É POSSÍVEL QUE AS ESTATAIS ALTEREM SEUS REGULAMENTOS A FIM DE INSERIR DISPOSITIVO ORIUNDO DA LEI 14.133/2021?

Com a edição da Lei nº 13.303/2016 as empresas estatais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios passaram a contar com um regime jurídico de licitações e contratos próprio e específico[1], afastando o “regime tradicional de licitações, direcionado para a Administração Pública em geral, baseado na Lei n. 8.666/1993, na Lei n. 10.520/2002 (modalidade pregão) e na Lei n. 12.462/2012 (Regime Diferenciado de Contratações – RDC)”[2] e, agora, também na Lei nº 14.133/2021. E, sobre o tema, bem esclarece a doutrina:

A Lei nº 13.303/16, denominada de Lei de Responsabilidade das Estatais – LRE ou Lei das Estatais, foi editada com o propósito de regulamentar a norma constitucional prevista no artigo 173, §1º, que determina que ‘a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores’.

Neste prisma, regulamentou diversos aspectos relacionados às empresas públicas e sociedades de economia mista no âmbito da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Vale dizer, toda empresa estatal passa a se submeter ao regime implantado pela Lei nº 13.303/16.[3] (grifou-se)

“Tal como determina o § 1º do art. 1º, a Lei 14.133/2021 não é aplicável a licitações e contratações promovidas por sociedades estatais sujeitas ao regime da Lei 13.303/2016.

Existe dois regimes jurídicos básicos para licitações e contratações, comutativas pela Administração Pública. Há o regime de direito público, disciplinado pela Lei 14.133/2021, e há o regime de direito privado, previsto na Lei 13.303/2016.

A duplicidade de regimes jurídicos reflete a inviabilidade de submeter as sociedades estatais empresárias o mesmo regime de licitação e contratação previsto para as entidades administrativas dotadas de personalidade jurídica de direito público.”[4]

Salvo quando a própria Lei nº 13.303 se reporta às demais leis gerais de licitações (a exemplo do que faz no art. 32, IV, quando determina a adoção preferencial do pregão nos termos da Lei nº 10.520/2002 ou no art. 55, III, que autoriza a utilização dos critérios de desempate previstos no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666), como regra, as estatais não podem inovar na matéria de licitações através de seus regulamentos próprios, utilizando-se de outras leis que não lhes são aplicáveis, apenas com o intuito de suprir eventuais lacunas ou omissões da Lei das Estatais. A doutrina, aliás, sequer cogita a aplicação subsidiária às estatais das normas que regem as licitações e contratos da Administração Federal direta, autárquica e fundacional:

“Questão relevante diz respeito à aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93 em caso de lacuna ou omissão da Lei nº 13.303/16, que assim não determina expressamente. Diante da omissão da Lei das Estatais, é de se sustentar que não há aplicação subsidiária à Lei nº 8.666/93”.[5]

Marçal Justen Filho, ao tratar da Nova Lei de Licitações, defende que apenas algumas regras da Lei nº 14.133/2021 poderiam ser aplicáveis às estatais, visto que não refletem o regime de direito público. Nas palavras do autor:

“De modo geral, a ausência de aplicação da Lei 14.133 às sociedades estatais decorre do pressuposto de que as suas regras são dotadas de rigidez incompatível com a atividade empresarial. O regime jurídico das sociedades estatais é menos severo e formalístico do que o adotado para as entidades administrativas com personalidade de direito público. As regras sobre procedimento licitatório e regime contratual, quando vinculadas à natureza pública da entidade administrativa, não incidem sobre as sociedades estatais.

Mas há normas da Lei 14.133 que não refletem o regime de direito público e que, por decorrência, são aplicáveis às sociedades estatais. Entre elas, encontram-se aquelas dos arts. 147 e 148, que dispõem sobre a disciplina da nulidade na licitação e na contratação. Esses dispositivos afastaram a solução tradicional do direito público brasileiro e adotaram um modelo muito mais flexível, vinculado às circunstâncias concretas da realidade. Suas regras são norteadas a assegurar a eficiência da atuação das entidades administrativas com personalidade de direito público.

Ora, a exploração empresarial inerente à atividade desenvolvida pelas sociedades estatais exige flexibilidade, exatamente para promover a eficiência.

Seria um paradoxo adotar para as sociedades estatais regime mais rígido e formalista do que o das entidades administrativas de direito público. Isso conduziria à invalidação automática de ato nulo envolvendo licitação e contratação de sociedade estatal, contrariamente ao que se passa quanto à atividade administrativa de direito público. Essa orientação teria como único fundamento a redação do art. 1°, § 1°, da Lei 14.133. Isso é insuficiente. Os demais elementos normativos e métodos hermenêuticos devem ser considerados.

No tema da nulidade, a Lei 13.303 foi superada pela Lei 13.655/2018, que alterou a LINDB e previu, inclusive para as sociedades estatais, a preservação de efeitos de atos nulos.

A eficiência é exigência inafastável quanto à atuação administrativa – especialmente em relação às sociedades estatais. Uma regra orientada à eficiência, embora pertinente à atuação da Administração com personalidade de direito público, também é aplicável às sociedades estatais. Orientação diversa viola a proporcionalidade.”[6]

Assim é que as contratações e as licitações realizadas pelas estatais devem observar as disposições contempladas na referida norma, bem como os termos de seus Regulamentos próprios, elaborados em atenção ao comando contido no art. 40 da Lei 13.303/2016:

“Art. 40. As empresas públicas e as sociedades de economia mista deverão publicar e manter atualizado regulamento interno de licitações e contratos, compatível com o disposto nesta Lei, especialmente quanto a:

I – glossário de expressões técnicas;

II – cadastro de fornecedores;

III – minutas-padrão de editais e contratos;

IV – procedimentos de licitação e contratação direta;

V – tramitação de recursos;

VI – formalização de contratos;

VII – gestão e fiscalização de contratos;

VIII – aplicação de penalidades;

IX – recebimento do objeto do contrato.”

Mas, ao realizar essa regulamentação da Lei, as estatais devem ter muita cautela para – ao trazer dispositivos de outras legislações – não acabar modificando o regime dado pela Lei nº 13.303/2016, o qual, como se sabe, veio para flexibilizar as regras mais rígidas de direito público, que não eram compatíveis com a atuação empresarial dessas entidades. Nessa linha é que a lei trouxe normas a fim de atenuar (e suprimir em alguns casos) as cláusulas exorbitantes, tornando as relações das estatais com os particulares mais equânimes, mais próximas do regime do direito privado, portanto.

 

 


[1] “Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos.”

[2] NIEBUHR, Joel de Menezes. Aspectos Destacados do Novo Regime de Licitações e Contratações das Estatais. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/joel-de-menezes-niebuhr/aspectos-destacados-do-novo-regime-de-licitacoes-e-contratacoes-das-estatais>.

[3] GUIMARÃES , Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Leis das estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei nº 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 15.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas: lei 14.133/2021, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 42.

[5] GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das estatais….

[6] Fonte: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/nova-lei-de-licitacoes-aplica-se-as-estatais-ao-menos-em-parte-28122021#:~:text=Publicistas-,Nova%20Lei%20de%20Licita%C3%A7%C3%B5es%20aplica%2Dse%20%C3%A0s,(ao%20menos%2C%20em%20parte)&text=A%20Lei%2014.133%2F2021%20estabelece,estatais%20disciplinadas%20pela%20Lei%2013.303.>

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