazer), habilidades (saber como fazer) e atitudes (querer fazer) que um determinado indivíduo deve possuir para o seu desempenho profissional e estratégico dentro da organização a que pertence.[3]
Destarte, sendo a competência uma forma de agregar valor econômico à organização e valor social ao indivíduo, o seu mapeamento se revela uma atividade extremamente necessária para que seja traçado um plano estratégico com vistas à execução de atividades de forma eficiente e racional.
Aliás, a definição da competência para o exercício de cada função dentro da organização possibilita a correta e eficiente alocação dos recursos humanos, método este muito utilizado em organizações privadas e que não só pode, como deve ser observado no âmbito da Administração Pública.
Embora seja desafiadora, a adoção de um modelo de gestão por competências dentro do setor público deve ser buscada para o alcance da eficiência e efetividade na prestação dos serviços públicos, sobretudo no atual contexto das tecnologias disruptivas, que tornam mais rápidas a evolução das necessidades da sociedade brasileira e influenciam a implementação das políticas públicas.[4]
No setor público, a gestão por competências pode, por exemplo, possibilitar que a organização de um concurso público seja mais assertiva, assim como tornar mais eficazes e adequados os processos de lotação e de movimentação de pessoal dentro de órgãos da Administração Pública, sempre com a finalidade de racionalizar e tornar mais eficiente a sua atuação em prol da sociedade.
Neste contexto, é importante destacar que se encontra em trâmite – já aprovado na Câmara dos Deputados e atualmente no Senado Federal -, o Projeto de Lei n.º 2.258/2022 (substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL n.º 252-A, de 2003, do Senado Federal), que, ao dispor sobre as normas gerais relativas aos concursos públicos, traz expressamente requisitos voltados à gestão por competências.[5]
Nova lei de licitações e a gestão por competências
Sem adentrarmos às discussões em torno de se saber se a Lei n.º 14.133/2021, nova lei de licitações e contratos administrativos, é, em sua integralidade, norma geral ou se alguns de seus aspectos se destinam exclusivamente à administração pública federal, sendo, portanto, quanto a tais pontos específicos, apenas norma federal, fato é que o novo diploma incorporou boas práticas relevantes ao sistema de contratações públicas nacionais.
Dentre outras tantas novidades abarcadas pelo novel diploma, pode-se destacar o comando dirigido à alta direção do órgão ou entidade da Administração Pública no sentido promoverem a gestão por competências no âmbito das funções essenciais à execução da lei.
A nosso sentir, são essenciais à completa aplicação das disposições legais, as funções de planejamento da contratação, condução da licitação ou dos procedimentos auxiliares, sejam eles feitos por agente ou comissão de contratação, gestão e fiscalização do contrato, assessoramento jurídico e técnico, assim como de controle interno.
Quis o legislador, a par do repertório de jurisprudência dos Tribunais de Contas, notadamente do TCU, especializar a atuação de agentes públicos[6] que forem designados para a execução das diversas funções no escopo do sistema de contratações públicas, desde o planejamento até o final da execução da avença celebrada pela Administração Pública.
Neste contexto, e de acordo com o que foi expressamente previsto no art. 7º da Lei n.º 14.133/2021, alguns requisitos foram traçados pelo legislador para a correta designação de agentes públicos, que devem: i) preferencialmente, pertencer aos quadros permanentes (titulares de cargos ou empregos públicos); ii) exercer atribuições relacionadas a licitações e contratos ou possuir formação compatível ou, ainda, qualificação atestada, por certificação, através de escola de governo; e iii) não possuírem vínculos com licitantes ou contratados habituais da Administração.
Além disso, no § 1º do art. 7º da lei, e de modo a concretizar um dos primados instituídos pelo art. 5º, a designação de agentes públicos deve observar a segregação de funções, sendo vedada a atuação simultânea do agente em funções mais suscetíveis a riscos.
Cita-se, como exemplo da necessária observância ao vetor acima explicitado, a vedação, como regra, de designação do responsável pelo assessoramento jurídico para atuação na fase de planejamento, de condução da licitação ou de gestão e fiscalização. Isto porque, caberá ao órgão de assessoramento a função de exercer o controle de juridicidade e de legalidade, tanto da fase preparatória da licitação ou das demais contratações (caput e § 4º do art. 53) quanto externa (parágrafo único do art. 168).
A matéria de licitações e contratos é complexa e a atuação em seu âmbito, antes mesmo da vigência da Lei n.º 14.133/2021, sempre exigiu conhecimentos técnicos peculiares, sejam em relação à própria necessidade em si, para que, a partir dela, pudesse ser realizado o devido planejamento e contratar a solução adequada e eficiência para satisfazê-la, seja para a condução do certame ou realização da gestão e fiscalização do contrato dele resultante.
