ESPÉCIES E NATUREZA DAS MANIFESTAÇÕES DO PARECERISTA

No trabalho que inaugurou este espaço, tratamos das questões relativas ao exercício da atividade advocatícia, no geral, e, em especial, na Administração Pública, passando pelos problemas relacionados aos impedimentos e incompatibilidade. Foi visto também que o exercício da advocacia se revela em três grandes grupos de atividades, quais sejam: a advocacia preventiva, por meio da consultoria e assessoramento jurídico, da contenciosa, pelo patrocínio de causas judiciais ou administrativas, e de direção, quando o advogado coordena departamentos jurídicos nas corporações.

Considerando que o nosso principal foco é a advocacia preventiva exercida nos órgãos e entidades do Poder Público, nas próximas linhas vamos cuidar de examinar justamente as espécies de manifestações que os advogados públicos expedem no exercício de suas funções, bem como a extensão de sua responsabilidade ao exarar tais manifestações.

Classificação doutrinária do parecer

Como dito no trabalho anterior, a Advocacia preventiva é exercida por meio da assessoria e da consultoria jurídica. No desenvolvimento dessas atividades o advogado é instado a emitir opiniões e posicionar-se acerca de temas que lhe são apresentados. Via de regra essa atuação é escrita, muito embora não seja raro o Assessor Jurídico ser chamado a participar de reuniões gerenciais, expressando verbalmente suas ponderações sobre os assuntos discutidos (atividade de consultoria). Suas opiniões técnicas (verbais ou escritas) são chamadas de parecer. Mas é na atividade pública que esta espécie de manifestação recebe um tratamento peculiar, dado que, ao expedi-la, o advogado público estará expedindo um ato administrativo. E é assim que o mesmo deve ser examinado, a fim de se possa estabelecer a extensão da responsabilidade que esse agente público assume pela expedição desse ato.

No Direito Administrativo, o parecer é reconhecido como sendo uma das formas de manifestação da atividade administrativa. Diógenes Gasparini[1] conceitua-o como sendo “a fórmula segundo a qual certo órgão consultivo expede, fundamentadamente, opinião técnica sobre matéria submetida à sua apreciação”.

Assim, toda opinião técnica formalizada por escrito será um parecer, não importando a área do conhecimento humano a que se refere a matéria submetida à apreciação. A manifestação por escrito lavrada por um técnico em TI em processo administrativo, explanando as razões pelas quais prefere determinada tecnologia em detrimento de outra, é um parecer. As conclusões de uma junta médica acerca de pedido de aposentadoria por invalidez, quando formalizadas nos autos é, em essência, um parecer. Celso Antônio Bandeira de Mello[2] divide o parecer em duas espécies, a saber: pareceres técnicos e pareceres administrativos, identificando-os como sendo:

“Os primeiros (pareceres técnicos) trazem informações e esclarecimentos da alçada de especialistas. (…). Os segundos (pareceres administrativos) correspondem a um aconselhamento — por certo, também baseado em avaliações emitidas por sujeitos qualificados — mas que envolve conhecimentos e apreciações formuláveis segundo critérios nos quais o que prepondera é uma política administrativa.” 

Entretanto, certo é que em ambas as situações haverá emissão de ato opinativo de natureza técnica (política pública é uma faceta da ciência da Administração) expedida por técnicos qualificados. No entanto, preferimos adotar outra identificação quanto à matéria tratada no parecer, também dividindo-o em duas categorias.

No primeiro grupo, que chamaremos de pareceres técnicos, incluem-se os pareceres das áreas técnico-operacionais (engenharia, gestão de pessoas, tecnologia da informação, logística) e os jurídicos. Neste, o assunto tratado diz respeito a opiniões sobre soluções técnicas que servirão à movimentação da máquina estatal de acordo com as políticas públicas a adotadas. Na segunda categoria, encontramos os pareceres de ordem política, ou seja, a opinião técnica que diz respeito a qual política pública deve ser adotada para a consecução do plano de governo ou de gestão. Estes seriam os pareceres políticos.

