CRÔNICA DE UMA LICITAÇÃO ANULADA: LIÇÕES DO ACÓRDÃO 1923/2025 DO TCU

1. INTRODUÇÃO

Agentes públicos que atuam na linha de frente das contratações, convivem diariamente com a tensão entre a urgência do interesse público e o rigor dos ritos processuais. Cada edital publicado é uma promessa; cada contrato assinado, a materialização de um esforço coletivo. Mas o que acontece quando a jornada, aparentemente bem-sucedida, desmorona por um detalhe que, à primeira vista, parecia apenas zelo, mas que, sob o escrutínio do controle, revelou-se um vício fatal?

Esta crônica se debruça sobre a história real de uma Concorrência, conduzida por uma Secretaria Estadual de Infraestrutura para a construção de um hospital metropolitano, uma obra estimada em mais de R$ 241 milhões. É a história de como as três propostas mais vantajosas foram sucessivamente eliminadas, levando à contratação da quarta classificada, e de como o Tribunal de Contas da União (TCU), ao analisar o caso no Acórdão nº 1923/2025 – Plenário, não apenas anulou o contrato, mas nos legou um roteiro riquíssimo sobre a aplicação estratégica e inteligente da Lei 14.133/2021.

Ao desvendar, ponto a ponto, os atos que levaram a esse desfecho, não buscamos apenas apontar erros, mas extrair lições valiosas. O objetivo é transformar este caso concreto em uma ferramenta de aprendizado, um espelho para nossas próprias práticas, a fim de que possamos construir editais mais justos, competitivos e, acima de tudo, eficazes na entrega de valor à sociedade que servimos.

2. A ANATOMIA DE UMA CONTRATAÇÃO FRUSTRADA

Para compreender a profundidade das lições contidas no Acórdão 1923/2025, é preciso primeiro reconstituir a cena do certame. A licitação para a construção do Hospital Metropolitano do Rio Grande do Norte atraiu grande competitividade. Ao final da fase de lances, o placar era promissor para a Administração. A classificação das quatro primeiras empresas, por ordem de preço, era a seguinte (BRASIL, 2025):

  1. Empresa 1: R$ 197.489.000,00
  2. Empresa 2.: R$ 197.490.000,00
  3. Empresa 3.: R$ 200.500.000,00
  4. Empresa 4 R$ 200.777.000,00

A disputa acirrada, com valores muito próximos, indicava um ambiente de mercado saudável. Contudo, o que se seguiu na fase de habilitação transformou a promessa de economicidade em uma sucessão de eliminações que culminaram na contratação de uma proposta mais de R$ 3,2 milhões acima da segunda colocada.

O primeiro a cair foi a Empresa 1. Em seguida, a Empresa 2. A terceira colocada, Empresa 3, convocada, sequer apresentou sua documentação de habilitação no prazo. O caminho estava, assim, pavimentado para o quarto colocado.

Essa sequência de eventos acendeu o alerta do controle. Não se tratava de uma eliminação pontual, mas de um padrão que, segundo o denunciante, poderia indicar um direcionamento do certame. Foi nesse cenário que o TCU iniciou sua análise, mergulhando fundo nas justificativas de cada ato administrativo. E é nessa análise que as lições para a Administração Pública começam a emergir.

3. O PRIMEIRO ATO: A QUEDA DO VENCEDOR E A RIGIDEZ DO EDITAL

A inabilitação da primeira colocada, a Empresa 1, girou em torno de um elemento com o qual todos os agentes de contratação, lidam constantemente: a diligência para sanear falhas. A empresa havia apresentado sua documentação de habilitação técnica de forma ilegível. A comissão de licitação, corretamente, instaurou uma diligência para que os documentos fossem reenviados de forma legível. O ponto de discórdia foi o prazo: aproximadamente duas horas.

A licitante não cumpriu o prazo e, de forma intempestiva, alegou que sua interpretação do edital indicava um prazo de 24 horas. A defesa parecia plausível, mas uma análise minuciosa do edital, endossada pelo TCU, revelou o equívoco. Conforme destacou o titular da unidade técnica do Tribunal, o edital continha regramentos distintos para situações distintas:

  • Item 6.4.1: Previa um prazo de até 24 horas, mas especificamente para correções na proposta de preços ou planilhas de custos.
  • Item 9.1.2: Por outro lado, estabelecia o prazo de até duas horas para o envio da documentação de habilitação após a convocação.

A falha da Empresa 1 não era um erro material na planilha de preços, mas sim um vício na apresentação dos documentos que comprovariam sua capacidade de executar o contrato. Portanto, a regra aplicável era a do item 9.1.2. A diligência, nesse contexto, não era um direito absoluto da licitante, mas uma oportunidade saneadora conferida pela Administração, cujo prazo estava claramente definido no “mapa” da licitação: o edital.

O TCU concluiu, assim, pela legalidade e legitimidade do ato de inabilitação do primeiro colocado. A Administração Pública, nesse caso, agiu corretamente ao se ater ao princípio do julgamento objetivo. Flexibilizar o prazo para uma licitante que se manteve inerte, e que só se manifestou após o término do tempo concedido, seria uma quebra inaceitável da isonomia em relação aos demais concorrentes.

