GESTÃO DE RISCOS NA EXECUÇÃO CONTRATUAL: UMA FICÇÃO NORMATIVA?

Jader Esteves da Silva[1]

Jamil Manasfi da Cruz[2]

RESUMO

O presente artigo analisa criticamente a gestão de riscos na fase de execução contratual, destacando o descompasso entre a robustez do arcabouço normativo e a fragilidade de sua aplicação prática. Apesar das exigências previstas na Lei nº 14.133/2021, no Decreto nº 11.246/2022 e em normativos correlatos, observa-se que o gerenciamento de riscos raramente é incorporado ao cotidiano de gestores e fiscais, que muitas vezes desconhecem a existência do mapa de riscos ou não sabem utilizá-lo como ferramenta de apoio à decisão. A partir da experiência prática dos autores, acumulada ao longo de mais de dez anos de atuação direta na fiscalização de contratos administrativos, e da análise de normas, doutrina e jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), o estudo evidencia que a gestão de riscos, quando existente, tende a ser formalista, restrita à fase preparatória e desvinculada da execução. O relatório de riscos, frequentemente, não é atualizado, não possui metodologia padronizada e carece de integração entre planejamento e fiscalização. O trabalho identifica cinco principais entraves à efetivação dessa política: ausência de capacitação específica, falta de clareza sobre o uso do relatório de riscos, desconexão entre planejamento e execução, abstratividade normativa e ausência de responsabilização pelo descumprimento das obrigações de atualização. Em contraponto, propõe medidas para a transformação da gestão de riscos em prática concreta, incluindo a entrega formal do mapa de riscos aos gestores e fiscais, a designação clara de responsáveis, a criação de gatilhos para reavaliação, a participação ativa dos fiscais na revisão da matriz e a capacitação orientada por casos reais. Conclui-se que a gestão de riscos na execução contratual precisa deixar de ser mera formalidade documental e assumir papel central na governança pública, funcionando como ferramenta dinâmica de prevenção, mitigação e aprendizado institucional. Risco ignorado é risco assumido — e o interesse público não pode depender do improviso.

Palavras-chave: Gestão de riscos; Execução contratual; Fiscalização de contratos administrativos; Governança pública; Lei nº 14.133/2021.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a retórica da “governança pública” consolidou-se como símbolo de um Estado mais eficiente, transparente e orientado a resultados. Entre suas promessas centrais, a adoção de práticas sistemáticas de gestão de riscos ganhou destaque, inclusive com status normativo explícito nas legislações mais recentes sobre contratações públicas. A Lei nº 14.133/2021 (LLC), por exemplo, menciona o risco em diferentes dispositivos, impondo sua análise tanto na fase de planejamento quanto durante a execução contratual.[3][4][5] O Decreto nº 11.246/2022 reforça essa orientação, obrigando o gestor e os fiscais a manterem atualizado o relatório de riscos como parte de suas atribuições.[6] A Portaria SEGES/ME nº 8.678/2021 vai além: exige diretrizes formais, controles proporcionais e adoção de medidas preventivas contínuas.[7]

Na teoria, portanto, o risco está em todo lugar. Mas na prática da execução contratual, ele quase nunca está em lugar algum. A gestão de riscos é indispensável em todo ambiente organizacional, pelo fato de o risco incidir nos resultados dos processos, sendo sua mitigação um aspecto fundamental para garantir o atingimento dos objetivos estratégicos[8].

O que se observa é que o gerenciamento de riscos se resume à produção de um mapa formalista, muitas vezes elaborado de forma padronizada, subjetiva ou genérica na fase de planejamento da contratação — e abandonado imediatamente após a homologação do certame. Durante a execução contratual, poucos fiscais sabem da existência do documento. Menos ainda conseguem relacionar suas rotinas de fiscalização à lógica da mitigação ou da contingência de riscos. A verdade desconfortável é que, embora normas e manuais falem em primeira linha de defesa[9], apetite institucional de risco e tratamento de eventos críticos[10], o cotidiano da execução contratual segue prisioneiro de uma lógica procedimentalista, em que o risco é apenas mais um termo da moda — e não uma ferramenta viva de gestão.

