Entre a economicidade e a legalidade: o dilema das taxas negativas em licitações públicas

A busca por modelos mais eficientes e econômicos para o suprimento das necessidades no âmbito da Administração Pública não é apenas uma exigência legal, mas uma premissa indispensável para garantir a boa gestão dos escassos recursos públicos.

Em um cenário onde a transparência, a isonomia e a economicidade são pilares centrais, as decisões relacionadas aos critérios de seleção dos fornecedores em licitações ganham destaque, especialmente quando envolvem serviços estratégicos, como o gerenciamento de benefícios aos servidores.

Nesse contexto, o debate sobre a adoção de práticas inovadoras, como as taxas negativas, contrapõe a busca por eficiência econômica às garantias de legalidade e qualidade na execução dos contratos, configurando um dilema que exige profunda reflexão e equilíbrio entre competitividade e interesse público.

Catalisada pela Lei federal nº 14.442/2022, essa tensão impõe desafios interpretativos e operacionais à Administração Pública na busca por economicidade e competitividade em licitações.

 Para tratarmos do tema, sem desconsiderar as discussões travadas em momento anterior, partimos da lei acima referida, que é fruto da conversão da Medida Provisória n.º 1.108, de 2022, e dispõe sobre o pagamento de auxílio-alimentação aos empregados e dá outras providências.

Desde a sua edição, iniciou-se um debate no seio da Administração Pública acerca da metodologia adequada para contratação de empresa especializada em administrar os benefícios de auxílio-alimentação concedidos aos servidores públicos.

Isto porque foi proibida, na contratação de pessoa jurídica para o fornecimento de auxílio-alimentação de que trata a referida lei, a exigência, imposição e/ou recebimento de: i) qualquer tipo de deságio ou desconto sobre o valor contratado; ii) prazos de repasse ou pagamento que descaracterizassem a natureza pré-paga do benefício; e ii) verbas ou benefícios, diretos ou indiretos que não se vinculassem à promoção da saúde e segurança alimentar do empregado.

Destarte, buscaremos, no presente estudo, identificar o real destinatário da norma em debate e refletir se ela deve incidir sobre toda e qualquer situação em que se pretenda deflagrar licitação para a contratação de empresa para o gerenciamento dos benefícios.

Entendendo o contexto e a essência da norma

Inicialmente, é necessário ser buscada a intenção do legislador no decorrer da criação da norma (mens legislatoris).

Conforme noticiado, a Lei federal n.º 14.442/2022, é fruto da conversão da MP 1.108, que, em consonância com a sua exposição de motivos, pretendia, dentre outros, promover alterações nas normas relacionadas à alimentação do trabalhador, a fim de melhorar a execução do Programa de Alimentação ao Trabalhador – PAT.

O PAT é um programa de governo e tem por objetivo buscar a melhoria da situação nutricional dos trabalhadores, de modo a promover sua saúde e prevenir as doenças profissionais, cuja adesão das empresas ocorre de forma voluntária e a elas gera benefícios fiscais.

Ao longo de sua operacionalização e com o advento dos atuais modelos de arranjos de pagamento, que passaram a competir entre si por meio da oferta de taxas negativas, identificou-se um duplo benefício às empresas beneficiárias do PAT, quais sejam, a taxa de deságio concedida pelas empresas gerenciadoras do benefício e o benefício fiscal obtido junto ao Governo.

O Decreto federal nº 10.854/2021 já havia antecipado a necessidade de vedar práticas como deságios e benefícios indiretos no âmbito do PAT, destacando que essas medidas comprometem a finalidade essencial da política pública, a saber, a de promover a saúde nutricional do trabalhador.

A Lei federal nº 14.442/2022, portanto, não inaugura uma vedação, mas consolida um movimento regulatório que busca evitar o duplo benefício às empresas contratantes, protegendo a cadeia de valor e garantindo maior eficiência à política pública.

Debruçando-nos sobre a leitura da Lei n.º 14.442/2022 e do contexto em que a sua edição se insere, pode-se extrair que a sua incidência dependerá da ocorrência de duas condições cumulativas.

A primeira condição exige que o auxílio-alimentação seja concedido no âmbito de relações de emprego regidas exclusivamente pela CLT, o que afastaria, a nosso ver, a aplicação da norma a servidores estatutários.