De acordo com a classificação dos atos administrativos proposta por Hely Lopes Meirelles[3], o parecer encontra-se, quanto ao seu destinatário, na categoria de ato individual, pois encerra uma relação jurídica apenas entre o parecerista e seu destinatário direto (a autoridade a quem diretamente foi dirigida a manifestação), ao contrário dos atos gerais — também chamados atos normativos ou regulamentares — que são dirigidos sem destinatário específico. Em relação à extensão de seus efeitos, é ato externo, pois sempre diz respeito a direitos, negócios, deveres ou obrigações de terceiros, seja de particulares (como seria o parecer sobre recurso hierárquico interposto por licitante desclassificado em torneio licitatório), seja em relação aos agentes públicos da Administração (manifestação conclusiva sobre uma contratação por inexibilidade de licitação). Quanto à finalidade, é ato de expediente, porquanto destinado a dar andamento a processos ou procedimentos, preparando-os para a decisão final da autoridade competente. Na maior parte das vezes são expedidos segundo rotina administrativa interna corporis pré-estabelecida. Porém, mesmo não sendo a manifestação exarada em cumprimento de uma rotina administrativa, ainda sim seria de expediente por serem sempre preparatórios para uma decisão de mérito da autoridade superior. Quanto à formação, o parecer é, em regra, ato simples, em razão de resultar da vontade de um único órgão (singular ou colegiado). Em algumas vezes, pode ser tido como ato composto, quando a manifestação do órgão consultivo depender de exame de outro órgão para que tenha a capacidade de gerar efeitos jurídicos, como é o caso do parecer normativo. Quanto ao efeito, é ato declaratório, na medida em que tende a afirmar, preservar, reconhecer ou mesmo possibilitar o exercício de direitos; pode também assumir a feição de ato constitutivo no caso do parecer normativo, pois, com a aprovação da autoridade competente, passa a impor obrigações ou deveres, criando situações jurídicas novas. Por fim, quanto à exequibilidade, trata-se de um ato enunciativo, que são os atos que não expressam uma vontade estatal, seja ela criadora de direitos, regulamentadora ou negocial. O parecer, assim como a certidão, a declaração, o atestado e a apostila, por não expressar um comando, é considerado ato administrativo apenas no aspecto formal, pois somente serve ao desiderato de expressar o conteúdo ou a existência de dados ou informações constantes de arquivo do órgão ou uma opinião ou juízo de valor sobre situação fática ou jurídica, não se vinculando ao que enunciam.

Os saudosos Gasparini e Hely Lopes[4] concordavam que o parecer tem caráter meramente opinativo e que não vincula a Administração ou os particulares, salvo se aprovado por ato subsequente, posição compartilhada por José dos Santos Carvalho Filho[5], que, indo mais além, entende que o parecer e a decisão subsequente consubstanciam “atos antagônicos” e que por isso, sequer podem ser emitidos pelo mesmo agente.

Esse posicionamento conduz à percepção de que, desprovido de força vinculante, o parecer jurídico não obriga a autoridade competente (ou os particulares) a adotar as medidas ou executar o ato consultado na conformidade do parecer. Um exemplo prático bem ilustrará a hipótese. Se um Secretário Municipal encaminha à sua Assessoria uma consulta sobre a possibilidade de o Município realizar um aditamento a um contrato, visando alterar, em parte, o projeto inicialmente contratado, e o parecer é desfavorável à essa alteração, por não possuir (o parecer) força vinculante, o Secretário Municipal não ficaria obstado de celebrar o aditamento ao referido ajuste. Celso Antônio Bandeira de Mello[6] esclarece ainda que os pareceres são atos de administração consultiva, pois “visam a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa.”

Disso se pode concluir que a doutrina clássica entende que, ao manifestar-se em resposta à consulta formulada, o Assessor Jurídico não pratica ato decisório, expedindo ato de cunho meramente opinativo. A despeito disso, alguns autores e o próprio STF, como se verá logo adiante, reconhecem que em algumas situações específicas os pareceres poderão ser revestidos de força vinculante.

De um modo geral, o parecerista se manifesta a partir de consulta formulada pela autoridade competente. Porém, nem sempre o órgão consultivo é instado a ofertar parecer por ato de vontade desta. Em algumas situações previstas em lei ou mesmo normativo interno, a regularidade do ato que será (ou deverá ser) deflagrado, será dependente de análise jurídica prévia. Nessas hipóteses, o encaminhamento ao setor jurídico deixa de ser mera consulta para se tornar parte necessária do processo. Di Pietro[7], com seu habitual didatismo, analisa um pouco mais a fundo e classifica o parecer em três espécies: facultativo, obrigatório, e vinculante, definindo-os da seguinte forma:

