ACEITABILIDADE DAS PROPOSTAS NA LEI DAS ESTATAIS

Antes de adentrar no tema central deste artigo, cumpre esclarecer que a temática – como não poderia ser diferente – será analisada à luz da Lei nº. 13.303/16, que rege as contratações no âmbito das empresas estatais. Esse esclarecimento se faz necessário em virtude do advento da Lei nº. 14.133/21. Com efeito, em 01 de abril de 2021 foi publicada a Lei nº. 14.133/21 que, nos termos do art. 1º, estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. O parágrafo primeiro deste dispositivo deixa claro que a norma não se aplica às empresas públicas, sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº. 13.303/2016[1][2].

Traçada essa premissa, cumpre discorrer sobre a aceitabilidade das propostas nas contratações instauradas pelas estatais, o que perpassa, necessariamente, pela compreensão de um dos objetivos do certame – seleção da proposta mais vantajosa.

O art. 31, da Lei nº. 13.303/2016, estabelece que “as licitações realizadas e os contratos celebrados por empresas públicas e sociedades de economia mista destinam-se a assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto, e a evitar operações em que se caracterize sobrepreço ou superfaturamento (…)”. 

Já de plano, infere-se que o objetivo da licitação não é selecionar a proposta mais barata, equívoco este que acarretou, por décadas, contratações desastrosas. É preciso romper o paradigma de que o certame visa sempre a solução mais barata. Isso porque o aspecto econômico não é absoluto para a definição de vantajosidade, devendo ser atendidos pelo particular os requisitos mínimos de qualidade, considerando o ciclo de vida do objeto, os custos diretos e indiretos, a partir de valores que sejam exequíveis.

Não há dúvidas, portanto, que a seleção da proposta mais vantajosa está diretamente relacionada à correta descrição do objeto. Portanto, o conceito de proposta mais vantajosa deve ser estabelecido em face de cada caso, com a definição de forma clara, adequada e justificada do objeto pretendido, com as especificações e características necessárias ao atendimento da finalidade visada.

Para garantir a seleção da proposta mais vantajosa é imprescindível a adequada descrição do objeto no termo de referência, ou seja, é a especificação que vai delimitar a relação custo x benefício, os riscos inerentes à contratação, dentre outros.

É imprescindível o planejamento da contratação, para que a área demandante tenha tempo hábil de consultar o mercado, cotejar as soluções existentes e justificar aquela que representa a maior vantajosidade.

A doutrina alude, a exemplo de Jair Eduardo Santana, a melhor preço e não menor, deixando claro que o aspecto econômico é apenas uma das facetas a serem consideradas no julgamento:

“Mas como guiar o certame para o menor melhor preço?

Certamente, a partir da boa especificação/definição do objeto.

Não se pode olvidar, entretanto, da obrigação legal de ter sempre delimitado o objeto em características e processos (de teste, por exemplo) de fácil identificação, de aferição, por meio de técnicas de domínio comum, enfim, dos inafastáveis critérios objetivos de julgamento.

Ou seja, lembremo-nos sempre de que o julgamento das propostas, dirigidas pelo menor melhor preço, é tarefa que demanda a qualificação prévia do objeto. Tal qualificação do objeto é chamada de classificação. É dizer somente se permite que sejam admitidas à disputa aquelas ofertas (propostas) cujos elementos se mostram conforme às exigências (objetivas) do edital.

