O Senado Federal aprovou, no dia 30 de junho de 2022, por 72 votos a um, no primeiro turno, e 67 votos a 1, no segundo, a Proposta de Emenda à Constituição 01/22, que “dispõe sobre medidas para atenuar os efeitos do estado de emergência decorrente da elevação extraordinário e imprevisível dos preços dos combustíveis e dos impactos sociais deles decorrentes”. Dentre as diversas medidas contidas na referida Proposta, destacam-se a extensão do programa auxílio Brasil, a concessão de parcela extraordinária do auxílio gás, a instituição de benefício financeiro a transportadores autônomos de cargas e a motoristas de taxis, bem como o apoio financeiro a Estados e Municípios.
Para viabilizar tais medidas, várias regras contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal e na própria Constituição, como os requisitos para geração de despesas (arts. 15 e 16 da LRF), o teto de gastos (arts. 106 a 112 do ADCT) e a regra de ouro (art. 167, III, da Constituição), precisaram ser flexibilizadas pela PEC. Essa prática de constitucionalizar regras (e, principalmente, exceções) de Direito Financeiro tem sido corriqueira, a exemplo das recentes Emendas 109, 113, 114 e 119. Nos últimos anos, sempre que o governo encontrou barreiras em regras fiscais, a Constituição foi alterada para superá-las, o que contribuiu para o descrédito de normas dessa natureza e para o aprofundamento da crise social e financeira pela qual passa o país.
No caso da PEC 01/22, o motivo utilizado pela União para justificar o afastamento de tantas regras fiscais foi o aumento extraordinário e imprevisível dos preços dos combustíveis. Que a gasolina, o diesel e o etanol subiram de preço, nos últimos meses, não há dúvida, mas é possível questionar se esse aumento, de fato, era extraordinário e imprevisível, a ponto de induzir tamanha alteração no arcabouço fiscal, ou se era possível à União ter conhecimento prévio da situação e adotado medidas mais bem planejadas para enfrentá-la.
Ao menos três fatores apontam para a ausência de imprevisibilidade. Em primeiro lugar, tem-se o crescimento da receita dos Estados em 2021. A Secretaria do Tesouro Nacional, órgão central de contabilidade da União, já noticiava esse aumento desde 2020[1], alertando, contudo, para os efeitos da inflação no ICMS (um dos principais impostos incidentes sobre o combustível). A esse respeito, analisando o comportamento do preço do barril de petróleo do tipo Brent no mercado internacional, verifica-se que ele saltou de, aproximadamente, US$ 47,00, em janeiro de 2021, para US$ 75,00, em dezembro daquele ano[2].
O segundo fator é retirado das atas do Comitê de Política Monetária – COPOM – do Banco Central. Em setembro de 2021, o Comitê já sinalizava o crescimento do preço dos combustíveis[3]. Em maio de 2022, o alerta foi novamente formulado[4]. Finalmente, o terceiro e último fator encontra-se no anexo de metas fiscais do Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2023. Tal projeto é elaborado no início do ano e enviado ao Congresso até meados de abril. Consta na grade de parâmetros macroeconômicos que o preço médio do petróleo a ser utilizado como referência é de US$ 90,20, muito superior ao que constava na LDO para 2022: US$ 60,95.
Não nos parece, portanto, que a imprevisibilidade possa servir de justificativa para as drásticas medidas contidas na PEC. A situação mais se aproxima das emergências fabricadas (ou decorrentes de desídia ou incúria), reconhecidas pela jurisprudência dos Tribunais de Contas[5].
Para se ter ideia do impacto nos cofres públicos da medida, estima-se que os gastos diretos com os auxílios e com as compensações ultrapassem a cifra R$ 40 bilhões. Isso representa mais do que o orçamento anual dos Estados de Roraima, Amapá, Acre, Rondônia, Tocantins e Alagoas juntos[6]. Se apenas as despesas dessa PEC fossem comparadas com o orçamento de Estados e Municípios brasileiros, elas estariam em nono lugar: atrás apenas de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Paraná, Pernambuco e da cidade de São Paulo.
Coincidentemente, ou não, no mês de junho de 2022 foram pagos, pelo Executivo federal, mais de R$ 8,8 bilhões[7] de emendas parlamentares, sendo R$ 2,4 bilhões de emendas de bancadas estaduais, R$ 535 milhões de emendas de senador e R$ 1,8 bilhão de emendas do relator geral do orçamento (o chamado orçamento secreto). O recorde, desde 2013 até o momento, para um mês, atualizado pelo IPCA, havia sido abril de 2020 com R$ 4,2 bilhões, metade do que foi pago em junho de 2022.
Resta agora à Câmara dos Deputados discutir a PEC 01/22 e analisar os impactos financeiros das medidas nos cofres públicos, a flexibilização de regras fiscais e a existência, ou não, de situação extraordinária e imprevisível apta a justificar as sensíveis alterações na Constituição.