A preterição, em dispensa de licitação, da ordem de classificação das empresas que apresentam cotações de produtos viola os princípios da isonomia e da legalidade (arts. 3º e 50 da Lei 8.666/1993). (Acórdão 445/2022 Segunda Câmara, Rel. Ministro Aroldo Cedraz)
O caso concreto analisado pela Corte Federal de Contas referia-se a uma contratação por dispensa de licitação com fundamento no art. 24, IV, ou seja, uma contratação em caráter emergencial, realizada por municipalidade com recursos provenientes Programa Nacional de Alimentação Escolar.
A instrução dos autos revelou que, das cotações recebidas pela Administração Municipal, não foi possível aproveitar a de valor mais baixo, portanto, a “primeira colocada”. Em vista disso, a Administração celebrou contrato com o terceiro menor preço, isto é, a “terceira colocada”, preterindo, portanto, a posição de empresa que teria melhor preço dentre as remanescentes. O Tribunal entendeu, na oportunidade, que mesmo se tratando de uma contratação direta, a preterição da segunda melhor proposta configurou violação ao dever de isonomia e da legalidade.
Por fim, após não acolher as justificativas da autoridade municipal, o Relator propôs aplicação de multa ao mesmo, o que foi acompanhado pelos demais Ministros votantes.
COMENTÁRIOS
Antes de aprofundar no caso concreto, é de bom alvitre que se esclareça que o processo de trabalho relacionado à investigação de mercado nas contratações por licitação é distinto daquele realizado nas contratações diretas.
No processo licitatório, a pesquisa de mercado para o fim de obter o valor estimado da contratação, é realizado previamente ao processo de escolha do fornecedor, que é a licitação propriamente dita. Ou seja, primeiro a Administração vai ao mercado investigar a curva de preços e dela extrair a média, para o fim de dar subsídio à tomada de decisão da autoridade competente quanto à conveniência e oportunidade em contratar, bem como possibilitar a reserva orçamentária, preparando a Administração para a despesa quer está por vir. Somente após — com a realização do torneio — é que se escolherá o executor, que, necessariamente, será o autor da proposta mais vantajosa.[1]
Na inexigibilidade de licitação, ocorre o inverso. Primeiro se escolhe o executor — seja porque é exclusivo na comercialização do objeto; seja porque foi reconhecido o mais adequado à sua plena satisfação (notório especialista)[2]. Após a escolha, é que a Administração vai ao mercado verificar se o preço proposto pelo executor está de acordo com o que vem praticando em outros contratos assemelhados.
Na dispensa de licitação, o procedimento de investigação de mercado é concomitante com o de escolha do executor. Na medida em que se investiga o mercado, também se executa o processo de escolha do fornecedor. Após o recebimento das propostas já se saberá quem será a pessoa do contratado.
Diferentemente da inexigibilidade, em que a licitação é inviável, na dispensa de licitação a realização do torneio é perfeitamente possível, isto é, o objeto permite cotejamento de propostas por meio de critérios objetivos de aferição. Trata-se apenas de uma alternativa à licitação para os casos nos quais a lei admite o afastamento do dever de licitar.
É muito comum nos órgãos públicos que o processo de escolha do executor, nas dispensas de licitação, seja realizado partindo do encaminhamento, pelo Setor de Compras (ou outro correlato), de pedidos de cotações direcionados a empresas do ramo pertinente ao objeto pretendido e, a partir do recebimento de pelo menos três propostas, dentre elas, direcionar a escolha àquela que cotou o menor preço.
Quanto à escolha do executor (ou vendedor), nenhum problema pelo fato de a indicação ser feita diretamente pelo setor responsável, pois é ínsito da atividade de contratação por dispensa de licitação, a escolha ser um ato com certo grau de discricionariedade. Assim já se manifestou a Corte Federal de Contas:
Nas contratações diretas não há que se falar em direcionamento ilícito, pois a escolha do contratado é opção discricionária do gestor, desde que satisfeitos os requisitos estabelecidos no art. 26 da Lei 8.666/1993: justificativa do preço, razão da escolha do contratado e, se for o caso, caracterização da situação emergencial. (TCU, Ac. 1.157/2013, Plenário. Rel. Min. Benjamim Zymler, julg. em 15/05/2013)
No entanto, não é pelo fato de que a licitação possa ser dispensada que o gestor passaria a gozar de ampla liberdade para escolher o executor ao seu próprio alvedrio. A discrição é temperada pelos princípios da eficiência e da razoabilidade. Importa lembrar que o objeto seria perfeitamente licitável e, por isso mesmo, os preceitos licitatórios devem ser respeitados naquilo que couber. Sobre esse ângulo de visão, Marçal Justen Filho[3] anota a seguinte lição:
Não seria absurdo afirmar que a contratação direta é uma forma extremamente anômala de licitação. (…) Não se confunde a contratação direta com os casos de concorrência, tomada de preços etc. Mas a contratação direta pressupõe um procedimento formal prévio, destinado a produzir a melhor escolha possível para a Administração.