Noutras palavras, pode-se dizer que – na dinâmica do processamento de um pregão – a verificação de conformidade do objeto antecede à disputa. E, sendo assim, a qualidade, a eficiência, os caracteres intrínsecos e extrínsecos do objeto são alvo de avaliação preliminar. O preço (o menor) é postergado para a disputa.”[3](grifou-se)

Nessa linha é a orientação do Tribunal de Contas da União:

“E o que é a proposta mais vantajosa para a Administração? É aquela que oferece o bem ou serviço requerido na licitação pelo menor preço, sem prejuízo da qualidade do produto ou serviço ofertado. Mesmo que a maior vantagem oferecida à Administração não seja, necessariamente, o menor preço, um preço menor representará, inexoravelmente, uma vantagem maior, quando mantidas as demais condições” (grifou-se)

Um dos princípios aplicáveis às licitações é o da competitividade, por isso, na descrição do objeto deve a área demandante indicar características comuns, que sejam usuais no mercado e que possam ser atendidas pela maioria das empresas do segmento. Porém, não se deve esquecer que a licitação visa a seleção da proposta mais vantajosa e, para alcançar tal objetivo, muitas vezes é preciso exigir certas características que poucas empresas atendam. Cumpre lembrar que referido princípio não proíbe restrição, o que visa afastar é exigência restritiva que não seja imprescindível à plena satisfação da necessidade da estatal. Em outras palavras, é possível restringir, desde que sejam apresentadas as devidas justificativas, conforme orienta o TCU: “24. Neste ponto, é importante observar que toda licitação contém, em maior ou menor grau, restrição à ampla participação, eis que a escolha do próprio objeto a ser licitado já delimita o campo dos possíveis participantes do certame.”[4]

Mesmo nas licitações do tipo menor preço é necessário que o termo de referência contemple a descrição precisa do objeto, de modo que o agente responsável pelo julgamento possa avaliar se as ofertas formuladas atendem aos requisitos mínimos de qualidade exigidos.

O fato de o preço ser preponderante para fins de julgamento não significa que a estatal possa deixar de especificar as condições mínimas que o objeto deva conter. Ao contrário, todas as condições mínimas e necessárias para a obtenção de um produto ou serviço de qualidade e que atenda a finalidade devem estar inseridas no termo de referência e as empresas interessadas em concorrer terão que atendê-las, sob pena de exclusão do processo.

Assim, a aceitabilidade do objeto nas licitações processadas pelo critério de preço leva em conta dois fatores: atendimento das especificações do objeto descritas no termo de referência e compatibilidade do preço com a prática de mercado.

A análise da compatibilidade do preço é feita em face do orçamento estimado pela estatal na fase preparatória do certame. A Lei nº. 13.303/16 utiliza o termo estimado para se referir ao parâmetro de preço para aceitabilidade das propostas, conforme ilustram os seguintes dispositivos:

“Art. 34. O valor estimado do contrato a ser celebrado pela empresa pública ou pela sociedade de economia mista será sigiloso, facultando-se à contratante, mediante justificação na fase de preparação prevista no inciso I do art. 51 desta Lei, conferir publicidade ao valor estimado do objeto da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas.    

(…)

§ 3º. A informação relativa ao valor estimado do objeto da licitação, ainda que tenha caráter sigiloso, será disponibilizada a órgãos de controle externo e interno, devendo a empresa pública ou a sociedade de economia mista registrar em documento formal sua disponibilização aos órgãos de controle, sempre que solicitado”.

(…)

Art. 42. (…)

§ 1º As contratações semi-integradas e integradas referidas, respectivamente, nos incisos V e VI do caput deste artigo restringir-se-ão a obras e serviços de engenharia e observarão os seguintes requisitos:

(…)

II – o valor estimado do objeto a ser licitado será calculado com base em valores de mercado, em valores pagos pela administração pública em serviços e obras similares ou em avaliação do custo global da obra, aferido mediante orçamento sintético ou metodologia expedita ou paramétrica;”.