Essa desconexão não é acidental. Ela decorre de um modelo institucional ainda orientado pelo formalismo e pela cultura do cumprimento mínimo de obrigações.[11] Gestores e fiscais são, muitas vezes, designados sem formação adequada, sem acesso aos instrumentos gerenciais elaborados na fase preparatória e, principalmente, sem clareza sobre como atuar diante de eventos não previstos.[12] Assim, os riscos tornam-se invisíveis — não porque não existam, mas porque ninguém os está observando.

Este artigo parte dessa realidade para problematizar a eficácia normativa do gerenciamento de riscos na fase de execução dos contratos administrativos. A proposta é simples, mas incômoda: será que estamos praticando o que prometemos na lei? Com base em normas vigentes, documentos oficiais e experiências extraídas da prática, investigaremos como a gestão de riscos é (ou não é) tratada durante a execução contratual, quais os principais gargalos institucionais e como avançar para um modelo mais integrado, inteligente e preventivo de fiscalização. Afinal, se o risco existe, ignorá-lo é uma escolha — e nem sempre a mais responsável.

Por uma questão metodológica, é necessário esclarecer que a presente análise não se apoia em dados empíricos sistematizados ou estatisticamente tratados. As percepções aqui expostas decorrem da experiência prática acumulada pelos autores ao longo de mais de uma década de atuação direta na gestão e fiscalização de contratos administrativos, tanto em contextos operacionais quanto em atividades de assessoramento jurídico e normativo. Trata-se, portanto, de um recorte interpretativo e crítico, sustentado na vivência profissional e no diálogo com a legislação, a doutrina e a jurisprudência aplicáveis.

Delimitou-se, ainda, que o estudo estará restrito à Administração Pública direta, autárquica e fundacional, com ênfase — mas não exclusividade — nos normativos e instrumentos infralegais federais, na jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) e na doutrina posterior à promulgação da Lei nº 14.133/2021. Essa delimitação justifica-se por três razões principais:


i) a Lei de Licitações e Contratos, ao estabelecer normas gerais e específicas, é considerada, simultaneamente, lei nacional e lei federal, o que facilita sua interpretação e aplicação no âmbito da União[13];

ii) em observância ao princípio federativo, Estados, Distrito Federal e Municípios possuem competência para regulamentar a matéria, o que gera um mosaico normativo que dificultaria a construção de uma base analítica unificada; e

iii) as regulamentações federais tendem a servir como parâmetro de referência para os demais entes, constituindo um eixo normativo central que viabiliza análises mais consistentes[14].

  1. A PROMESSA NORMATIVA: UMA AVALANCHE DE PREVISÕES SOBRE RISCO

Do ponto de vista normativo, o ordenamento jurídico brasileiro fez sua parte. A gestão de riscos não apenas foi incorporada ao vocabulário técnico das contratações públicas como passou a ser exigência legal em múltiplas fases do ciclo contratual, com destaque para sua presença obrigatória durante a execução[15][16]. A atual lei de licitações e Contratos Administrativos é particularmente enfática nesse ponto: ao estabelecer princípios, estruturas e obrigações de governança, insere a gestão de riscos como elemento transversal, com repercussão direta sobre o planejamento, a seleção do fornecedor e a fiscalização do contrato.

O art. 11 da Lei nº 14.133/2021 determina que a alta administração é responsável por implementar estruturas de gestão de riscos e controles internos como parte do processo de governança das contratações. O art. 18, ao tratar da fase preparatória, exige expressamente a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual. Já o art. 169 vai além: afirma que as contratações públicas devem se submeter a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos, com uso preferencial de tecnologias e clara delimitação das linhas de defesa da Administração.