A lição, aqui, é sobre a precisão. A Nova Lei de Licitações nos confere uma margem maior para o saneamento de falhas, mas essa flexibilidade não pode ser confundida com arbítrio. As regras e os prazos devem ser claros no edital e, uma vez estabelecidos, devem ser aplicados com isonomia. A diligência é um instrumento para garantir a seleção da melhor proposta, não para socorrer indefinidamente a licitante que falha em cumprir suas obrigações mais básicas.

Para o TCU, a inércia da empresa em cumprir a determinação ou, ao menos, em solicitar a prorrogação do prazo de forma tempestiva, “atraiu para si a responsabilidade exclusiva pelo desfecho” (BRASIL, 2025, p. 14).

4. O PONTO DE VIRADA: A INABILITAÇÃO DO SEGUNDO COLOCADO E A MIOPIA NORMATIVA

Se a primeira inabilitação foi um exercício de rigor editalício, a segunda revelou-se um grave erro de interpretação da lei e do mercado, que acabou por viciar todo o resultado do certame. A empresa 2., segunda colocada e detentora de uma proposta apenas R$ 1.000,00 acima da primeira, foi inabilitada por não atender a uma exigência de qualificação técnica específica: a comprovação de experiência na instalação de, no mínimo, dois elevadores com “seis paradas” cada. A empresa apresentou atestados que comprovavam a instalação de equipamentos com cinco paradas.

A licitante defendeu sua decisão, argumentando que a exigência se justificava pela complexidade de um hospital, onde elevadores são vitais e demandam experiência específica para garantir segurança e funcionalidade. O auditor do TCU, em uma análise inicial, chegou a concordar com a tese da Administração.

Contudo, o titular da unidade técnica e o Ministro-Relator discordaram veementemente, e é na fundamentação dessa divergência que reside a lição mais importante do acórdão. O TCU entendeu que a inabilitação foi irregular, e a exigência, da forma como foi construída, configurou uma restrição indevida e ilegal à competitividade.

O raciocínio do Tribunal desmontou a aparente legalidade do ato, apontando para uma falha profunda na modelagem do edital, uma verdadeira “miopia normativa” que ignorou tanto a realidade do setor da construção quanto as ferramentas que a nova lei oferece para lidar com ela.

4.1 A Realidade do Mercado Versus a Letra Fria do Edital

O Ministro-Relator foi direto ao ponto: “A análise do auditor deixou de enfrentar o argumento central que define o caso: a exigência, da forma como foi posta, ignora a realidade do mercado da construção civil e, ainda, uma permissão expressa na lei” (BRASIL, 2025, p. 14).

Qual é essa realidade? A instalação de elevadores é uma atividade de altíssima especialização, dominada por um pequeno número de fabricantes globais. Não é a construtora civil que, em regra, instala o equipamento, mas sim a empresa especializada que o fabricou ou sua representante credenciada. Exigir que a construtora, cujo core business é a edificação, tivesse em seu próprio acervo técnico um atestado para uma atividade tão específica era, na prática, criar uma barreira artificial.

O edital da licitante cometeu um duplo erro que, combinado, tornou a exigência fatalmente restritiva (BRASIL, 2025):

  1. Vedou a subcontratação dos itens de maior relevância, incluindo os elevadores.
  2. Exigiu que a própria construtora comprovasse a experiência, em vez de permitir que essa capacidade fosse demonstrada por quem de fato a executaria.

Essa combinação “criou uma barreira de qualificação artificial e ilegal” (BRASIL, 2025, p. 15), pois fechou a porta para empresas perfeitamente capazes de gerenciar a construção do hospital e contratar os melhores especialistas do mercado para a instalação dos elevadores. A irregularidade foi agravada por um fato revelado nos autos: a exigência de qualificação para os elevadores sequer constava na primeira versão do edital, tendo sido inserida apenas na republicação, sem uma motivação técnica clara que justificasse sua inclusão tardia.

4.2 A Ferramenta Ignorada: O Art. 67, § 9º, da Lei 14.133/2021

A miopia do edital não foi apenas ignorar o mercado, mas também a própria lei que o regia. O legislador da Lei 14.133/2021, ciente dessas dinâmicas setoriais, criou um mecanismo específico para evitar esse tipo de restrição. Trata-se do Art. 67, § 9º, que o TCU apontou como a chave para a resolução do caso:

“Art. 67. […] § 9º O edital poderá prever, para aspectos técnicos específicos, que a qualificação técnica seja demonstrada por meio de atestados relativos a potencial subcontratado, limitado a 25% (vinte e cinco por cento) do objeto a ser licitado, hipótese em que mais de um licitante poderá apresentar atestado relativo ao mesmo potencial subcontratado.” (BRASIL, 2021)

A finalidade da norma, como ressaltou o Ministro-Relator, é clara: “permitir que a capacidade técnica para executar uma parcela especializada do objeto seja demonstrada por quem efetivamente a executará, no caso, o subcontratado” (BRASIL, 2025, p. 15).