Embora preço estimado não se confunda com preço máximo, pois o primeiro representa mera referência, enquanto o segundo caracteriza o limite máximo, em que pese a Lei se referir a orçamento estimando, dando a entender que seria mera referência para julgamento das propostas, a interpretação dos arts. 56[5] e 57[6], da Lei nº. 13.303/16 leva à outra conclusão, já que os dispositivos deixam claro que proposta acima do estimado deve ser desclassificada quando o licitante não aceita reduzi-la após tentativa de negociação. Assim, fica claro que, no âmbito da lei das estatais, o orçamento estimado representa, na verdade, preço máximo, conforme já decidiu o Tribunal de Contas da União[7]:

“9.4. dar ciência à Codevasf que, em conformidade com o disposto no inciso IV do art. 56 da Lei nº 13.303/2016, o preço estimado é o preço máximo a ser admitido nos certames regidos pela Lei das Estatais, devendo ser desclassificadas as propostas que permanecerem acima do valor estimado após a negociação, nos termos do art. 57, caput e §§ 1º e 2º da mesma lei”.

Em face do exposto, deve ser considerada excessiva proposta acima do estimado, o que ensejará a desclassificação caso o licitante não aceite negociar.

O art. 56 também contempla a desclassificação de propostas manifestamente inexequíveis, assim consideradas, nos termos dos §§ 3º e 4º, do art. 56:

“Art. 56. (…)

§ 3º. Nas licitações de obras e serviços de engenharia, consideram-se inexequíveis as propostas com valores globais inferiores a 70% (setenta por cento) do menor dos seguintes valores:

I – média aritmética dos valores das propostas superiores a 50% (cinquenta por cento) do valor do orçamento estimado pela empresa pública ou sociedade de economia mista; ou

II – valor do orçamento estimado pela empresa pública ou sociedade de economia mista.

§ 4º. Para os demais objetos, para efeito de avaliação da exequibilidade ou de sobrepreço, deverão ser estabelecidos critérios de aceitabilidade de preços que considerem o preço global, os quantitativos e os preços unitários, assim definidos no instrumento convocatório”.

Nesses casos, o § 2º, do art. 56, estabelece que “a empresa pública e a sociedade de economia mista poderão realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, na forma do inciso V do caput”. Em que pese a interpretação literal do dispositivo induzir à conclusão de que a diligência é faculdade, conforme jurisprudência pacífica do TCU, antes de eventual desclassificação, é dever do agente responsável pela condução do certame realizar diligência:

“Boletim de Jurisprudência 422/2022

Acórdão

Acórdão 2189/2022-TCU-Plenário (Representação, Relator Ministro-Substituto Augusto Sherman)

Indexação

Licitação. Pregão. Proposta. Exequibilidade. Preço global. Orçamento estimativo. Inexequibilidade. Diligência. Obrigatoriedade.

Enunciado

Deve ser realizada diligência para que a licitante vencedora do pregão comprove a exequibilidade dos itens com preços consideravelmente inferiores aos estimados pela empresa estatal (art. 56, caput, inciso V e § 2º, da Lei 13.303/2016), ainda que o preço global ofertado esteja acima do patamar legal definido como parâmetro objetivo para a qualificação da proposta como inexequível (art. 56, § 3º, da Lei 13.303/2016)”.

Por fim, infere-se que o § 4º, do art. 56, não estabeleceu percentual de referência para aferir suposta inexequibilidade para objetos que não se enquadrem em engenharia, deixando a cargo do edital definir tal regra. Em julgado proferido com fulcro na Lei nº. 14.133/21, aqui citado a título de referência, o TCU[8] considerou como supostamente inexequíveis propostas inferiores a 50% do orçamento estimado da licitação, exigindo, de qualquer sorte, a realização de diligência para justificar eventual inexequibilidade.

Conclui-se, portanto, que eventual inexequibilidade deve ser comprovada via diligência, oportunizando-se à licitante a apresentação de documentação comprobatória da aceitabilidade da oferta.


[1] Com exceção do art. 178, da Lei 14.133/21, já que tal dispositivo alterou as regras aplicáveis aos crimes e penas que incidem nas contratações públicas, regras estas que incidem no âmbito das estatais por força do art. 41, da Lei 13.303/2016: “Art. 41. Aplicam-se às licitações e contratos regidos por esta Lei as normas de direito penal contidas nos arts. 89 99 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 “. Ou seja, como a Lei 13.303 estabeleceu a aplicabilidade às estatais do capítulo da Lei 8.666 que regia os crimes e as penas e este foi alterado pela Lei 14.133/21, especificamente em relação a essa matéria, as estatais ficarão sujeitas à disciplina do art. 178, da Lei Geral de Licitações que, por seu turno, alocou a matéria no Código Penal.       