A segunda condição diz respeito à própria ideia por trás da edição da norma jurídica, que se pauta na intenção de evitar que os agentes econômicos gozassem de duplo benefício quando da concessão, a seus empregados, do auxílio-alimentação. Explicamos.

A concessão do comentado benefício ao empregado, no âmbito do Programa de Alimentação ao Trabalhador – PAT, confere ao agente econômico um benefício de caráter fiscal, qual seja, a dedução do lucro tributável para fins de apuração do Imposto sobre a Renda, do dobro das despesas comprovadamente realizadas no exercício (cf. Lei n.º 6.321/1976 e respectivos decretos regulamentadores).

Assim, para além do benefício fiscal sinteticamente apresentado acima, os agentes econômicos, antes dos parâmetros impostos pela Lei federal n.º 14.442/2022, gozavam de um segundo benefício, de natureza econômica, ao passo em que negociavam um percentual de desconto sobre o valor de crédito que seria gerenciado pela empresa a ser contratada, que variavam a depender do volume de recursos e do prazo do contrato. A empresa contratada para o gerenciamento, a seu turno, deveria fazer o repasse integral do valor do benefício concedido ao empregado.

O que dizem os Tribunais de Contas?

Para fundamentar as análises e reflexões propostas neste breve estudo, foram selecionados, por amostragem, os entendimentos dos Tribunais de Contas dos Estados do Paraná (TCE-PR) e de São Paulo (TCE-SP), cuja justificativa se pauta pela relevância de suas decisões e pela necessidade de delimitar o escopo deste estudo sem comprometer a profundidade e a qualidade das conclusões apresentadas.

O Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR), em sua jurisprudência,[1] entendeu por delimitar a aplicação da Lei nº 14.442/2022 aos órgãos e entidades da Administração Pública com empregados celetistas, restringindo a aceitação de taxas de administração negativas em licitações relacionadas ao auxílio-alimentação.

Por outro lado, para os entes que possuem servidores estatutários, a proibição do uso de taxas negativas não se aplica, sendo permitido adotar critérios que considerem taxas de administração negativas, desde que em conformidade com os princípios da atual Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021).

Na visão da Corte de Contas Paranaense, a vedação busca evitar prejuízos à cadeia de serviços relacionados ao auxílio-alimentação, mas reconhece que sua aplicabilidade é limitada aos casos de empregados públicos submetidos ao regime da CLT.

Já o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) consolidou o seu entendimento no sentido de ser vedada a taxa de administração negativa, independentemente de a entidade estar vinculada ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT).[2]

A decisão destacou que a prática de exigir taxas negativas pode desvirtuar o objetivo da política pública ao onerar outros elos da cadeia de serviços, como os estabelecimentos comerciais e os consumidores finais. Adicionalmente, o Tribunal determinou ajustes no edital para eliminar critérios de exigência não alinhados ao objeto principal da licitação, como a comprovação de experiência específica e benefícios adicionais dissociados do escopo principal, em consonância com o princípio da competitividade.[3]

Analisando os entendimentos das Cortes de Contas ventilados neste arrazoado, percebe-se uma convergência para a ideia de que a vedação à taxa de administração negativa, prevista na Lei nº 14.442/2022, visa a proteger a cadeia de valor do auxílio-alimentação e a evitar distorções econômicas que possam comprometer o poder aquisitivo dos trabalhadores e a sustentabilidade dos serviços.

Nada obstante, o TCE-PR introduz uma distinção relevantíssima: a norma aplica-se apenas aos entes com empregados celetistas, enquanto servidores estatutários não estão sujeitos a essa vedação, permitindo maior flexibilidade na modelagem das contratações.

Esse cenário reforça a tese que defendemos, no sentido de que a aplicabilidade da norma deve ser direcionada aos empregadores vinculados ao PAT e que, igualmente, gozem de benefícios tributários relacionados à concessão de auxílio-alimentação.

A distinção entre regimes estatutário e celetista permite uma aplicação mais justa e direcionada da norma, evitando interpretações extensivas que poderiam restringir indevidamente a competitividade e a eficiência e, como corolário deste último primado, a economicidade nas contratações públicas.

As fronteiras da Lei nº 14.442/2022: quem são os verdadeiros destinatários?