“O parecer é facultativo quando fica a critério da Administração solicitá-lo ou não, além de não ser vinculante para quem o solicitou. Se foi indicado como fundamento da decisão, passará a integrá-la, por corresponder à própria motivação do ato.
O parecer é obrigatório quando a lei o exige como pressuposto para a prática final do ato. A obrigatoriedade diz respeito à solicitação do parecer (o que não lhe imprime caráter vinculante). Por exemplo, uma lei que exija parecer jurídico sobre todos os recursos encaminhados ao Chefe do Executivo; embora haja obrigatoriedade de ser emitido o parecer sob pena de ilegalidade do ato final, ele não perde seu caráter opinativo. Mas a autoridade que não o acolher deverá motivar sua decisão […].
O parecer é vinculante quando a Administração é obrigada a solicitá-lo e a acatar sua conclusão. Para conceder aposentadoria por invalidez, a Administração tem que ouvir o órgão médico oficial e não pode decidir em desconformidade com sua decisão […]”

Já a Lei 9.784/99, delimita uma variação dos conceitos de parecer “obrigatório” e “vinculante”, abordando as gradações entre eles e apontando seus efeitos no campo administrativo:

Art. 42. Quando deva ser obrigatoriamente ouvido um órgão consultivo, o parecer deverá ser emitido no prazo máximo de quinze dias, salvo norma especial ou comprovada necessidade de maior prazo.
§ 1º Se um parecer obrigatório e vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo não terá seguimento até a respectiva apresentação, responsabilizando-se quem der causa ao atraso.
§ 2º Se um parecer obrigatório e não vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo poderá ter prosseguimento e ser decidido com sua dispensa, sem prejuízo da responsabilidade de quem se omitiu no atendimento.”

Como se vê, a norma supra transcrita reconhece a existência de parecer obrigatório, subdividindo-a em duas subespécies: vinculante e não vinculante, o que não significa negar as variações apontadas por Di Pietro.

Apesar de o parecer facultativo integrar o ato, com o acatamento do mesmo como um de seus fundamentos, o parecer não perde sua autonomia de ato meramente opinativo. Este é o caso para o qual o Gestor não tinha obrigação de ouvir seu corpo técnico, mas decidiu fazê-lo para subsidiar sua decisão.

O parecer seráobrigatório quando a oitiva do parecerista faz parte da instrução do processo. É determinada pela lei como condição de eficácia processual e sua transgressão corresponderá à violação ao princípio do devido processo legal. Mais ainda sim, segundo Di Pietro,[8]a autoridade competente não ficará adstrita ao parecer que mantém intacta sua natureza opinativa. Contudo, para decidir deverá fundamentar sua decisão. Carlos Pinto Coelho Motta[9] sustenta que a inexistência do parecer obrigatório pode dar ensejo à nulidade do ato final, esclarecendo que embora o conteúdo do parecer não seja vinculante, sua presença é necessária para legitimidade daquele.

Finalmente, o parecer será vinculante quando, além de ser obrigatório por lei, amarra, atrela a decisão final ao seu entendimento. Uma vez ouvido o órgão consultivo, a autoridade não poderá decidir de forma diversa daquela exposta no parecer. Neste tema, cabe lembrar a lúcida orientação da doutrina de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[10]:

“Parecer conforme, ou vinculante, é o que a Administração Pública não só deve pedir ao órgão consultivo, como deve segui-lo ao praticar o ato ativo ou de controle. Encerra regime de exceção e só se admite quando expressamente a lei ou o regulamento dispõem nesse sentido. O ato levado a efeito em desconformidade com o parecer se tem como nulo.

Todavia, tal entendimento ainda gera certa controvérsia, que gira em torno da efetividade do parecer como ato administrativo. A doutrina pátria, em sua maioria, adota, conforme já visto anteriormente, o entendimento segundo o qual o parecer sempre se constituirá um ato enunciativo, uma opinião técnica; jamais um ato administrativo típico, porquanto o ato administrativo em si (com característica de auto-executoriedade) é aquele proferido pela autoridade administrativa competente. Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari[11] fortalecem a tese de que o parecer vinculante é a própria decisão e, portanto, caracteriza-o de forma absoluta como peça opinativa:

“Parecer jurídico, portanto, é uma opinião técnica dada em resposta a uma consulta, que vale pela qualidade de seu conteúdo, pela sua fundamentação, pelo seu poder de convencimento e pela respeitabilidade científica de seu signatário, mas que jamais deixa de ser uma opinião. Quem opina, sugere, aponta caminhos, indica uma solução, até induz uma decisão, mas não decide.