[2] Outro reflexo da Lei nº. 14.133/21 às estatais é a adoção do pregão. Isso porque o art. 32, inciso IV, da Lei nº. 13.303/16, estabelece como diretriz a adoção preferencial da modalidade de licitação pregão para aquisição de bens e serviços comuns. Referida modalidade era regida pela Lei nº. 10.520/02, que foi revogada pela Lei 14.133/21. Em suma, em que pese a Lei 14.133/21 não ser aplicável às estatais, é forçoso reconhecer alguns efeitos indiretos dessa norma, como nas matérias de crimes, pregão, etc.

[3] SANTANA, Jair Eduardo. Termo de referência: valor estimado na licitação. 2. ed. Curitiba: Negócios Públicos, 2010. p. 40.

[4] TCU. Acórdão 679/2015. Plenário.

[5] “Art. 56. Efetuado o julgamento dos lances ou propostas, será promovida a verificação de sua efetividade, promovendo-se a desclassificação daqueles que:      

I – contenham vícios insanáveis;

II – descumpram especificações técnicas constantes do instrumento convocatório;

III – apresentem preços manifestamente inexequíveis;

IV – se encontrem acima do orçamento estimado para a contratação de que trata o § 1º do art. 57, ressalvada a hipótese prevista no caput do art. 34 desta Lei;

V – não tenham sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela empresa pública ou pela sociedade de economia mista;

VI – apresentem desconformidade com outras exigências do instrumento convocatório, salvo se for possível a acomodação a seus termos antes da adjudicação do objeto e sem que se prejudique a atribuição de tratamento isonômico entre os licitantes”.

[6] “Art. 57. Confirmada a efetividade do lance ou proposta que obteve a primeira colocação na etapa de julgamento, ou que passe a ocupar essa posição em decorrência da desclassificação de outra que tenha obtido colocação superior, a empresa pública e a sociedade de economia mista deverão negociar condições mais vantajosas com quem o apresentou.     

§ 1º A negociação deverá ser feita com os demais licitantes, segundo a ordem inicialmente estabelecida, quando o preço do primeiro colocado, mesmo após a negociação, permanecer acima do orçamento estimado.

§ 2º (VETADO).

§ 3º Se depois de adotada a providência referida no § 1º deste artigo não for obtido valor igual ou inferior ao orçamento estimado para a contratação, será revogada a licitação”. (grifou-se)

[7] Acórdão nº. 1464/2024 – TCU – Plenário.

[8] “Boletim de Jurisprudência 495/2024

Acórdão

Acórdão 963/2024-TCU-Plenário (Representação, Relator Ministro Benjamin Zymler)

Indexação

Licitação. Proposta. Preço. Inexequibilidade. Presunção relativa. Prestação de serviço. Bens. Fornecimento. Diligência.

Enunciado

No fornecimento de bens ou na prestação de serviços em geral, há indício de inexequibilidade quando as propostas contêm valores inferiores a 50% do valor orçado pela Administração. Nesses casos, deve o agente ou a comissão de contratação realizar diligência, pois a confirmação da inviabilidade da oferta depende da comprovação de que o custo do licitante ultrapassa o valor da proposta e, concomitantemente, de que inexistem custos de oportunidade capazes de justificar o vulto da oferta (art. 34, caput e parágrafo único, da IN Seges/ME 73/2022). O parâmetro objetivo para aferição da inexequibilidade das propostas previsto no art. 59, § 4º, da Lei 14.133/2021 (75% do valor orçado pela Administração) diz respeito apenas a obras e serviços de engenharia”.

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