Por Luiz Cláudio de Azevedo Chaves* e Keila Pinheiro Pinto**
A Gestão de Risco e o seu Papel Primordial para a Governança: do patrimonialismo à administração gerencial
A Administração Pública no Brasil, tem origem, na sua forma de condução, no modelo patrimonialista, no qual, conforme explica Gustavo Justino de Oliveira[1], “o Estado aparece como uma extensão do poder do soberano, não havendo distinção entre a res publica e a res principis”. Em outro dizer, nesse modelo, o que é público (da coletividade) se confunde com o que é do governante (privado). Prossegue o autor, aduzindo que:
“O Patrimonialismo é uma herança da era feudal, vigentes nas sociedades pré-democráticas. De acordo com esse modelo, a administração pública deve atender os interesses do governante, que faz uso do poder que emana do povo em seu favor.”
Explicamos no texto inaugural que o surgimento da ideia de governança, controles internos e gestão de riscos surge no momento em que as organizações deixam de ser geridas pelos donos (Princiapal), e passam a ser tocadas por terceiros a quem aqueles delegam poder de gerência (Agente). No setor público, Principal é a sociedade, enquanto Agente são os governantes eleitos.
No modelo patrimonialista de gestão pública, o Estado serve mais ao governante (Agente) do que à sociedade (Princiapal), ou seja, o governante gerencia o Estado a favor de seus interesses particulares, não relevando os interesses da sociedade. O Estado é um aparelho privado, servindo a pequenas minorias. Os traços mais marcantes desse modus de administrar é a corrupção e o nepotismo.
Tal modelo perdurou até o advento do Estado Liberal, Este se propunha romper com o modelo anterior, com o discurso de separação dos interesses pessoais do detentor do poder e o aparelhamento do Estado para garantir a satisfação do interesse público. Tem como objetivo defender a sociedade contra o poder arbitrário do soberano e é baseado na impessoalidade, no profissionalismo e na racionalidade[2].
Aparece como uma verdadeira antítese ao modelo patrimonialista, carreando para a máquina administrativa um conjunto de medidas cujo objetivo é a impessoalização da condução da coisa pública. São enfatizados aspectos formais nas repartições públicas, o controle do processo decisório. Cria-se também uma rígida escala de hierarquia funcional, baseada em princípios de profissionalização e formalismo. É o momento em que começa a ser perceptível, ainda que de forma tímida e incipiente, a profissionalização do funcionário burocrático, que exerce o cargo técnico em razão de sua competência, comprovada por processo de seleção em contraposição À cultura do nepotismo. Sob esse manto, houve, na década de 1930, sob o governo Getúlio Vargas, a criação das primeiras carreiras para funcionários públicos e a realização dos primeiros concursos públicos.
A idéia central era de uma Administração Pública obediente à lei, em sentido formal, com poucos espaços discricionários e exercida prementemente com base elevados padrões de conduta moral, com ações visando a redução da corrupção e a valorização da forma republicana de se gerenciar o Estado.[3] Todavia, Na Administração burocrática, inicialmente não havia controle finalístico ou de resultados, pois o foco era tornar a Administração Pública, como dito, impessoal. Na prática, o modelo burocrático não garantia a eficiência e a eficácia da gestão, pelo excesso de rigidez, que tende a embaraçar as necessárias adaptações a situações concretas novas, cuja fonte de casuísmos é infinita.
Esses objetivos somente apareceram com o surgimento da Administração gerencial. O ponto de partida para esse terceiro modelo de Administração Pública foi a Emenda Constitucional n.º 19, que inseriu, no rol de princípios afetos à Administração Pública disposto no caput do art. 37 da Carta Política de 1988, o dever da eficiência.
É claro que nenhum modelo de gestão, seja público ou privado, rompe totalmente com o anterior, pois, em verdade, um sistema se revela aperfeiçoamento do anterior. E por aperfeiçoamento deve-se entender que é necessário manter aquilo que é útil, acrescendo pontos de melhoria, descartando o que é inútil e pernicioso. Assim ocorreu no caso do Brasil.