Por sua vez, Carlos Pinto Coelho Motta, abraçando doutrina de BANDEIRA DE MELLO, concorda com a existência, ainda que excepcional, de pareceres de natureza vinculativa, [12]

“Resta a hipótese do parecer vinculante em sua acepção absoluta, ou seja, a execução do ato pelo órgão não admite qualquer margem discricionária: deve cumprir exatamente o estabelecido no parecer, não lhe sendo permitido até mesmo o “deixar de agir”. Nesse caso, o parecer do órgão consultivo, extrapolando suas funções usuais consoante regência legal autorizadora, caracteriza:
(a) uma das partes de um ato complexo; ou
(b) ato ativo autônomo, identificado como autorização ou aprovação prévia.”

Estamos com a tese defendida por Di Pietro e Coelho Motta, mas, no que concerne às consequências práticas que a festejada jurista apresenta em função dessa classificação, faremos dois apontamentos.

Para a insigne autora, no parecer obrigatório, caso a autoridade venha a não acolher a solução estampada na manifestação, deverá “motivar a sua decisão ou solicitar novo parecer”[13].Concordando com a autora no sentido de que a motivação é um elemento imprescindível em qualquer ato administrativo[14], não enxergo essa característica como um diferencial entre o parecer facultativo e o obrigatório. A motivação será necessária tanto em um como no outro sempre que, após ouvido o órgão consultivo, a autoridade queira decidir de forma diversa. Por lado outro, se para decidir de forma diversa a autoridade deve solicitar novo parecer, ou seja, se para exarar o ato (decisório) da forma como pretende, a autoridade sempre necessitar ter em mãos um parecer cuja opinião coincida com a sua inclinação de decidir, não tenho dúvidas de que estaríamos diante da hipótese de um parecer vinculante. Entendo que o parecer obrigatório é um elemento processual obrigatório, e, somente nisto, se distingue do parecer facultativo.

Já em relação ao parecer vinculante, Di Pietro[15] anota que “também neste caso, se a autoridade tiver dúvida ou não concordar com o parecer, deverá pedir novo parecer.” Quanto a este aspecto, em que pese corretíssima a colocação, nutrimos uma preocupação importante, considerando os possíveis e nefastos desdobramentos no campo da independência profissional do parecerista.

É indubitável que se a lei conferiu caráter vinculante ao parecer, a ideia era justamente retirar da autoridade parte da sua autonomia para decidir. Trata-se de um verdadeiro freio ao poder discricionário. Se imaginarmos uma situação em que a autoridade pudesse ir solicitando pareceres até que um estivesse alinhado ao que pretendesse decidir, abrir-se-ia um enorme espaço para arbitrariedades. E de vinculante, o parecer, em verdade, pouco teria. Se um servidor submetido a uma junta médica recebesse parecer favorável à aposentadoria por invalidez, seria um absurdo imaginar que o Administrador que desejasse persegui-lo, ficasse solicitando novos pareceres até que uma outra junta médica exarasse o parecer contrário à aposentadoria.

Assim, não negando que a autoridade competente mantenha o poder de discordar da posição adotada pelo parecerista e, por isso, poder exigir novo parecer, penso ser pertinente fazer uma pequena ressalva. Entendo que a solicitação de novo parecer de natureza vinculante somente deve ser admitida em circunstâncias excepcionalíssimas e devidamente motivada. Vislumbro três situações nas quais seria justificável a solicitação de novo parecer.

A primeira delas, mais simples, porém muito freqüente, seria o caso de o parecer ser exarado de forma inconclusiva. Como o ato administrativo somente pode ser deflagrado na forma corroborada no parecer vinculante, não sendo conclusiva a manifestação, a autoridade competente ficaria sem o parâmetro legalmente necessário para a tomada de decisão; ou pior, teria à sua disposição, uma margem de discricionariedade que originariamente não teria à sua disposição. Não conclusivo é o parecer no qual seu subscritor, ao final da exposição, não define objetivamente qual conduta deve a autoridade adotar, ou se a conduta consultada (comissiva ou omissiva) está ou não de acordo com as normas regentes da espécie. A advocacia consultiva é uma prestação de serviços em que o cliente tem de receber, como produto final, a opinião técnica pessoal do consultor. O profissional que ao invés de ofertar a sua a opinião, mas, e.g., apenas uma exposição das correntes doutrinárias aceitas na atualidade do cenário jurídico, na verdade, não presta o serviço, e por ele não faria jus à remuneração. O mesmo se diz na advocacia pública. O Assessor nomeado para cumprir sua função de advocacia preventiva é remunerado para prestar o serviço tal qual o deveria. Caso a autoridade receba um parecer em termos abertos, deverá solicitar do mesmo profissional seu posicionamento efetivo ou solicitar de outro, a manifestação necessária.