No entanto, a designação de agentes públicos para atuação nos processos de contratações públicas, notadamente em pequenos municípios brasileiros, não observa, como regra, a necessária aptidão técnica para o exercício de tal mister, seja em decorrência da precarização seja da inexistência de mão de obra em quantidade suficiente para a gestão adequada dos recursos humanos.
Fato é que não há mais espaço, no contexto da nova lei de licitações, para que o gestor público deixe de promover a eficiente gestão por competência dos recursos humanos do órgão que dirige, podendo, inclusive, haver a sua responsabilização por omissão ou até mesmo culpa na eleição de servidor sem a aptidão para o exercício das atribuições que lhe forem acometidas.
Designação de agentes públicos e a culpa in eligendo
A designação de agentes públicos para o exercício das funções previstas na nova lei de licitações traz consigo o conjunto de responsabilidades inerentes à prática de atos (planejar, conduzir, julgar, fiscalizar etc.) em nome do órgão ou entidade da Administração Pública.
Desse modo, a atuação do agente público com comprovada violação aos seus deveres e responsabilidades funcionais pode ser submetida a severas reprimendas nas searas administrativa, cível e penal, a depender do caso concreto.
A responsabilidade individual do agente público que praticou o ato em desconformidade ou ao arrepio da lei não exclui, necessariamente, a da autoridade máxima do órgão que o designou para o exercício de atividades, desde que essa designação tenha se dado em clara inobservância das regras engendradas na nova lei de licitações e contratos.
É necessária, portanto, que sejam observadas as regras inerentes à gestão por competências, cujas diretrizes se encontram traçadas pelo art. 7º da Lei n.º 14.133/2021, sob pena de o administrador público ser chamado à responsabilização por culpa in eligendo, ou seja, pela má escolha (escolha inadequada) daqueles que contribuíram à prática do ato.
A gestão por competências permitirá a atuação adequada dos agentes públicos na aplicação das disposições da nova lei, gerando maior eficiência e efetividade nas compras governamentais, além de isentar a possível responsabilidade da autoridade máxima em decorrência da falta de cautela na escolha do designado.
Neste cenário, a capacitação e aperfeiçoamento dos agentes públicos é medida de extrema relevância e que deve ser fomentada, incentivada e garantida pela autoridade máxima do órgão ou entidade da Administração Pública.
[1] Mestre em direito político e econômico e especialista em direito tributário, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor de direito das Faculdades Integradas Rio Branco (campus Cotia) e advogado-chefe da Consultoria Jurídica em Licitações e Contratos da Advocacia Geral do Município de Cotia.
[2] Nesse sentido, DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2014 p. 246; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo. 43. ed., atualizada até EC 99/2017. São Paulo: Malheiros, 2018 p. 180; NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 11. ed. Barueri [SP]: Atlas, 2022 p. 158.
[3] A competência, segundo Maria Tereza Leme Fleury e Afonso Fleury, pode ser compreendida como “um saber agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar, transferir conhecimentos, recursos e habilidades, que agreguem valor econômico à organização e valor social ao indivíduo”. FLEURY, Maria Tereza Leme; FLEURY, Afonso. Construindo o conceito de competência. Revista de Administração Contemporânea [online]. 2001, v. 5, n. SPE, pp. 183-196. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rac/a/C5TyphygpYbyWmdqKJCTMkN/#. Acesso em 10 dez.2022.
[4] A gestão por competências não é novidade no estudo da administração pública brasileira. Analisando aspectos gerais sobre o tema, Tomas de Aquino Guimarães expressou a necessidade de se “transformar estruturas burocráticas, hierarquizadas e que tendem a um processo de insulamento em organizações flexíveis e empreendedoras. Esse processo de racionalização organizacional implica a adoção, pelas organizações públicas, de padrões de gestão desenvolvidos para o ambiente das empresas privadas, com as adequações necessárias à natureza do setor público”. Ou seja, segundo o autor, torna-se necessário romper “com os modelos tradicionais de administrar os recursos públicos e a introdução de uma nova cultura de gestão”. GUIMARÃES, Tomás de Aquino. A nova administração pública e a abordagem da competência. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 3, p. 125-140, maio/jun. 2000. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6284/4875. Acesso em: 10 dez.2022.
[5] No art. 2º, do Projeto, está destacado que um dos objetivos do concurso público é a “seleção isonômica de candidatos fundamentalmente por meio da avaliação dos conhecimentos, das habilidades e, nos casos em que couber, das competências necessários ao desempenho com eficiência das atribuições do cargo ou emprego público”. BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n.º 2258, de 2022. Dispõe sobre as normas gerais relativas a concursos públicos. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9192148&ts=1661340167912&disposition=inline. Acesso em: 10 dez.2022.
[6] Segundo definição do art. 6º, inciso V, da Lei n.º 14.133/2021, é todo “indivíduo que, em virtude de eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, exerce mandato, cargo, emprego ou função em pessoa jurídica integrante da Administração Pública”