Não há segurança jurídica para a interpretação que caminha no sentido de corroborar essa prática.
Sob a égide da Lei n.º 8.666/1993, o sistema de registro de preços era tratado apenas em seis parágrafos dispostos no art. 15, conferindo certa margem regulamentar para os entes da federação e abrindo diversas discussões na jurisprudência dos tribunais de contas em torno dos mais variados aspectos que envolvem o tema, a exemplo do prazo de vigência da ata de registro de preços e de seu uso nas hipóteses de serviços de natureza continuada.
Por outro lado, o novo marco geral das licitações e contratos administrativos – Lei n.º 14.133/2021-, além de ter incluído o sistema de registro de preços como um dos procedimentos auxiliares da licitação (art. 78, inciso IV), estabeleceu um regime jurídico legal aplicável ao referido modelo de execução das necessidades da Administração Pública, dedicando uma seção inteira para a sua tratativa (Seção V), composta por cinco artigos (arts. 82 a 86), catorze parágrafos, vinte e cinco incisos e quatro alíneas.
Dentre as atuais discussões na literatura acerca do – por alguns denominado – ‘’novo’’ sistema de registro de preços inaugurado na Lei n.º 14.133/2021, uma delas nos chama a atenção, qual seja, a renovação de quantitativos inicialmente fixados, de forma que, em torno dela, faremos algumas reflexões, sem qualquer pretensão de esgotar ou firmar consenso acerca do tema.
É importante, de proêmio, rememorar que a nova lei encerrou a discussão que pairava em torno do prazo máximo de vigência[1] do documento vinculativo e obrigacional, que possuía – e ainda possui – a gênese de compromisso para eventual e futura contratação pela Administração Pública, tendo previsto, em seu art. 84, de forma clara e expressa, que ele será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que vantajoso.[2]
Não obstante, uma nova discussão é inaugurada na literatura, mas agora não sobre a possibilidade de prorrogação da Ata de Registro de Preços e sim da renovação integral do quantitativo originalmente fixado.
Em termos mais práticos, a questão seria a seguinte: poderia a Administração Pública, diante de uma necessidade que se adeque ao uso do sistema de registro de preços, que foi devidamente planejada e ancorada nos artefatos que a traduzem (DFD, ETP e TR), assim como dimensionado o seu quantitativo para ser consumido no prazo de 12 (doze) meses, renová-lo integralmente juntamente com o prazo de vigência?[3]
Com o devido respeito aos entendimentos que caminham em sentido contrário, entende-se não haver segurança jurídica para se afirmar, de forma categórica, que a nova lei abriria margem para esta interpretação.
A nossa compreensão parte da dicção do próprio art. 84 da Lei n.º 14.133/2021, que preconiza que ‘’O prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso’’.
Aqui, devemos nos recordar de um brocardo jurídico, conhecido de todos nós, segundo o qual quando a lei for clara, em tese, não seria necessário interpretá-la (in claris cessat interpretatio).
O art. 84, que se transcreveu anteriormente, é expresso ao dispor, apenas e tão somente, sobre o prazo de vigência da ata de registro de preços e a possibilidade de sua prorrogação, desde que – a prorrogação de tal prazo de vigência – seja vantajoso à Administração Pública.
Não está contemplada – ainda que por uma interpretação sistemática ou teleológica -, a possibilidade de renovação da totalidade do quantitativo inicialmente fixado pela Administração, sob pena de subverter a lógica do planejamento, que, a um só tempo, é princípio basilar para fiel aplicação da lei (art. 5º) e deve se concretizar por meio de regras nela expostas (e.g., a descrição da necessidade deve se fundamentar em estudo técnico preliminar, que seja compatível com o plano de contratações anual).
Além disso, compreender o tema em sentido contrário vai de encontro aos princípios da competitividade, da isonomia e da economicidade. Explica-se.
Na fase preparatória da licitação, deve a Administração Pública, conhecendo a sua real necessidade, elaborar um estudo técnico preliminar, a fim de motivar adequadamente a escolha da solução “ótima” que seja capaz de satisfazê-la. Desse modo, ao estimar a sua demanda em uma quantidade pré-determinada, cria-se uma expectativa de consumo ao mercado competidor, podendo essa informação atrair ou afastar potenciais licitantes.