A partir da edição da Medida Provisória n.º 1.108, de 2022, posteriormente convertida na Lei n.º 14.442/2022, foi iniciada a discussão em torno de sua indistinta aplicabilidade aos contratos administrativos celebrados pela Administração Pública e a necessidade de ser promovidas alterações em editais em andamento e/ou medidas de reequilíbrio nos ajustes em execução.

Afora algumas críticas pontuais ao modelo instituído, não houve a necessária interpretação sistemática da norma então editada, a fim de segregar o âmbito de sua eficácia e incidência, de modo em que ela passou a ser aplicada indistintamente, seja em contratos celebrados entre pessoas jurídicas de direito privado ou entre estas e os Entes da Federação.

Embora se pretenda discutir, a partir deste breve texto, qual seria a modelagem mais adequada para resolver o imbróglio interpretativo criado sobretudo pela jurisprudência de contas, devemos retomar alguns passos atrás para averiguarmos, tal como já exposto anteriormente, o âmbito de aplicação da norma então editada.

Essa análise prévia é fundamental para delimitar as fronteiras jurídicas da Lei n.º 14.442/2022 e sua aplicação à Administração Pública direta e indireta, uma vez que o tratamento indistinto dado à norma, sem levar em conta o seu real destinatário, além de gerar insegurança jurídica, compromete a eficiência e economicidade da contratação desse tipo de objeto.

Portanto, é necessário reconhecer que a aplicação da Lei n.º 14.442/2022 deve ser limitada às empresas, públicas ou privadas, que estejam vinculadas ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e que usufruam dos benefícios tributários pela concessão de auxílio-alimentação a seus empregados.

A delimitação ora defendida se baseia na intenção do próprio legislador de evitar a sobreposição de vantagens econômicas e fiscais, ao mesmo tempo em que mantém o foco da norma na regulação das relações trabalhistas e no incentivo à adesão de empresas ao PAT.

Além disso, ao abalizar a aplicação da norma discutida, reforçamos a importância de interpretações que harmonizem os princípios da economicidade, competitividade e legalidade, bem como a construção de entendimentos jurídicos claros, que é essencial para garantir contratações públicas eficientes e alinhadas ao interesse público.

Nesse sentido, entendemos que a norma não possui o condão de impedir que, no âmbito da Administração Pública Direta, seja praticada, como critério de identificação e seleção da contratação que seja apta a gerar o resultado da contratação mais vantajosa, a taxa negativa nas licitações em que se pretende contratar empresa especializada no gerenciamento de tais auxílios.


[1] Por todos, ver Prejulgado nº 34, decorrente do Acórdão n.º 1053/2024, do Tribunal Pleno. Essa mesma interpretação é seguida no âmbito do TCE/RJ (TCE-RJ n.º 106.787-7/23 e TCE-RJ 231.490-0/23, ambos do Plenário).

[2] Por todos, ver Acórdão paradigma constante do e-TC 009245.989.22-3, do Plenário, bem como do mais recentemente prolatado nos autos do e-TC 015172.989.24-6. Anota-se que o TCE/ES possuía o mesmo entendimento sublinhado pelo TCE/SP, conforme constou do Parecer em Consulta n.º 0022/2023- Plenário. No entanto, após novos debates, a referida Corte decidiu reformar o seu entendimento, o que foi formalizado no Parecer em Consulta n.º 00002/2024-8 – Plenário. Atualmente, entende a Corte que “não há “impedimento à contratação de empresas fornecedoras e gerenciadoras de auxílio-alimentação (emissoras de vales refeição e alimentação, ou congêneres), com aplicação de deságio e descontos sobre o valor contratado, incluindo-se a adoção de taxas negativas de administração, pelos órgãos e entes pertencentes à administração pública direta, autárquica e fundacional”.

[3] É válido sublinhar que, a partir da jurisprudência atual do TCE/SP, há uma série de dificuldades para que se encontre um modelo adequado para a licitação do objeto ora discutido. Com muita insegurança – e sem nenhuma economicidade -, está sendo adotado o procedimento auxiliar de contratação denominado credenciamento, não sendo raros os editais lançados que são paralisados, pela Corte de Contas Paulista, que, cautelarmente, acolhe representações para exames prévios, com alegação de problemas e irregularidades na concepção de suas regras e condições.

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