Esta é, talvez, a lição mais estratégica de todo o acórdão. A Lei 14.133/2021 não é apenas um conjunto de vedações e obrigações; é também uma caixa de ferramentas à disposição do agente de contratação. O Art. 67, § 9º, é uma dessas ferramentas, projetada para harmonizar a segurança da qualificação técnica com a necessidade de ampla competição. Ao não a utilizar — e, pior, ao vedar a subcontratação que a viabilizaria —, a entidade não cometeu um mero formalismo excessivo, mas uma ilegalidade que resultou em prejuízo direto ao erário.

5. A DECISÃO DO CONTROLE: ENTRE A ANULAÇÃO E A RAZOABILIDADE

Uma vez constatada a irregularidade grave na inabilitação da segunda colocada, restava ao TCU definir o remédio. A anulação completa do certame, embora uma opção, foi descartada por não ser a solução mais adequada, pois implicaria em atrasos incalculáveis para a construção do hospital e no risco de não se obter novamente os preços competitivos da fase de lances.

A Corte optou, então, por um caminho que prestigia a legalidade, a eficiência e a economicidade: a aplicação do princípio do aproveitamento dos atos processuais válidos. Esse princípio orienta o controle a preservar as etapas do procedimento que não foram contaminadas pela irregularidade, corrigindo-se apenas o ato viciado.

A determinação do TCU foi, portanto, cirúrgica:

  1. Anular o Contrato nº 022/2025-SIN, firmado com o quarto colocado, pois sua validade dependia da inabilitação irregular que o antecedeu.
  2. Anular o ato que inabilitou a segunda colocada. e os atos subsequentes.
  3. Retornar a Concorrência à fase de julgamento de propostas, para que a Administração procedesse a uma reanálise completa da proposta e da habilitação da segunda colocada, desta vez aplicando corretamente o Art. 67, § 9º, da Lei 14.133/2021.

É fundamental notar que o retorno de fase não significa uma “segunda chance” para quem já foi regularmente excluído. O TCU fez questão de assentar que a inabilitação da primeira colocada, por ter sido considerada regular, permanecia um ato jurídico perfeito e inalterado.

Por fim, o Tribunal ainda expediu uma importante ciência à entidade: para fins de fiscalização, a execução de uma obra se inicia com a prática de qualquer ato material no local (demolição, terraplanagem, etc.), independentemente da data de emissão da ordem de serviço. Um recado claro contra a dissociação entre a execução fática e a formal, que pode ser usada para contornar decisões do controle.

6. CONCLUSÃO

A crônica da Concorrência é um poderoso lembrete de que, no universo das contratações públicas, o diabo e a salvação moram nos detalhes. O Acórdão 1923/2025 do TCU nos mostra que a Lei 14.133/2021, mais do que um novo código de regras, exige dos agentes públicos, uma nova postura: a de gestores estratégicos, que não apenas seguem a norma, mas a interpretam em sintonia com a realidade do mercado e com o objetivo final de selecionar a proposta efetivamente mais vantajosa.

A decisão nos ensina que o rigor na aplicação de prazos é legítimo, mas que a rigidez cega na qualificação técnica pode ser ilegal e danosa ao erário. Mostra que a nova lei nos deu ferramentas flexíveis e inteligentes, como a possibilidade de comprovação de capacidade por subcontratados, e que nosso dever é conhecê-las e utilizá-las com sabedoria.

Que a história desta licitação anulada não seja vista como um caso de fracasso, mas como uma bússola. Que ela nos guie na construção de editais que sejam, ao mesmo tempo, rigorosos e razoáveis, competitivos e seguros. Pois nosso papel não se resume a conduzir processos, mas a viabilizar, com eficiência e legalidade, a entrega de obras e serviços que transformam a vida dos cidadãos. E essa missão, como nos lembra o TCU, começa na inteligência com que redigimos cada cláusula do edital.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 19 set. 2025.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1923/2025 – Plenário. Processo TC 009.048/2025-1. Denúncia. Relator: Ministro Bruno Dantas. Sessão de 20 de agosto de 2025. Brasília, DF: TCU, 2025.

O conteúdo deste artigo reflete a posição do autor e não, necessariamente, a do Grupo JML.

Roberta Luanda Ambrósio

Publicações recentes

A Decisão TCEMG e a discussão sobre os limites às alterações consensuais nos contratos administrativos

Por:

Por Gabriela Pércio Advogada e Consultora em Licitações e ContratosMestre em Gestão de Políticas PúblicasVice-Presidente do Instituto Nacional da Contratação […]

3 de setembro de 2025

Crescente Papel das Licitações Sustentáveis na Administração Pública

Por:

Introdução A busca por um modelo de desenvolvimento que concilie crescimento econômico, equidade social e proteção ambiental tem transformado a […]

29 de agosto de 2025

Discricionariedade no Sistema S: O Paradoxo entre a Natureza Privada e a Gestão Pública, o Papel da Governança e Integridade.

Por:

Resumo O Sistema S, composto por entidades como SESI, SENAI, SESC e SENAC, desempenha um papel crucial no desenvolvimento social […]

22 de agosto de 2025