Muito ansiada por alguns, mas temida por muitos, nasceu, em meio ao dia 1º de abril de 2021, em edição extra do Diário Oficial da União[1], a nova lei que inaugura o marco regulatório das licitações e contratações públicas, a Lei nº 14.133.
A sanção ao Projeto de Lei nº 4.253, tão estudado pela doutrina ao longo de sua tramitação, ocorreu com 26 vetos, sendo que a maioria dos dispositivos vetados já estavam sendo ecoados por aqueles que se debruçaram e estudaram as novas regras que seriam aprovadas.
O novo marco regulatório nasceu já sendo criticado por muitos doutrinadores por ter mantido quase a burocracia da Lei nº 8.666/1993, além de ter inovado muito pouco no campo das contratações públicas.
De fato, percebemos que a Lei nº 14.133/2021 é, praticamente, uma compilação de institutos e disposições previstas Leis nº 8.666/1993, 10.520/2002 (Lei do Pregão) e 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações), de decretos federais regulamentares (e.g., Decreto nº 7.892/2013, que regulamenta o Sistema de Registro de Preços, e Decreto nº 10.024/2019, que regulamenta o pregão), de Instruções Normativas editadas pelo Governo Federal, a exemplo das INs 05/2017 (procedimentos para contratação de serviços sob o regime de execução indireta) e 73/2020 (procedimento para a realização de pesquisa de preços), além de Súmulas e entendimentos do TCU e orientações normativas da Advocacia-Geral da União.
Abstraídas as críticas à nova lei, é válido considerar que, por meio dela, inaugura-se, formalmente, um cenário apto à concreta implementação da governança corporativa e para a atuação planejada do gestor público, notadamente nos municípios brasileiros.
Fato é que, doravante, doutrina e jurisprudência deverão traçar os nortes interpretativos para a correta aplicação da nova lei, desvinculando-se, por total, das amarras das legislações anteriores, a fim de criar uma visão prospectiva e que condiga com a inovação tão difícil, mas desejada, no âmbito da Administração Pública.
A nova lei passa a vigorar imediatamente, na data de sua publicação, isto é, a partir de 1º de abril de 2021 (art. 193). Todavia, foi estabelecido, pelo legislador, um período de convivência entre o novo regime e os anteriores previstos nas Leis nº 8.666/1993, 10.520/2002 e 12.462/2012 (art. 1º a 47-A), que vigorará por 2 anos, após o que, tais leis federais serão revogadas.
Caberá à Administração Pública optar por continuar a licitar e contratar pelo regime previsto nas leis antes citadas ou passar a aplicar, de imediato, as disposições do novo marco regulatório, observando-se o seguinte: i) o contrato celebrado com base no regime anterior, será por ele regido até o final de sua vigência; ii) a opção escolhida pela Administração deverá estar expressa no edital ou no instrumento de contratação direta; e iii) é vedada a combinação de um regime com o outro.
A nova lei de licitações e contratos se aplica à Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo: i) quando no desempenho da função administrativa, os órgãos do Poder Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e aos órgãos do Poder Legislativo dos Municípios; e ii) os fundos especiais e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública[2].
Em síntese, a nova lei de licitações não se aplica às estatais, já contempladas na Lei nº 13.303/2016, ressalvada a parte penal (art. 178), assim como, por exemplo, entidades que integram o denominado “Sistema S”, que observam regulamentos próprios e os princípios do caput do art. 37 da Constituição Federal.
A Lei nº 14.133/2021 trouxe algumas releituras de institutos e disposições já previstas em outras normas, regulamentos ou entendimentos pacificados no âmbito de tribunais, notadamente do Tribunal de Contas da União.
Passamos, de forma sintética, a destacar algumas das releituras trazidas pela nova lei: i) inversão de fases, já prevista na modalidade pregão e no RDC e que agora se torna a regra (primeiro se analisará e julgará as propostas para, em relação ao primeiro classificado (vencedor da etapa competitiva), analisar os documentos de habilitação); ii) orçamento sigiloso, a ser adotada por despacho fundamentado, que já era uma realidade no RDC e na lei das estatais; iii) previsão de métodos alternativos de controvérsia, a exemplo da possibilidade já prevista na lei das Parcerias Público-Privadas (Lei nº 11.074/2004); iv) utilização do pregão para serviços comuns de engenharia, que já era prevista na Súmula 257 do TCU, desde o ano de 2010[3]; v) possibilidade de ser exigida, para fins de habilitação e quando se estiver diante da contratação de serviços continuados, certidão ou atestado que demonstre a execução, em períodos consecutivos ou não, por um prazo mínimo determinado, não superior a 3 anos. Tal possibilidade já se encontrava previsto na IN 05/2017 e na jurisprudência do TCU.