O texto constitucional de 1988, tal qual promulgado em sua redação original, apresenta disposições que remontam traços do modelo burocrático, tais como o controle entre os poderes (art. 2º; art. 49, V; art. 52, I; art. 52, III)[4], a criação dos Tribunais de Contas (art. 70) e especificando o duplo controle (externo e interno), estabelecendo princípios que regem a atuação administrativa (art. 37), entre outras normas. No texto original da Constituição, o princípio da legalidade ainda é tratado como no modelo burocrático, com interpretação restritiva, impondo amarras ao agente público, considerando que este somente poderia atuar nos limites da previsão legal (legalidade estrita).
É a EC 19 que promove a transformação do modelo de Estado Social para o Estado Regulador, passando a Administração Pública a se ocupar de funções gerenciais, de gestão do patrimônio e das tarefas do Estado. O princípio da legalidade estrita dá lugar ao princípio da juridicidade, no qual o agente não está preso à letra fria da lei, devendo agir na conformidade do direito, de modo a alcançar o verdadeiro desiderato a ser perseguido: o atendimento ao interesse público. Segundo leciona Maria João Estorninho[5]:
“No Estado social, o princípio da legalidade passa a ser mais abrangente, incluindo a noção do princípio da juridicidade da administração, entendido como a subordinação ao direito como um todo, implicando submissão a princípios gerais de direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições de caráter regulamentar, a atos constitutivos de direitos, etc.”)
Passa-se do controle de procedimentos, para enfatizar o controle de resultado a ser obtido pela administração, com o cumprimento de metas e emprego eficaz do dinheiro público. Em síntese, a Administração Pública gerencial busca o alcance de metas com a eficiência necessária. Tudo, graças ao dever de eficiência, eregido a princípio constitucional e, hoje, um dos principais corolários da Administração Pública. Emerson Gabardo[6], assim contextualiza o princípio da eficiência:
“No Brasil, a eficiência tornou-se princípio constitucional expresso a partir da Emenda Constitucional nº 19/98, que alterou a redação do caput do artigo 37. Isso não implica asserir que a reforma introduziu uma novidade no sistema administrativo nacional. O princípio constitucional da eficiência administrativa já se denotava implícito na Carga Magna. Assim sendo, é importante considerar que a natureza da eficiência como norma constitucional não compreenderá a essência neoliberal que permeou os trabalhos reformadores. A eficiência como mero símbolo ou valor ideológico não se confunde com a sua manifestação jurídico-normativa.
Como já dito alhures, nenhum modelo de gestão substitui o anterior por completo. A Administração Pública no Brasil está a caminho, mas ainda longe de atingir, de um modo geral, um nível gerencial efetivamente profissional. Fora alguns órgãos e entidades, a grande massa da Adminsitração Pública não está preparada para esses novos tempos, e se percebe uma condução muito mais aproxima do modelo burocrático do que o contemporâneo gerencial. Falta de preparo e quadros técnicos sem a devida qualificação são alguns dos fatores para esse fenômeno. Some-se a isso, o fato de ainda ser perceptível, aqui e ali, formas de comando calcadas na imposição de hierarquia e autoritarismo.
Os governantes e agentes públicos devem impor visão abrangente do ambiente social, político, jurídico e administrativo em que se insere seu atuar. Os objetivos estratégicos devem estar claros e serem perseguidos em todos os níveis da organização, com controles bem definidos e comunicação tempestiva e de qualidade, como bem orienta o conceito de governança[7]. As ações devem atnder aos normativos próprios (como fazer dentro do enquadramento legal), mas sem se perder do seu objetivo primordial, que é o atendimento do interesse público, sempre com a maior, agilidade, presteza, qualidade e integridade. Nesse contexto, a administração pública tem sido impulsionada pela sociedade a buscar novas formas de gerir os seus recursos.
Apesar de os primeiros estudos sobre gestão de riscos datarem da década de 1960, foi com a crise fiscal dos anos 1980 que surgiu o marco do novo arranjo econômico e políco internacional. Este evento exigiu o estabelecimento de metas que tornasse o Estado mais eficiênte. O International Federation of Accountants-IFAC foi o principal propulsor de ações que promoveram o surgimento da moderna Administração Pública. Os estudos preliminares-IFAC apresentam três princípios básicos de governança nas organizações públicas: transparência, integridade e prestação de contas.