A segunda hipótese em que me parece ser razoável exigir novo parecer vinculante, é quando a manifestação adota posição vanguardista em relação ao tema suscitado. Quero dizer, por vanguardista, aquela posição doutrinária que, a despeito de bem construída sob o ponto de vista científico e conclusiva, não representa posição majoritária da doutrina ou da jurisprudência, ou ainda tema não abordado sob o enfoque proposto. Nessas condições, seria aceitável que a autoridade se sentisse um pouco temerosa em adotar imediatamente a solução proposta no parecer. Nesse diapasão, a solicitação de nova manifestação, uma segunda opinião, teria a finalidade de conferir maior robustez ao decisum.

A terceira, situação seria para os casos em que o parecer se mostra inconsistente, assim considerando aqueles que, a despeito de conclusivo, é frágil na argumentação, no desenvolvimento do raciocínio científico, ou mesmo não fundamentado. A ideia segundo a qual é necessária a análise técnico-jurídica (por isso a lei a exige para eficácia do ato) é justamente possibilitar a tomada de decisões com base em profundo estudo da adequação normativa e das implicações jurídicas da mesma. No caso do parecer inconsistente, fica claro que esse desiderato não teria sido alcançado e, mesmo adotando a solução proposta pelo órgão consultivo, o ato estaria próximo de irregular. Afinal, caso anulado posteriormente, inclusive pelo Judiciário, a autoridade competente seria responsabilizada em razão da existência de culpa na modalidade in vigilando. Foi o que decidiu o Plenário do TCU no precedente abaixo:

“A utilização de pareceres jurídicos sintéticos, de apenas uma página, com conteúdo genérico, sem demonstração da efetiva análise do edital e dos anexos, em especial quanto à legalidade das cláusulas editalícias, permitiu, no caso concreto, a presença de itens posteriormente impugnados (..) necessidade de os pareceres jurídicos exigidos pelo art. 38 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, integrarem a motivação dos atos administrativos, com abrangência suficiente, evidenciando a avaliação integral dos documentos submetidos a exame (v. g.: Acórdão 748/2011-Plenário)”.

Portanto, a solicitação de novo parecer, nos casos em que o mesmo é de caráter vinculante não é regra, mas, exceção. Entendemos que o parecer vinculante condiciona a prática do ato na forma como se apresenta, sem espaço para o gestor buscar outra via de decidir, salvo nas situações excepcionalíssimas listadas acima. Dito isto, retornamos ao debate sobre a classificação das espécies de pareceres.

A posição do STF

Vimos como a doutrina clássica enxerga tais atos enunciativos e como a doutrina moderna os vê. O Supremo Tribunal Federal passou a se posicionar conforme a doutrina mais moderna. Em um primeiro momento, o Pleno adotou, à unanimidade, a doutrina de Hely Lopes Meirelles, para considerar que parecer jurídico não é ato administrativos. No julgamento do MS no. 24.073[16], o relator, Min. Carlos Velloso assim se manifestou em seu voto:

“O parecer emitido por procurador ou advogado de órgão da administração pública não é ato administrativo. Nada mais é do que senão opinião emitida pelo operador do direito, opinião técnico-jurídica, que orientará o administrador na tomada da decisão, na prática do ato administrativo, que constitui na execução ex officio da lei.”

Em seguida, no julgamento do MS no. 24.584[17], a cuja relatoria coube ao Min. Marco Aurélio Mello, o Eminente Min. Joaquim Barbosa, em seu voto-vista, aprofundou o exame e justificou o pedido de vista afirmando que, até aquele momento, “a doutrina e a jurisprudência brasileiras ainda não exploraram todas as possibilidades que o tema oferece”. Adotando a doutrina francesa da pena de Réné Chapus[18], o festejado magistrado reconheceu a existência de uma espécie de parecer a qual se reveste de força vinculante (característica que não se nega ser típica dos atos administrativos propriamente ditos), dependendo da obrigação que a lei impõe ao administrador proceder ou não à consulta. Entendeu naquela oportunidade que caso a lei estabeleça a obrigação de “decidir à luz de parecer vinculante ou conforme (décider sur avis conforme), o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou, então, não decidir.” Prosseguiu, salientando que, nos casos de a lei estabelecer a obrigação de o gestor decidir na conformidade do parecer, caso não o faça, seu ato estará “maculado por vício de competência.” (grifos do original)