Há várias outras incorporações, feitas na Lei nº 14.133/2021, de práticas administrativas que já se encontravam consolidadas e em plena aplicação no âmbito das contratações públicas, que decorriam de orientações e decisões do TCU, cuja jurisprudência, como se percebe, exerceu forte influência na elaboração do novo estatuto geral.
Para não ficar apenas no mais do mesmo, convém destacarmos as principais, ou mais discutidas, inovações previstas na comentada norma geral.
A primeira delas, e a mais discutida desde a tramitação do projeto de lei, é a inclusão, como modalidade licitatória, do diálogo competitivo, que se inspira na previsão contidana Diretiva 2014/24, da União Europeia, a qual, em substituição à Diretiva 2004/18, passou a reger a disciplina jurídica dos contratos públicos, cujo papel se assemelha, no caso brasileiro, ao antes desempenhado pela Lei nº 8.666/1993[4].
Em suma, a novel modalidade terá por função oferecer soluções às contratações mais complexas à Administração Pública através do estabelecimento de um transparente diálogo concorrencial com o setor produtivo privado, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas para uma necessidade pública identificada.
Além da inclusão da nova modalidade licitatória, vale destacar que serão extintas, após 2 anos da promulgação da lei, as modalidades convite e tomada de preços, antes previstas na Lei nº 8.666/1993.
No campo das novidades, foi incluído, dentro dos possíveis regimes de execução, o fornecimento e prestação de serviço associado, no âmbito do qual o contratado assuma a responsabilidade pela posterior operação/manutenção do objeto (e.g., aquisição de um sistema de ar-condicionado que, após devidamente instalado e colocado em funcionamento, deverá ser objeto de manutenções periódicas (preventiva e corretiva).
Em tais casos, previu o legislador que a vigência do contrato será definida pela somatória do prazo relativo ao fornecimento inicial ou entrega da obra com o prazo atinente à operação e/ou manutenção, com limitação máxima de 5 (cinco) anos, contados do recebimento inicial, permitida prorrogação, desde que: i) haja previsão no instrumento convocatório; ii) a autoridade competente ateste o preço e condições mais vantajosas, permitida a negociação ou extinção sem ônus; e iii) seja respeitado o prazo máximo de 10 (dez) anos.
Outra inovação foi a possibilidade, indistinta e sem valor definido, de a Administração Pública realizar, com a antecedência mínima de 8 (oito) dias úteis, audiência pública, presencial ou a distância, para debater qualquer licitação que pretenda realizar ou, ainda, de que tal procedimento licitatório seja submetido à consulta pública, de modo a serem recebidas sugestões dentro do prazo fixado no correspondente aviso.
A nova lei cria o Plano Anual de Contratações, a ser obrigatoriamente elaborado por cada ente federativo, a fim de racionalizar as contratações e subsidiar a edição das leis orçamentárias, bem como o Portal Nacional de Contratações Públicas, destinado à divulgação centralizada e obrigatória das licitações conduzidas por todos os entes.
Foi, ainda, criada, pela nova lei, a figura do agente de contratação, que será responsável pela condução do procedimento licitatório, isto é, tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, das impulso ao procedimento e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.
O agente de contratação deverá ser designado pela autoridade competente dentre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Público, podendo, em caso de bens e serviços especiais, ser substituído por uma Comissão de Contratação formada, no mínimo, por três membros (servidores ou empregados públicos efetivos). No caso da modalidade pregão, o agente de contratação será denominado “Pregoeiro”.
De plano, já identificamos e destacamos uma problemática em relação à atuação dos agentes públicos, sobretudo do agente de contratação, dentro do procedimento licitatório em Municípios pequenos e pouco estruturados.
Isto porque, não raras as vezes, quer por limitações orçamentárias ou por ouros motivos, tais entes da Federação não possuem servidores efetivos em quantidade suficientes para que se obedeça ao princípio da segregação de funções previsto no art. 5º da Lei nº 14.133/2021.
Por outro lado, a nova lei traz a chance de a gestão pública ser aprimorada e as práticas administrativas serem consolidadas, já que um servidor com vínculo efetivo não sofrerá pressões políticas ou solução de continuidade a cada troca de gestor.
Verifica-se que estamos diante de um cenário que, embora possamos contar com vários institutos e práticas já conhecidas e aplicadas, exige de todos um olhar prospectivo, de inovação e avanço, evitando-se o que se denomina “retrovisor jurisprudencial”.
Novos paradigmas devem ser construídos e criados pelos intérpretes a partir da própria Lei nº 14.133/2021, cuja nascente é a Constituição Federal (art. 22, inciso XXVII).
Afinal, habemus uma nova lei de licitações e contratos administrativos!