O Decreto nº 11.246/2022, regulamentando a atuação dos gestores e fiscais, aprofunda essa estrutura. Atribui ao gestor do contrato a responsabilidade de coordenar a atualização contínua do relatório de riscos, com apoio dos fiscais técnico, administrativo e setorial. Cada um desses agentes, por sua vez, deve participar ativamente da atualização do documento, conforme previsto nos arts. 21, 22 e 23 do normativo. A lógica do sistema é clara: a gestão de riscos não se encerra com o planejamento da contratação — ela se intensifica na execução.

Além disso, a Portaria SEGES/ME nº 8.678/2021 determina que os órgãos e entidades da Administração estabeleçam diretrizes específicas para o gerenciamento de riscos e o controle preventivo ao longo de todo o metaprocesso de contratação. O Manual Operacional de Gestão e Fiscalização Contratual, publicado em junho de 2025 pelo Governo Federal, reforça essa exigência ao orientar que todas as ocorrências durante a execução contratual sejam registradas para alimentar o gerenciamento de riscos, inclusive com vistas a retroalimentar o planejamento futuro[17].

A Instrução Normativa nº 5/2017, apesar de anterior à atual lei[18], já apontava para essa direção, ao prever o Mapa de Riscos como documento essencial da contratação, sujeito a atualização contínua a cada evento relevante. O próprio art. 26 da IN estabelece que o gerenciamento de riscos é um processo que deve perdurar desde os estudos técnicos preliminares até o encerramento do contrato, sendo atribuição formal dos agentes envolvidos. Mais recentemente, mesmo tratando de contratações emergenciais, a Lei nº 14.981/2024, em seu art. 3º, II, reconhece que o gerenciamento de riscos permanece obrigatório na fase de execução contratual, ainda que dispensado no planejamento.

O que se vê, portanto, é um conjunto normativo robusto, articulado e aparentemente coerente. O risco é tratado como fenômeno multifásico, cuja identificação, avaliação e resposta devem acompanhar todo o processo contratual, sobretudo durante sua execução. A promessa é de um modelo institucional maduro, no qual cada ator envolvido conhece seus papéis na prevenção de falhas e na mitigação de impactos.

Entretanto, como veremos a seguir, essa arquitetura jurídica contrasta com a precariedade da implementação prática. O sistema está montado — mas muitos dos operadores não conhecem seus próprios papéis dentro dele. O que deveria ser um ecossistema funcional de alerta, resposta e aprendizagem ainda funciona como um conjunto de peças desconectadas, quando funciona.

  • A REALIDADE DO GERENCIAMENTO DE RISCOS NA EXECUÇÃO CONTRATUAL.

Apesar do arcabouço normativo consistente, a gestão de riscos na fase de execução contratual ainda é, em grande medida, uma abstração institucional. Na prática, muitos gestores e fiscais sequer tomam conhecimento do mapa, ou matriz de gerenciamento, de riscos elaborado durante o planejamento. Quando tomam, raramente sabem o que fazer com ele. Aquele que deveria ser o instrumento de prevenção e antecipação de problemas torna-se, na melhor das hipóteses, um anexo decorativo — quando não desaparece completamente dos autos do processo.

É comum observar contratos em que o mapa de riscos foi produzida apenas para cumprir a exigência formal da fase preparatória, geralmente por meio de modelos padronizados e genéricos, sem qualquer diálogo com a realidade do objeto contratado. Elaborado por uma equipe distinta da que atuará na execução, esse documento não é compartilhado com os fiscais, não é atualizado e, frequentemente, não é sequer lido[19]. Isso gera um cenário paradoxal: o documento que deveria guiar o olhar estratégico dos agentes durante a execução é ignorado justamente por quem deveria utilizá-lo como bússola. O resultado é o predomínio de uma cultura de reação, e não de prevenção.

Essa desconexão também se manifesta na ausência de rotinas para atualização do relatório de riscos, embora ela seja exigência expressa do Decreto nº 11.246/2022. Os dispositivos legais são claros: o relatório deve ser atualizado com base nos eventos relevantes da execução. Mas o que falta é a estrutura mínima para isso ocorrer. Não há diretrizes metodológicas claras sobre como realizar o gerenciamento de riscos, inclusive a atualização dos instrumentos relacionados.