Mais adiante, no julgamento do MS no. 24.631[19], o emérito Magistrado, agora na qualidade de Relator, reafirmando a posição sustentada no julgado anterior, faz uma análise aprofundada acerca da classificação do parecer enquanto ato administrativo, consignando em seu voto lapidar lição, in verbis:

“A doutrina nacional reconhece, genericamente, a natureza meramente opinativa dos pareceres lançados nos processos administrativos (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 28ª edição. São Paulo: Malheiros, p. 189).
Este entendimento encontra respaldo em entendimento recente deste Tribunal no julgamento do MS. 24.073, da relatoria do eminente Ministro Carlos Veloso.
Assim, via de regra, se a lei (i) não exige expressamente parecer favorável como requisito de determinado ato administrativo, ou (ii) exige apenas o exame prévio por parte do órgão de assessoria jurídica, o parecer técnico-jurídico em nada vincula o ato administrativo a ser praticado, e dele não faz parte. Nesses casos, se o administrador acolhe as razões do parecer jurídico, incorpora, sim, ao seu ato administrativo, os fundamentos técnicos; mas isso não quer dizer que, com a incorporação dos seus fundamentos ao ato administrativo, o parecer perca a autonomia de ato meramente opinativo, que nem ato administrativo propriamente é, como bem define Hely Lopes Meirelles: ‘o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade, normativa, ordinatória, negocial ou punitiva’ (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 28ª edição. São Paulo: Malheiros, p. 189).
O problema guarda estreita relação com a estruturação hierárquica da administração e o princípio da legalidade. Assim, é que ao administrador, salvo disposição legal específica, cabe a aplicação da lei e demais normas administrativas, exercendo ele o juízo cabível, na esfera administrativa, sobre a legalidade de determinada medida.
Não obstante, acredito que esse entendimento não possui status de regra absoluta.
Como já sustentei no voto-vista no MS 24.584, calcado em respeitável doutrina, a obrigatoriedade ou não da consulta tem influência decisiva na fixação da natureza do parecer.
Assim, poder-se-ia dizer que1:
(i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo;
(ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer.
(iii) mas quando a lei estabelece a obrigação de “decidir à luz de parecer vinculante” (decider sur avis conforme), o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou não decidir.
A doutrina brasileira, embora tradicionalmente influenciada pela doutrina francesa, nesta matéria, não desce a essa sofisticação de detalhes, preferindo manter-se fiel à noção de que o parecer jurídico tem sempre caráter opinativo. O que é relevante nessa classificação é que, no caso do parecer vinculante, há efetiva partilha do poder decisório. É nessa linha de entendimento que o professor CHAPUS sustenta haver maculação, por vício de competência, do ato administrativo expedido sem a observância do “avis conforme” nos casos em que a lei o exige”
1-Droit Administratif Général, tome 1, 15 emé ed. Paris: Montcherstien, 2001, pág. 1113-1115

Contudo, em que pese a envergadura científica do eminente jurista relator do acórdão acima transcrito, como também da doutrina por ele colacionada, peço licença para tecer algumas reflexões também quanto aos desdobramentos práticos decorrentes da adoção desse entendimento.

A tese da doutrina francesa, acolhida pela nossa Corte Suprema, defende que, no caso do parecer obrigatório, a autoridade se “vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria” e, caso pretenda a seguir por outro caminho (que não o indicado no parecer), “deverá submetê-lo a novo parecer”. Na hipótese do parecer de natureza vinculante, a autoridade estaria amarrada à conclusão do parecer e sendo assim, não poderia “decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou não decidir”.

Segundo essa teoria, o parecer chamado de obrigatório, em verdade, se transmudaria em vinculante, pois, se para decidir de forma diversa o administrador necessitar obter outro parecer (que conclua da forma como pretende praticar o ato), sua decisão, no fim das contas, seria proferida sempre com observância do avis conforme, pois seria praticado na esteira da conclusão de um parecer. Sob o ponto de vista prático não haveria distinção entre o parecer obrigatório e o vinculante. Do mesmo modo como sustentei acima, ao debater a teoria brilhantemente apresentada por Di Pietro, independentemente da natureza do parecer, a decisão final, ou seja, o ato propriamente dito, sempre deverá ser motivado, mesmo nos casos de parecer facultativo. Logo, a meu particular sentir, assim como lá, aqui, essa condição não se consubstanciaria num matiz próprio dessa categoria de parecer.

