1. Introdução
As entidades do Sistema S definitivamente não estão sob mando da Lei 8.666/1993, quanto mais da nova Lei 14.133/2021 – a versar sobre a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, no âmbito da administração direta, autárquica e fundacional dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Como se sabe, os membros do Serviço Social Autônomo possuem personalidade de direito privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Público, com administração e patrimônio próprios e, embora oficializadas pelo Estado, não integram a Administração Pública direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob o seu amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por serem considerados de interesse específico de determinados beneficiários[1]–[2].
Levando em conta, entretanto, os recursos paraestatais que administram, submetem-se ao dever de prestar contas e seus atos e condutas serão julgados com as balizas dos princípios gerais da administração pública insculpidos no art. 37, caput, da Constituição Federal.
Não obstante os moldes de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência aos quais estão vinculados, levando em conta sua natureza privada – atuando, inclusive, em concorrência com o mercado para desempenho das finalidades para as quais foram criados – o “Sistema S” goza de maior liberdade procedimental para amparar as suas contratações. Possuem regulamento próprio, propositadamente mais lacunoso, viabilizando uma amplitude de atuação com maior discricionariedade de seus agentes.
Eis então que, em 1º de abril de 2021, foi publicada a Lei 14.133/2021. O novo Diploma Geral Licitatório, apesar de seus 194 artigos, trouxe fileiras de novas opções ao administrador público. Inexiste, com a nova lei, um “único caminho” procedimental, mas, literalmente, milhares deles: cinco modalidades licitatórias; sete critérios de julgamento; dois modos de disputa (e suas combinações); sete regimes de execução contratual; orçamento público ou sigiloso; inversão, ou, não de fases entre o julgamento da proposta e da habilitação; cinco procedimentos auxiliares; seguros com cláusula de retomada; dentre outras possíveis escolhas.
Diante das novéis ferramentas e possibilidades, em comparação com os regulamentos em vigor do Serviço Social, sobreveio certo anacronismo: o administrador público da administração direta, autárquica e fundacional conta com mais liberdade e discricionariedade em seu processo licitatório que o próprio gestor do “Sistema S”. Muitos novos e alvissareiros institutos criados não possuem paralelo nos regulamentos próprios.
Auscultam-se, nesse reconhecimento, duas questões: a primeira, por óbvio, acerca da premente necessidade de atualização dos regulamentos de licitações e contratos do Sistema S; a segunda, sobre a estrita legalidade de empregar solução procedimental ou instituto na Nova Lei de Licitações não prevista, mas não vedada, nos respectivos regulamentos.
2. Lógica de interpretação dos regulamentos do Sistema S e a respectiva utilização, por mera liberalidade, de institutos previstos da Lei 14.133/2021
Em sessão do dia 16/3/2022, o Tribunal de Contas da União prolatou o Acórdão 533/2022-Plenário, relatado pelo eminente Min. Antônio Anastasia. A decisão foi tomada a partir de licitação do Banco do Brasil (sociedade de economia mista da União), cujo objeto relacionava-se à tentativa de contratação de serviços advocatícios pelo instituto do credenciamento, com critérios de pontuação na escolha dos respectivos credenciados. Convém, para início de discussão sobrea a lógica hermenêutica interpretativa dos regulamentos do Sistema S, extrair excertos da declaração de voto do insigne Min. Benjamin Zymler sobre o tema, a considerar legal o suo do credenciamento pelo ente estatal, mesmo diante ausência de menção expressa desse instituto na Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais):
30. Como bem destacou o ministro Antonio Anastasia em seu voto, apesar de a Lei 14.133/2021 não se aplicar às sociedades de economia mista, regidas pela Lei 13.303/2006, é razoável admitir que as novas regras de flexibilização e de busca de eficiência dos processos seletivos para contratações públicas possam ser adotadas pelas empresas estatais. (grifou-se)
31. Cabe registrar, porém [sobre a ausência do instituto de credenciamento na Lei das Estatais], que, com base na Lei 13.303/2016, nada impediria que o Banco do Brasil se valesse da faculdade de realizar licitações simultâneas, conforme previsto no art. 46 da norma em comento:
“Art. 46. Mediante justificativa expressa e desde que não implique perda de economia de escala, poderá ser celebrado mais de um contrato para executar serviço de mesma natureza quando o objeto da contratação puder ser executado de forma concorrente e simultânea por mais de um contratado.