A situação se agrava com a falta de capacitação específica. Fiscais são designados sem preparo para interpretar cenários de risco, mensurar impactos ou propor medidas de mitigação. Quando capacitados, recebem treinamentos generalistas, com foco em normas e procedimentos, mas sem aprofundamento na lógica decisória baseada em risco. Assim, ainda que tivessem acesso aos documentos, estariam desprovidos dos instrumentos analíticos necessários para utilizá-los de forma estratégica.[20]

O que está em jogo, portanto, não é apenas a ausência de uma prática — é a ausência de uma cultura. A ideia de que a execução contratual deve ser gerida com base em riscos ainda não foi assimilada pela maioria dos órgãos públicos. O foco segue sendo o cumprimento formal dos prazos, a conferência da nota fiscal e o preenchimento dos termos de recebimento provisório e definitivo. Em vez de um olhar prospectivo, a fiscalização pública opera, muitas vezes, como um inventário do que já deu errado — quando já é tarde.

Essa invisibilidade do risco durante a execução contratual desafia frontalmente o modelo teórico de governança que a atual lei de licitações pretende instaurar. Se a primeira linha de defesa não reconhece ou não utiliza os instrumentos de gestão de riscos, toda a arquitetura normativa perde força. A execução contratual passa a operar no escuro, reagindo a cada contratempo como se fosse inesperado — ainda que previsível.

Abaixo, relacionamos quais gargalos práticos identificamos que impedem a efetivação da gestão de riscos na execução contratual, com base nos achados de órgãos de controle e na literatura especializada. Avançaremos da constatação do problema para a identificação de seus nós estruturais.

  • O QUE (AINDA) NÃO FUNCIONA: CINCO NÓS PRÁTICOS

O distanciamento entre o discurso normativo e a prática contratual quanto à gestão de riscos não decorre apenas de inércia operacional. Trata-se de um problema estrutural e multifatorial, que envolve desde falhas de governança até a ausência de instrumentos técnicos mínimos para que a política de riscos se concretize na execução contratual. Abaixo, destacamos cinco dos principais gargalos que persistem e que comprometem a eficácia da gestão de riscos no cotidiano dos contratos administrativos.

a) Ausência de capacitação específica dos gestores e fiscais: Apesar da exigência legal da gestão por competência (art. 7º da Lei nº 14.133/2021), a formação dos agentes públicos ainda não contempla, na maioria dos casos, os fundamentos teóricos e práticos da gestão de riscos. O tema é tratado como acessório nos cursos de capacitação, quando muito, com abordagem centrada em classificação semiquantitativa de impacto e probabilidade. Pouco se fala sobre a utilização real do relatório de riscos como ferramenta de apoio à decisão, nem sobre a integração desse relatório com o ciclo de fiscalização. Na ausência de formação adequada, fiscais e gestores não sabem como atualizar, interpretar ou se valer do documento — e acabam ignorando-o;

b) Falta de clareza sobre o uso do relatório de riscos: A legislação determina que o relatório de riscos seja atualizado continuamente na fase de execução (Decreto nº 11.246/2022, arts. 21 a 23), mas não define com precisão como, quando e com base em quais critérios essa atualização deve ocorrer. Não há padronização quanto ao que constitui um “evento relevante”. Tampouco há diretrizes quanto à reclassificação de riscos, novos registros, critérios de apetite institucional ou responsabilidades específicas por item de risco. O resultado é uma gestão subjetiva, fragmentada e desarticulada, em que cada órgão — quando atua — cria sua própria lógica, o que inviabiliza qualquer análise comparativa ou avaliação de desempenho;