No que concerne à caracterização do parecer vinculante, também penso ser oportuno refletir sobre a lição francesa. Ao defender a tese segundo a qual, no caso de parecer vinculante, “o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer, ou não decidir” a doutrina permite duas ilações, a meu ver, perigosas.

A primeira, seria a de admitir que, em alguma circunstância, o administrador estaria impedido de solicitar novo parecer, mesmo que a manifestação apresentada esteja totalmente desprovida de um mínimo de razoabilidade técnica, ou claramente tendenciosa. Portanto, apesar de o Acórdão transcrito não indicar essa possibilidade, pensamos ser pertinente reforçar a ideia a partir da qual, mesmo no caso de parecer vinculante, o administrador permanece guardião do interesse da coletividade e, por isso, caso o parecer se apresente inconsistente ou inconclusivo, poderá solicitar nova manifestação. Mas, conforme anteriormente destacado, tal situação seria excepcionalíssima e dependente de motivação. Ainda assim, não restaria descaracterizada a natureza vinculante do parecer.

A segunda é a de que o administrador poderia cogitar “não decidir”, em alternativa a decidir com observância do avis conforme. Não é crível que a doutrina francesa abrigue noção segundo a qual, tendo de decidir, o gestor pudesse optar por manter-se inerte; silente, esquivando-se do seu dever de expedir o ato final, arquivando o processo sem tratar-lhe o mérito. Se um servidor atravessa requerimento no qual pretende ser aposentado por invalidez, e a Junta Médica elabora laudo concluindo pela aposentadoria, o administrador é obrigado a aposentar o requerente. Não há espaço para decidir de forma diversa, salvo nas situações excepcionalíssimas a que já nos referimos, e mesmo assim, com base em outro parecer. Jamais poderia, alternativamente, como pode parecer na lição francesa, simplesmente, não decidir. Aliás, a respeito do dever de decidir, a Lei no. 9.784/1999 é enfática:

Art. 48. A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência.

Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.

Há casos em que, de fato, o gestor pode não exarar o ato (não decidir), arquivando o processo, não decidindo seu mérito. Seria o caso do parecer sobre a minuta de um edital de licitação[20] que, conforme veremos no próximo artigo, caracteriza-se como parecer vinculante. Se a assessoria jurídica, após análise, oferece parecer apontando diversas impropriedades a ser corrigidas na minuta, o gestor, caso pretenda realizar o torneio licitatório, deverá retornar os autos ao setor competente para que o mesmo providencie as necessárias alterações. Mas, poderá, também, determinar o arquivamento do processo, deixando de realizar o certame licitatório. Entretanto, é de se notar que a decisão pelo arquivamento, não teria sido uma alternativa às determinações manifestadas pelo parecerista, mas fruto de seu juízo pessoal de conveniência e oportunidade de contratar aquele objeto naquele momento.Acrescente-se que, mesmo neste caso, a decisão de arquivar o processo deverá ser motivada.

Conclusão

Assim posto, adotamos a classificação das espécies de pareceres, conforme proposta por Di Pietro e aceita pelo STF, com as ressalvas acima, para reconhecer que:

a) como regra, o parecer jurídico é facultativo, isto é, solicitado por ato de vontade da autoridade competente, integrando a motivação do ato subseqüente;

b) em certos casos, a consulta será obrigatória, por imposição de lei ou ato normativo interno, caracterizando-se como um elemento processual, surgindo como uma espécie de freio ao poder discricionário;

c) em ambas as situações, o gestor não estará vinculado a decidir na forma da manifestação, mas, caso deseje decidir de forma diversa, deverá motivar sua decisão, não necessariamente com outro parecer;

d) em casos excepcionais, o parecer assume a condição de pressuposto de perfeição do ato, tornando-se vinculante para o gestor, não sobrando ao Gestor margem para decidir de forma diversa nem tampouco manter-se inerte, não decidindo; e,

e) admite-se, entretanto, em relação aos pareceres vinculantes, que a autoridade solicite novo parecer na hipótese de o primeiro ter se mostrado vanguardista, inconclusivo ou inconsistente, devendo, neste caso, motivar o ato e manter ambos os pareceres nos autos do processo, por força do disposto no art. 38, IV da Lei no. 8.666/1993.