[…]35. Com essas considerações, louvo mais uma vez o encaminhamento proposto pelo Ministro Antonio Anastasia, que buscou privilegiar a eficiência dos processos seletivos para contratações públicas, em especial no caso das sociedades de economia mista, que, sujeitas ao regime de mercado concorrencial, exigem, com mais razão, instrumentos mais flexíveis e eficientes de contratação.
Nesse julgado, embute-se tanto o reconhecimento de um regulamento de licitações e contratos mais “aberto” para as empresas estatais – apto a viabilizar a ampla concorrência desses entes da administração indireta no mercado em que atuam –, como ainda, uma correta abertura para a utilização de instituto previsto na Lei Geral de Licitações (não exigível às empresas estatais), quando apto a alavancar melhores resultados para o alcance da maior vantagem.
É lógico admitir que, em diplomas mais abertos, com menos amarras procedimentais e menos vedações, estando os atos de contratação alinhados com os princípios gerais constitucionais e licitatórios, inexiste mácula a ser reparada no exercício dessa – proposital – maior liberdade.
Pois com ainda mais vigor a lógica é aplicável aos regulamentos do Sistema S, porquanto são entes privados! Em um silogismo óbvio: se a administração direta (e mesmo indireta), com muito menos liberdades está autorizada a praticar determinado ato, interroga-se como o Serviço Social – entre de personalidade de direito privado – não estaria.
Extraia-se o Acórdão 1.392/2013-Plenário do TCU, a versar sobre o tema (relator, Min. Raimundo Carreiro):
[…] registro que o TCU tem o entendimento pacificado de que as entidades do Sistema ‘S’, entre elas o Serviço Social do Comércio (Sesc), não estão obrigadas a seguir rigorosamente os termos da Lei nº 8.666/1993. (…) Tais entidades, que não integram a Administração direta e nem a indireta, estão obrigadas ao cumprimento de seus Regulamentos próprios, os quais devem estar pautados nos princípios gerais do processo licitatório e consentâneos ao contido no art. 37, caput, da Constituição Federal (TCU. Acórdãos nºs 1.188/2009, 1.029/2011, 1.695/2011, 2.965/2011 e 526/2013 – Todos do Plenário).(…)
10. Nao obstante o fato de os Serviços Sociais Autônomos não se sujeitarem aos ditames da Lei nº 8.666/1993, devem seus Regulamentos próprios atender aos princípios básicos que regem a Administração Publica, dispostos no art. 37 da Constituição Federal, em especial os da impessoalidade, da moralidade e da igualdade. (grifou-se)
É certo que, reconhecendo-se o maior grau de liberdade, aprofunda-se o dever de prover resultados, como relatado pela Ministra Ana Arraes no Acórdão 1.869/2015-TCU-Plenário:
Parece-me que o STF está a sinalizar para um modelo de maior flexibilidade das instituições que compõem o Sistema S e a exigir não um controle de mero procedimento, mas sim de fiscalização da eficiência institucional das relevantes atividades por ele desenvolvidas. Autoriza-se assim, um maior grau de liberdade nas ações dos serviços sociais autônomos, livrando-os de um engessamento administrativo, e, em contrapartida, enfatiza-se um aprofundamento da avaliação da efetividade dos resultados obtidos. (grifou-se)
Dada essa maior discricionariedade, em um contraponto de “dever de resultado”, poder-se-ia até questionar o excesso de “timidez” inovadora, a contrastar com as reais e mutantes necessidades de quem atua no mundo privado.
Em outra presunção absoluta: se ausente em regulamento do Sistema S previsão ou vedação normativa, existe liberdade de os administradores dessas entidades de agirem, desde que comprovando o alinhamento de seus atos aos valores primordiais constitucionais. Ora, mas se determinado instituto está previsto na Lei 14.133/21, é claro que está ungido desses princípios. Logo, faz-se permissiva a sua utilização – ampla – pelo Serviço Social Autônomo, mesmo que não previsto em seus diplomas próprios.
Veja-se – que esteja claro: não se está a defender a utilização subsidiária da Lei Geral de Licitações aos regulamentos do Sistema S. De modo algum. Defende-se, sim, que, por mera liberalidade, possa-se empregar ferramenta ou instituto previsto na Lei 14.133/2021 de forma discricionária, caso vantajoso ao Serviço Social para o desempenho de suas finalidades legais, e nas situações em que o respectivo regulamento for silente.