c) Desconexão entre planejamento e execução: O mapa de riscos é produzido por equipes técnicas responsáveis pela fase de planejamento, mas não é necessariamente incorporado ao cotidiano da fiscalização. Na prática, há uma ruptura entre os que elaboram e os que executam. Essa desconexão compromete a retroalimentação do ciclo contratual, pois impede que os aprendizados da execução sejam sistematizados e devolvidos à fase preparatória. A ausência de uma governança horizontal entre planejamento, execução e controle reforça a ideia de que o risco é um “documento de gaveta” — e não um instrumento contínuo de análise;

d) Abstratividade normativa e ausência de metodologia oficial: O discurso jurídico é forte, mas a engenharia metodológica é fraca. As normas falam em “gestão de riscos”, “controles proporcionais”, “eventos relevantes” e “ações de contingência”, mas não oferecem instrumentos objetivos para operacionalizar essas diretrizes. O Manual Operacional de Fiscalização contratual (2025), por exemplo, orienta o uso do mapa de riscos com base nos Cadernos de Logística, mas tais documentos ainda não apresentam um modelo consolidado para a etapa de execução contratual. Enquanto não houver uma metodologia clara, unificada e replicável — com métricas de impacto, formatos de registro e sistemas integrados —, os riscos continuarão sendo tratados com base em intuição, experiência individual e improviso; e

e) Falta de responsabilização pela não atualização dos riscos: Por fim, talvez o mais silencioso dos problemas: ninguém se sente verdadeiramente responsável pelo gerenciamento de riscos na execução contratual. Ainda que a lei preveja a responsabilidade do gestor (art. 21, VII, do Decreto nº 11.246/2022), com apoio dos fiscais, não há, na prática, mecanismos de monitoramento que verifiquem se o relatório foi de fato mantido atualizado, nem consequências concretas para o seu descumprimento. O risco de ignorar os riscos, paradoxalmente, é zero. A ausência de responsabilização retira incentivos para o cumprimento da norma e perpetua a cultura do cumprimento meramente documental.

Esses cinco nós não são insolúveis, mas exigem uma mudança de mentalidade institucional. Enquanto a gestão de riscos for encarada como um item de checklist ou como obrigação cartorial, dificilmente servirá ao seu propósito real: antecipar problemas, apoiar decisões e proteger o interesse público. Adiante, apresentamos sugestões de  caminhos possíveis para romper essa inércia, resgatando o protagonismo da fiscalização e a centralidade do risco como eixo da boa gestão contratual.

  • PARA ONDE AVANÇAR: DO RITUALISMO AO PROTAGONISMO FISCALIZATÓRIO

Se a gestão de riscos na fase de execução contratual tem falhado em se firmar como prática concreta, é preciso reconhecer que não basta repetir a normativa como mantra. O que se impõe é uma inflexão de cultura: da postura ritualística — focada no cumprimento documental — para uma atuação protagonista, estratégica e integrada à lógica da fiscalização contratual. Isso passa por decisões institucionais, ajustes operacionais e também pela revalorização do papel do fiscal.

A seguir, apresentamos algumas proposições para buscar a efetividade da gestão de riscos na execução contratual, a partir da perspectiva da primeira linha de defesa:

  1. Incorporação do mapa de riscos à rotina fiscalizatória: O ponto de partida deve ser a entrega formal e obrigatória do mapa de riscos ao gestor e aos fiscais no ato de designação. Esse documento não pode permanecer no escaninho da área demandante ou perdido nos anexos do Estudo Técnico Preliminar. Ao contrário, precisa estar acessível, compreendido e manuseado como instrumento de trabalho ativo. Essa entrega deve ser acompanhada de um momento de alinhamento técnico entre as equipes de planejamento e de execução — ocasião ideal para esclarecimentos, pactuação de responsabilidades e definição de protocolos de atualização;
  • Designação clara de responsáveis pela atualização dos riscos: Embora a legislação atribua genericamente ao gestor e aos fiscais a tarefa de manter o relatório de riscos atualizado, a ausência de atribuições nominais favorece a inação. Por isso, é recomendável que, na própria portaria de designação dos fiscais, conste de forma expressa quem será o responsável por cada item de risco mapeado — seja pela sua monitoração, seja pela proposição de ações mitigadoras ou contingenciais. O uso de planilhas compartilhadas, dashboards eletrônicos ou checklists vinculados ao cronograma contratual pode ajudar a materializar esse controle;
  • Criação de gatilhos institucionais para reavaliação de riscos: A atualização do mapa de riscos deve ser vinculada a eventos específicos da execução, como: atrasos na entrega, substituição de pessoal, não conformidade recorrente, aplicação de sanções, aditivos contratuais, entre outros. Esses eventos-gatilho precisam estar previamente definidos em ato normativo interno, como parte de um procedimento-padrão de fiscalização, permitindo que a reavaliação não dependa apenas da sensibilidade do fiscal, mas esteja institucionalizada como rotina operacional;
  • Participação ativa dos fiscais na reconfiguração do mapa de riscos: Ao contrário do que se pensa, o mapa de riscos não é documento imutável. Pelo contrário, ela deve ser dinâmica e aberta à reconfiguração. Os fiscais, por estarem na linha de frente, têm a percepção mais acurada sobre os riscos reais da execução e devem ser protagonistas no processo de revisão periódica do mapa, contribuindo com novos registros, reclassificações e propostas de respostas. Essa atuação pode ser formalizada em reuniões trimestrais de gestão do contrato, com lavratura de atas e atualização dos sistemas informatizados; e

e) Formação técnica orientada por casos reais de risco contratual: Mais do que repetir os conceitos de impacto e probabilidade, os treinamentos dos agentes fiscalizadores precisam incorporar a análise de casos reais de risco na execução contratual. A formação deve utilizar exemplos práticos de falhas recorrentes (pagamento por serviços não prestados, interrupções, substituições de pessoal, glosas indevidas, ausência de garantias, entre outros), mostrando como poderiam ser identificadas, classificadas e mitigadas preventivamente. O objetivo é transformar o risco em linguagem funcional da fiscalização, e não apenas em jargão jurídico.

As sugestões apresentadas não são capazes de abordarem todas as problemáticas ligadas ao gerenciamento de riscos durante a execução contratual, mas podem marcar o início de uma reavaliação interna, em cada órgão ou entidade, dos seus protocolos ligados à questão. Adicionalmente, o que se espera com essa exposição é fomentar o debate acerca de uma temática extremamente importante para a Administração Pública, mesmo que seja por meio de posicionamentos contrários aos aqui expostos.

CONCLUSÃO

O que este artigo procurou demonstrar é simples, mas desconfortável: há uma profunda lacuna entre o que a legislação exige e o que efetivamente se pratica quando se trata da gestão de riscos na execução contratual. Apesar da solidez normativa construída pela Lei nº 14.133/2021, e todo o arcabouço normativo decorrente da atual Lei de Licitações e Contratos, o risco continua sendo, em muitos contratos, um conceito ausente do cotidiano dos agentes que mais deveriam dominá-lo: gestores e fiscais.

A realidade mostra que o risco é mapeado no início, mas esquecido durante a execução. O relatório de riscos existe, mas não é entregue. Existe, mas não é lido. Existe, mas não é atualizado. Existe — mas apenas formalmente. Os fiscais, que deveriam ser os olhos da Administração sobre a execução contratual, seguem atuando no escuro, guiados por procedimentos de rotina, sem acesso a um sistema que lhes diga onde estão os pontos de alerta, os sinais de falha ou os gatilhos para intervenção preventiva.

Se a fiscalização contratual continuar sendo tratada como um conjunto de tarefas burocráticas isoladas da lógica de riscos, a governança prometida pela atual legislação será letra morta. A inércia, o medo da responsabilização e a fragmentação institucional continuarão minando os esforços de prevenção. Não haverá real eficiência nem integridade no processo de execução contratual se os riscos forem tratados como meros adornos do planejamento.