Com todas essas mudanças que se apresentaram irreversíveis, a Administração Pública, deixou de ser vista como uma “caixa preta”, cujas informações somente eram reveladas nos casos de graves acidentes ou tragédias. Ela está, como nunca, disponível à sociedade, graças, inclusive, ao advento da internet e das novas tecnologias de informação.
Normas mais recentes, tais como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei da Transparência abriram as contas e impuseram um freio na estrema liberdade às ações dos gestores públicos. Elas vieram trazer para os representantes de todos os poderes o verdadeiro conceito da responsabilidade que os mesmos têm de fazer uma boa versação dos rescursos públicos. Não se admite gastar mais do que se arrecada, comprar ou contratar sem estudo prévio e planejamento de todas as etapas da ação, mantendo sempre como foco principal o interesse público.
Para o desenvolvimento do País e a recuperação da confiança dos brasileiros na máquina administrativa estatal, é preciso que haja o resgate da boa imagem do setor público. Tratar com probidade o bem público é obrigação principal de seus representantes. Cada centavo gasto em uma compra ou contratação equivocada, direcionada ou desnecessária, representa um centavo a menos nas contas públicasque deveriam ser usados para a aquisição de remédios, melhoria da estrutura do atendimento à saúde, livros, cadernos, merenda escolar, auxílio para os mais necessitados e tantas outras necessidades essenciais da população que anseia por ser vista e bem tratada pelos seus governantes.
Somos hoje um país com muitas necessidades e que possui recursos escassos para atendê-las. Desta forma, exige-se que as ações dos governos federal, estadual distrital e municipal sejam tomadas de forma mais assertiva, tendo em mente que cada “centavo” é, sim, importante e que todos os recursos e ferramentas devem ser lançados com o objetivo de se alcançar sempre os melhores resultados. Dentre os vários métodos e ferramentas hoje disponívies e que vem sendo aos poucos implantadas, está a Gestão de Riscos.
Assegurar que as deliberaçõesda instituição sejam tomadas corretamente, traz segurança para o objetivo institucional e para a tomada de decisão estratégica, como, também, para a entrega eficaz de projetos e programas de trabalho. Essa segurança muda o quadro de incertezas e traz de volta a confiança que devemos ter para com os órgãos que administram a coisa pública e que fazem o nosso País girar e crescer.
O gerenciamento de riscos, se apresentam como a forma mais eficiente de acompanhamento dos atos que buscam o atendimento dos anseios da sociedade, pois trata-se de um método que objetiva maximizar os resultados positivos e minimizar os aspectos negativos, fornecendo informações substanciais para o auxílio da tomada de decisão.
Podemos lançar à reflexão, algumas sábias frases já ditas pelos nossos avós: “É preciso conhecer o terreno em que se pisa”; “Não se põe o carro na frente dos bois”: “Precavido morreu de velho”…e tantas outras. Eles não sabiam, mas já estavam nos ensinando a realizar gestão de riscos.
Quando pensamos em um trabalho ou projeto, temos que refletir sobre o mesmo de forma sistêmica. Temos que abrir vários questionamentos sobre ele: qual seu principal objetivo? O que pode dar errado? Quanto tempo eu tenho para executar? Os recursos de que possuo são suficientes? O que pode impedir-me de fazê-lo? Existe algum gargalo?
Analisar todas as possíveis situações que colocariam em risco um projeto, não se trata de uma atitude pessimista, como alguns poderiam pensar, mas sim, de um comportamento preventivo sobre eventos incertos que podem vir a causar um dano. É, em verdade, uma demonstração do grau do amadurecimento do planejamento das ações. Essa atitude acarreta aperfeiçoamento do processo decisório e viabiliza a tomada de atitudes corretivas, ou, em caso de eventos incertos positivos, aproveitá-los.