Tal constatação não alivia a paradoxal constatação de que, em termos de procedimento, os regulamentos do Sistema S, apesar de intencionalmente mais enxutos, apresentam-se (agora) tímidos, com relação a diversas novidades – prefere-se nominar como “oportunidades” – apresentadas da Nova Lei Geral de Licitações: Contratação integrada e semi-integrada, fornecimento e prestação de serviço associado, inversão de fases, diálogo competitivo, procedimento de manifestação de interesse, credenciamento, pré-qualificação, contratos de eficiência, seguros com cláusula de retomada, remuneração variável, contratações simultâneas, orçamento sigiloso; modos de disputa abertos, fechados e mistos; só para citar algumas.
Nada obstante a consideração, aqui defendida, de que tal aparato esteja também disponível ao Serviço Social – de novo, na inexistência de contradição ou vedação no respectivo regulamento –, não se refuta a potencial insegurança jurídica nessa miscelânea normativa.
Nesse reconhecimento, é certo que alguns entes do Sistema S, como o Sebrae, procuram antecipar essa natural evolução normativa. A Resolução 391/2021, publicada em 25 de novembro de 2021, é paradigma, alçando à “legalidade” – e indo além – de algumas das novidades da Lei 14.133/21:
- atualizaram-se os limites de dispensa de licitação;
- inscreveram-se os critérios de julgamento de maior desconto e maior valor econômico;
- alçou-se o contrato de eficiência;
- atualizou-se o conceito e a utilização do apostilamento;
- viabilizou-se a utilização do “painel de preços” para a realização de pesquisas;
- previu-se a modalidade diálogo competitivo;
- previsão do “sistema de cadastro nacional de fornecedores” e pré-qualificação permanente
A Resolução é muito bem-vinda. Acredita-se, porém, que se possa ir ainda além de uma “atualização” dos regulamentos existentes. A inspiração das diversas potencialidades previstas na Lei 14.133/2021 pode ser o ponto de partida da criação de regulamentos ainda mais inovadores e síncronos com as infinitas possibilidades do mundo digital. No diploma geral, por exemplo, ressente-se a ausência de soluções ainda mais contemporâneas, como um “market place público”; ou como uma habilitação técnica e econômica construída a partir do mercado segurador, para além da “habilitação de papel”.
Fato é, porém, que a novel Lei de Licitações e Contratos Administrativos já enseja uma evolução interpretativa dos regulamentos do Sistema S, o que não deixa de ser um excelente ponto de partida para, com maior liberdade, se produzirem contratações que alavanquem as importantes funções sociais desempenhadas pelo Serviço Social Autônomo.
3. Conclusão
Por todo exposto, rememorou-se que, nada obstante a natureza dos regulamentos próprios do Serviço Social Autônomo, necessariamente mais “abertos”, com maior grau de liberdade em comparação com o regime geral licitatório da administração pública, os atos licitatórios e contratuais do Sistema S devem obedecer aos princípios fundamentais constitucionais e licitatórios envoltos à matéria.
Com a edição da Lei 14.133/2021, contudo, com novéis ferramentas e possibilidades, os regulamentos próprios do Serviço Social passaram a enfrentar certo anacronismo: o administrador público da administração direta, autárquica e fundacional, em muitos aspectos, passou a contar com mais discricionariedade em seu processo licitatório que o gestor do Sistema S.
Demonstrou-se, nada obstante, que havendo solução procedimental ou instituto na Nova Lei de Licitações não prevista, mas não vedada, nos regulamentos – a exemplo da contratação integrada, do fornecimento e prestação de serviço associado, dos critérios de julgamento pelo maior desconto e maior retorno econômico, do procedimento de manifestação de interesse, do credenciamento, dentre outros –, por logicamente amoldarem-se aos princípios fundamentais constitucionais e licitatórios, faz-se permissiva a respectiva utilização nos instrumentos convocatórios do Sistema S.
Tal constatação, entretanto, não exime que os Conselhos Nacionais dos entes do Sistema providenciarem a recomendável modernização de seus regulamentos – indo inclusive além das novéis soluções alçadas pelo regime geral –, viabilizando a maior eficiência e segurança jurídica de suas contratações.
Ressalve-se, que não se entende, de modo algum, a utilização subsidiária da Lei Geral de Licitações aos regulamentos do Sistema S. Defende-se, sim, que, por mera liberalidade, possa-se empregar ferramenta ou instituto previsto da Lei 14.133/2021, de forma discricionária, caso considerado vantajoso ao Serviço Social, nas situações em que o respectivo regulamento for silente, em vista do desempenho de suas finalidades legais.