Trazer o risco para o centro da gestão contratual exige mudança de mentalidade, definição de responsabilidades claras, capacitação estratégica e vontade política. Não basta normatizar. É preciso implementar. E para implementar, é preciso acreditar que o risco não é o vilão da execução — ele é a chave para protegê-la.

Risco não é formalidade. É ferramenta. E como toda boa ferramenta, só transforma quando é usada com inteligência, propósito e protagonismo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União: Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, 01 abr. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 5 jun. 2025.

BRASIL. Decreto nº 8.678, de 19 de julho de 2021. Diário Oficial da União: Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, nº 135, 20 jul. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/portarias/portaria-seges-me-no-8-678-de-19-de-julho-de-2021. Acesso em: 5 jun. 2025.

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RAMPINI, Gabriel Henrique Silva. Impacto da gestão de riscos nos resultados das organizações. 1. ed. Curitiba: Appris, 2023.

SILVA, Jader Esteves. Gestão e Fiscalização de Contratos Administrativos. Rio de Janeiro: CEEJ, 2025


[1] Doutorando em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em Direito Econômico e desenvolvimento pela Universidade Candido Mendes. Especialista em Direito Público, Direito Administrativo, Direito Constitucional aplicado e Direito Militar. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense e Ciências Navais pela Escola Naval. Professor convidado da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Marinha do Brasil, Escola Mineira de Direito e Faculdade Mar Atlântico. Autor de livros e artigos jurídicos, com destaque para os livros “Gestão e fiscalização de contratos administrativos” e “Inteligência artificial e Direito Administrativo”. Advogado, palestrante e consultor. Redes sociais: @jader.esteves e jader.esteves@gmail.com.

[2] Mestrando em Gestão Pública e Liderança pela Universidad Del Atlántico. Bacharel em Direito e Administração Pública. MBA em Licitações e Contratos. MBA em Gestão Pública. Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Professor e Orientador de TCC dos MBAs em Licitações e Contratos da Faculdade Polis Civitas – PR, Pós-Graduação Faculdade Baiana de Direito, Pós- Graduação Gran Cursos, Pós-Graduação NAVIGARI-MA, Pós-Graduação UNYPÚBLICA e Centro Universitário São Lucas-RO; Autor do Livro “Regulamentação Municipal Lei nº 14.133/21”, artigos e e-books jurídicos sobre licitações, contratos administrativos; Professor Grupo Negócios Públicos – NP, ICOGESP, CAPACCITAR Treinamentos, NOVALICITA Treinamentos, CATE soluções e Treinamentos; Elo Consultoria; Public Thinker Treinamentos e Capacitações; Servidor de carreira da Prefeitura Municipal de Porto Velho – RO; Pregoeiro Oficial do CRA-RO; Palestrante e instrutor na área de licitações e contratos, planejamento das contratações e formação de pregoeiros; Professor convidado da Academia Militar das Agulhas Negras e Escola Corporativa da FIOCRUZ; Membro Especial da Ordem dos Pregoeiros e Agentes de Contratações da Paraíba e Membro da Rede Governança Brasil.

[3] “Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos: […] Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.” BRASIL. Presidência da República. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, 01 abr. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 05 jun. 2025. Grifou-se

[4] Vide, por exemplo, art. 18, X, da LLC.

[5] NIEBUHR, Joel de Menezes (Org.). Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.  Curitiba: Zênite, 2021, p. 42.

[6] Vide art. 21, III e VII; art. 22, VIII; e art. 23, V do Decreto nº 11.246/22.

[7] Art. 16. Compete ao órgão ou entidade, quanto à gestão de riscos e ao controle preventivo do processo de contratação pública: – estabelecer diretrizes para a gestão de riscos e o controle preventivo que contemplem os níveis do metaprocesso de contratações e dos processos específicos de contratação; – realizar a gestão de riscos e o controle preventivo do metaprocesso de contratações e dos processos específicos de contratação, quando couber, conforme as diretrizes de que trata o inciso I; […] § 1º A gestão de riscos e o controle preventivo deverão racionalizar o trabalho administrativo ao longo do processo de contratação, estabelecendo-se controles proporcionais aos riscos e suprimindo-se rotinas puramente formais.” BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 8.678, de 19 de julho de 2021. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, nº 135, 20 jul. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/portarias/portaria-seges-me-no-8-678-de-19-de-julho-de-2021. Acesso em: 05 jun. 2025. Grifou-se

[8] Rampini, Gabriel Henrique Silva. Impacto da gestão de riscos nos resultados das organizações. 1ª edição – Curitiba. Editora Appris, 2023. 161p.