Segundo a Estrutura COSO II[8], em sede de eventos incertos que podem impactar um projeto, há os riscos e as oportunidades. Na Estrutura encontramos a seguinte definição:
“Os eventos podem gerar impacto tanto negativo quanto positivo ou ambos. Os que geram impacto negativo representam riscos que podem impedir a criação de valor ou mesmo destruir o valor existente. Os de impacto positivo podem contrabalançar os de impacto negativo ou podem representar oportunidades, que por sua vez representam a possibilidade de um evento ocorrer e influenciar favoravelmente a realização dos objetivos, apoiando a criação ou a preservação de valor. A direção da organização canaliza as oportunidades para seus processos de elaboração de estratégias ou objetivos, formulando planos que visam ao aproveitamento destes.” (grafo acrescido)
Assim, quando se pensa em risco, logo vem à mente que algo pode perecer e que algum prejuízo está a caminho. Mas nem sempre o evento imprevisto, caso ocorra, provoca resultado negativo ou mesmo, quando negativo, chega a inviabilizar totalmente uma ação ou projeto. Haverá casos em que, mesmo afastando os riscos negativos críticos, inaceitáveis, ainda podem sobrar riscos para os quais teremos que ter “apetite” para aceitar. Para esses riscos aceitáveis faz-se o balanço que nos indicará que os benefícios serão superiores aos riscos a ele inerentes e para os quais teremos “apetite” e aceitaremos.
Ainda segundo a Estrutura COSO II, o gerenciamento de riscos corporativos trata de riscos e oportunidades que afetam a criação ou a preservação de valor. Assim vem definido o processo de gerenciamento de riscos:
O gerenciamento de riscos corporativos é um processo conduzido em uma organização pelo conselho de administração, diretoria e demais empregados, aplicado no estabelecimento de estratégias, formuladas para identificar em toda a organização eventos em potencial, capazes de afetá-la, e administrar os riscos de modo a mantê-los compatível com o apetite a risco da organização e possibilitar garantia razoável do cumprimento dos seus objetivos.
A cultura da Administração Pública em geral, é de Gerenciamento de Crises, ou seja, não se pensa em possíveis problemas, e quando eles ocorrem, os Gestores passam a adotar medidas no calor das emoções provocadas pelo problema, que, não raro, são desprovidas de eficácia.
No ambiente de gestão de uma Secretaria de Educação, por exemplo, no caso da compra de merenda escolar, pode-se estimar que exista risco no transporte de alimentos para a zona rural de determinado município? Sim, certamente haverá. A estrada pode estar bloqueada ou o caminhão pode enguiçar. Mas esse risco, se bem mapeado e acompanhado, caso se torne realidade, certamente trará impactos muito menos sensíveis do que o desabastecimento do lanche para os alunos, pois a Administração já teria planejado a resposta adequada.
Em sede de governança pública, no campo operacional, surge com enorme relevo o gerenciamento de risco nas contratações públicas, cediço que é o fato de que as ações governamentais defendem quase que umbilicalmente das obras, compras e serviços contratados.
Uma vez que a origem e a importância da gestão de riscos para a eficiência da Administração Pública estão bem delineadas, passaremos, nos próximos textos, a detalhar o passo a passo sobre o processo de gestão de riscos nas contratações.
*Luiz Claudio Chaves é especialista em Direito Administrativo e professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR e professor convidado da Fundação Getúlio Vargas e da PUC-Rio. Autor das obrasCurso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris e Licitação Pública – Compra e Venda governamental Para Leigos, alta Books. Ministra regularmente, em âmbito nacional, cursos sobre Elaboração de Termos de Referência/Projetos Básico; Gestão e Fiscalização de Contratos e Gestão de Riscos nas Contratações Públicas.
*Keila Pinheiro Pinto é graduada em Gestão Empresaria, especialista em Planejamento e Gestão de Projetos de Políticas Públicas, Profa. da Escola de Nacional de Serviços Urbanos – ENSUR/IBAM e Consultora do Instituto Brasileiro de Administração Municipal. Ministra regularmente, em âmbito nacional, cursos sobre Elaboração de Termos de Referência/Projetos Básico e Gestão de Riscos nas Contratações Públicas