Com a classificação que ora adotamos, na qual se reconhece a existência de pareceres facultativos, obrigatórios e vinculantes, e considerando seus respectivos caracteres, para o próximo artigo analisaremos a atuação do Assessor Jurídico nos processos licitatórios e processos correlatos, identificando a natureza de seus pareceres nas hipóteses mais relevantes em vista da legislação regente da espécie e as discussões doutrinárias em torna delas, quais sejam: a manifestação sobre  análise das minutas de editais, contratos, convênios e seus aditamentos (art. 38, parágrafo único da Lei no. 8.666/1993); e, a manifestação sobre as hipótese de dispensa e inexigibilidade de licitação (art. 26 c/c art. 38, VI, da Lei no. 8.666/1993).

*Luiz Claudio Chaves é especialista em Direito Administrativo, professorda Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR e da Escola de Administração Judiciária-ESAJ/TJRJ; professor convidado da Fundação Getúlio Vargas e da PUC-Rio. Autor das obras Curso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris e Licitação Pública – Compra e Venda governamental Para Leigos, alta Books. Apresenta regularmente, em âmbito nacional o seminário: A função do Assessor Jurídico no controle prévio de legalidade nos processos licitatórios: competências e responsabilidades.


[1] Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 143. No mesmo sentido, MIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 40ª., ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p. 211.
[2] Curso de Direito Administrativo. 30ªed., São Paulo: Malheiros, 2013, p.114
[3] Op. Cit., pgs. 180-194
[4] Ibiden.
[5] Manual de Direito Administrativo. 27ª, São Paulo: Atlas, 2014, p. 139.
[6] Op. Cit.,  p. 426/427
[7] Direito Administrativo, Atlas 2011, p. 241 e segs., apud MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 583.  No mesmo sentido, MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Op. Cit., 446.
[8] Op. Cit., p. 242.
[9] Direito Administrativo Brasileiro, 13ª. ed., São Paulo, 1988, pp. 152-153.
[10] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 576-577.
[11] FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 140-141.
[12] Cautelas para Formalização de Parecer Jurídico, apud BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 577.Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2636
[13] Op. Cit., p. 242.
[14] “Entendemos que a motivação é, em regra, necessária, seja para os atos vinculados, seja para os atos discricionários, pois constitui garantia de legalidade, que tanto diz respeito ao interessado, como à própria Administração Pública; a motivação é que permite a verificação, a qualquer momento, da legalidade do ato, até mesmo pelos demais Poderes do Estado.” (Op. Cit., p. 220). No mesmo sentido, VARESCHINI, Julieta Mendes Lopes. Discricionariedade Administrativa, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p., 115-116: “Ressalte-se que, ao contrário do que muitos autores defendiam, o princípio da motivação deve estar presente em qualquer tipo de ato administrativo e não somente nos discricionários, uma vez que tal formalidade é requisito sine qua non para viabilizar o controle da legalidade e da juridicidade do todo e qualquer ato exarado no exercício da função administrativa.”
[15] Ibidem.
[16] Ementário no. 2130-2, j. em 06/11/2002, DJ 31/10/2003.
[17] Ementário no. 2324-2, j. em 09/08/2007, DJe 20/06/2008.
[18] Droit Administratif Général, tome 1, 15 emé ed. Paris: Montcherstien, 2001, pág. 1113-1115
[19] Ementário no. 2305-2, j. em 09/08/2007, D.J. 01/02/2008.
[20] Lei no 8.666/1993, art. 38, par. único.


Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

Publicações recentes

Discricionariedade e Transparência nas Contratações das Entidades do Sistema S: Lições do Acórdão 1998/2024 do TCU 

Por:

A discricionariedade administrativa é um princípio fundamental no Direito Administrativo, permitindo ao agente um espaço para tomar decisões que atendam […]

18 de novembro de 2024

Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa: Um Paralelo com a Atuação do Agente Público nos Processos Licitatórios e o Artigo 28 da LINDB 

Por:

1. Introdução:  A discricionariedade administrativa é um conceito central no Direito Administrativo e na atuação dos agentes públicos. Ela se […]

1 de novembro de 2024

ACEITABILIDADE DAS PROPOSTAS NA LEI DAS ESTATAIS

Por: e

Antes de adentrar no tema central deste artigo, cumpre esclarecer que a temática – como não poderia ser diferente – […]

25 de outubro de 2024