[9] Vide art. 169 da LLC.

[10] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de gestão de riscos / Tribunal de Contas da União. – Brasília : TCU, Secretaria Geral de Controle Externo (Segecex), 2018. 154 p.

[11] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A fiscalização dos contratos administrativos na nova Lei de Licitações: dos carimbos à inteligência artificial. SLC – Solução em Licitações e Contratos, v. 7, p. 83, 2024.

[12] SILVA, Jader Esteves. Gestão e Fiscalização de Contratos Administrativos. Rio de Janeiro: CEEJ, p. 72-90, 2025.

[13] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e Contratos Administrativos: teoria e prática. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 77-79.

[14] Vide art. 187 da LLC.

[15]Quando o assunto é gestão de contratos, os contornos dados à análise de riscos ganham relevância especial. Isso se dá em virtude dos gestores, assim como os fiscais, serem os responsáveis por práticas contínuas e permanentes de gerenciamento de risco durante a execução contratual, sendo parte da primeira linha de defesa da contratação pública, como apresentado no item 3.4 desta obra. A importância é tanta que não pode ser dispensada nem mesmo em estado de calamidade pública, onde não se faz necessária no planejamento e seleção do fornecedor.” SILVA, Jader Esteves. Gestão e Fiscalização de Contratos Administrativos. Rio de Janeiro: CEEJ, p. 135, 2025. Grifou-se

[16] “Art. 3º Na fase preparatória para as aquisições e as contratações de que trata esta Lei: […] II – o gerenciamento de riscos da contratação será exigível somente durante a gestão do contrato;” BRASIL. Presidência da República. Lei nº 14.981, de 20 de setembro de 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14981.htm. Acesso em: 2 ago. 2025. Grifou-se

[17] BRASIL. Manual operacional de gestão e fiscalização contratual. Versão 1.0, jun. 2025, p. 9. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/manuais/manual-governanca-nas-contratacoes/Rev_ManualoperacionalFiscalizao_final.pdf. Acesso em 2 ago. 2025.

[18] Importante registrar que a IN nº 5/2017 continua sendo aplicável, no que couber, por força da IN SEGES/ME nº 98/2022.

[19] “Estando os servidores devidamente qualificados em matéria de licitações e para o desempenho das funções de gestor e fiscal de contratos, podem participar, com qualidade, de todas as etapas do planejamento da contratação, mediante indicação como membro da equipe de planejamento constante no Documento de Formalização da Demanda.83-84 Embora haja entendimentos doutrinários85 e jurisprudenciais86 que tal prática poderia ferir o princípio da segregação de funções, alinho-me em sentido contrário, uma vez que o agente conhecedor da execução é elemento substancial na elaboração dos requisitos técnicos necessários à execução e à mitigação dos riscos envolvidos na contratação pública.87 O Poder Executivo Federal há tempos vem, por meio de seus regulamentos, apontando que a prática de envolver os mesmos agentes no planejamento, preparo e gestão e fiscalização de contratos não é só permitido, como é incentivado.” SILVA, Jader Esteves. Gestão e Fiscalização de Contratos Administrativos. Rio de Janeiro: CEEJ, p. 55-56, 2025. Grifou-se

[20] O gerenciamento de riscos não costuma de ser amplamente abordado nos cursos que tratam de gestão e fiscalização de contratos administrativos. Para exemplificar, sugere-se a visitação aos cursos sobre a temática disponíveis na Escola Virtual de Governo da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP).

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