Nesta situação, a violação da competitividade poderia ser apontada pelo afugentamento de potenciais competidores que não se interessem em participar daquela determinada licitação, o que pode estar justificado em razão do quantitativo inicialmente fixado.
A possibilidade de renovação de quantidades geraria, além da quebra da expectativa inicial divulgada ao mercado, um monopólio – ainda que de modo temporário – em benefício da empresa detentora dos preços registrados, o que poderia configurar quebra da isonomia, princípio constitucional e legal a ser assegurado a todos que desejem contratualizar com a Administração Pública.
Não se pode esquecer que as atas de registro de preços carregam consigo valores vultosos, por envolverem aquisições de itens de primeiras necessidades – a exemplo de medicamentos e insumos hospitalares, uniformes e materiais escolares, dentre outros –, reforçando, assim, o argumento em torno da violação ao primado da isonomia.
Ademais, não é raro que empresas, ao se tornarem beneficiárias de registro de preços, impulsionam um verdadeiro mercado paralelo de venda de atas de registro de preços a entes da federação, o que pode ser agravado pela atual possibilidade legal da figura nefasta do “carona” (órgão ou entidade que não participa dos procedimentos prévios da licitação e não integra a ata por ela gerada).
Já a economicidade poderia ser infringida pelo fato de a Administração Pública ter perdido economia de escala. Por exemplo, imagine-se que a Administração declare, em seu edital, que pretende adquirir 100 unidades de um determinado produto que atenderá a sua necessidade por 12 meses. Toda a fase preparatória da licitação, o que inclui a pesquisa de mercado para formação do referencial da licitação – que, por sua vez, balizará a aceitabilidade da proposta de melhor preço ofertada –, será baseada em tal quantitativo, de forma que a sua renovação posterior afetaria os ganhos de escala, que poderiam ser obtidos caso os levantamentos tivessem sido feitos com o quantitativo de 200 unidades.
Por todas as razões explicitadas nas linhas anteriores, entende-se que a Lei n.º 14.133/2021 não ampara a conclusão de que, ao se decidir, motivadamente, pela prorrogação do prazo de vigência da ata de registro de preços, possa a Administração Pública renovar totalmente os quantitativos inicialmente previstos.
E qual seria a vantagem, então, de ter o legislador possibilitado – e não tornado obrigatória – a prorrogação do prazo de vigência da ata de registro de preços?
Tendo em vista que uma das possibilidades de uso adequado do sistema de registro de preços seria na hipótese de a Administração Pública não ter a correta dimensão quantitativa de sua necessidade, entende-se que poderia ser vantajoso, por exemplo, prorrogar o prazo de vigência da ata de registro de preços para o consumo de saldo ainda existente.
De igual forma, diante das situações inéditas abarcadas pelo § 3º do art. 82, em que se possibilitou o registro de preços com referência limitada a unidades de contratação, sem a indicação do quantitativo total a ser adquirido, parece-nos haver justificativas para que a Administração Pública, antes do termo final da ata de registro de preços, decida pela prorrogação de seu prazo de vigência.
Acredita-se, desse modo, que a prorrogação de prazo de vigência – e apenas a ele que a lei se refere – seja vantajosa nas situações exemplificadas anteriormente, não existindo segurança jurídica para que a interpretação a ser feita ao art. 84 da Lei n.º 14.133/2021 se estenda à aventada renovação integral das quantidades inicialmente fixadas na fase preparatória da licitação.
[1] No âmbito do Estado de São Paulo, a questão foi sedimentada por meio do verbete da Súmula n.º 34 do Tribunal de Contas, que estabeleceu que o prazo de ‘’validade da ata de registro de preços, incluídas eventuais prorrogações, limita-se ao período máximo de 1 (um) ano’’.
[2] Não é de mais relembrar que a possibilidade de prorrogação da ata de registro de preços, para além do prazo estipulado pela Lei n.º 8.666/1993, já era aplicada no âmbito do Município de São Paulo, desde a edição da Lei Municipal n.º 13.278, de 7 de janeiro de 2002 (vide art. 13).
[3] Essa mesma indagação foi posta em discussão, na forma de enunciado, no XVIII Congresso Brasileiro de Procuradoras e Procuradores Municipais, realizado pela Associação Nacional dos Procuradores Municipais em 2023, mas não obteve consenso entre os membros presentes.