Dito isto, fica mais fácil entender o raciocínio que permeou a decisão em tela. O Relator do julgado fundamenta a decisão, citando o art. 50, da Lei nº 8.666/1993, cujo teor é o seguinte:
Art. 50. A Administração não poderá celebrar o contrato com preterição da ordem de classificação das propostas ou com terceiros estranhos ao procedimento licitatório, sob pena de nulidade.
Notem que o dispositivo invocado fala em ordem de classificação no procedimento licitatório, mas o Tribunal emprestou, corretamente, a nosso aviso, interpretação extensiva para o caso das dispensas de licitação. Ora, se o objeto é cotejável, desaparece a discrição do gestor quanto à escolha do futuro executor e, por isso deve atentar para a escolha da proposta mais vantajosa.
Nessa ordem de ideias, recebidas as propostas e escoimadas aquelas que não atendem aos critérios de aceitabilidade impostos, a escolha deve recair no autor do menor preço. Não sendo viável contratar o autor do menor preço, por exemplo, porque se acha em débito perante o sistema de seguridade social, a próxima investida necessariamente deverá ser a proposta do autor do segundo melhor preço, e assim sucessivamente, até que se ache a proposta mais vantajosa e viável, tal qual o seria em um procedimento licitatório regular. Como se trata de circunstância em que a licitação seria possível, ou seja, o objeto admite cotejamento de propostas por critérios objetivos de comparação, a escolha que não resulte na proposta mais vantajosa dentre as possíveis, indubitavelmente, viola o dever de eficiência e razoabilidade.
Mas, o Tribunal de Contas da União foi um pouco mais além ao reconhecer que, mesmo nas contratações por dispensa de licitação, o autor da proposta mais vantajosa possui direito subjetivo à convocação, caso a Administração proceda à contratação do objeto, exatamente como o seria se estivesse participando de um certame licitatório. Tanto que entendeu que, no caso analisado, ao preterir a proposta mais vantajosa, a Administração teria violado os princípios da isonomia (igualdade de condições entre os participantes) e da legalidade (violação direta ao art. 50, da Lei nº 8.666/1993).
Sempre defendi que o procedimento da contratação direta, mormente nos casos de dispensa, deve, tanto quanto possível, respeitar os princípios atinentes ao dever geral de licitar, dentre eles, o da competitividade, o da seleção da proposta mais vantajosa e o da isonomia.
Em primeiro lugar, devem ser consultadas o maior número possível de empresas do ramo pertinente, não sendo adequado, em homenagem ao princípio da eficiência e da razoabilidade, que o órgão se contente com apenas três cotações como vem sendo adotado por muitos órgãos como praxe. Nesse sentido:
Consulte, nas contratações em que seja aplicável a hipótese de dispensa de licitação, o maior número de possível de propostas de potenciais interessados, de modo a aperfeiçoar parâmetros de comparação quanto a escolha do fornecedor, do objeto a ser executado e a razoabilidade dos preços cotados. (TCU, Acórdão 21/2006 Segunda Câmara. Rel. Min. Benjamim Zymler, julg. em 24/01/2006)
O procedimento de Dispensa de Licitação Eletrônica, instituído pela nova lei de licitações e regulado pela Instrução Normativa nº 067/2021/SEGES/ME, até permite que a divulgação da oportunidade sem que haja investigação de mercado prévia, para qualquer das hipóteses de contratação direta, sendo que a recepção de propostas funcionaria como a própria investigação de mercado. Tal procedimento torna mais transparente o procedimento, que deixa de ser executado na mesa de trabalho do agente responsável, e passa a ser auditável, inclusive pela sociedade. Com a total implementação da Lei nº 14.133/2021, ficará aberta a caixa preta das contratações diretas dos órgãos e entidades da Administração Pública, exemplo que deveria ser seguido pelos regulamentos das Estatais, que não são alcançadas pela nova lei geral de licitações e contratos.
Por fim, anote-se que nos casos de dispensa emergencial, como foi o caso em estudo, a depender da criticidade da situação, pode ser que não haja tempo necessário para que se aguarde a chegada de um número maior de propostas, o que poderia acabar provocando uma contratação com preços não tão vantajosos. Tal situação poderá ser justificada desde que demonstrada a imprescindibilidade da execução do objeto no menor tempo possível. Não foi o caso tratado no julgado, uma vez que a edilidade dispunha de ao menos três propostas, o que lhe permitiria escolher a mais vantajosa dentre elas.
[1]Independentemente do tipo de licitação, (menor preço, melhor técnica ou melhor técnica e preço) o vencedor sempre será o autor da proposta mais vantajosa.
[2]Sobre a contratação de serviços fulcrados no art. 25, II da L. 8.666/1993, vide: Um estudo completo sobre a hipótese de inexigibilidade de licitação para contratação de serviços técnicos especializados, Revista do Tribunal de Contas da União, nº 143, págs. 4-31. Disponível em: n. 143 (2019): Revista TCU | Revista do TCU
[3]JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15a ed., São Paulo: Dialética, 2012, pág. 228.