Quando o assunto é a aquisição de veículos “zero km” através de processo licitatório, muito se discute sobre a possibilidade de ampla participação de fabricantes, concessionárias e revendedores.
A princípio, tem-se que todos aqueles que demonstram que se dedicam e exercem regularmente a atividade de comercialização de veículos novos podem concorrer no certame, a exemplo das próprias fabricantes dos veículos; das concessionárias (que são distribuidoras autorizadas das fabricantes, nos termos da Lei nº 6.729/1979 – conhecida como Lei Renato Ferrari) e das demais empresas que atuam no comércio de veículos (comumente denominadas como revendas multimarcas).
Mas, com dito, a questão é polêmica e comporta divergência de entendimento sobre a possibilidade (ou não) de se adquirir veículos novos/“zero quilômetro” junto a apenas fabricantes e concessionárias ou, também, perante revendedoras multimarcas.
Aqueles que militam em favor de restringir a disputa deste objeto somente entre fabricantes e concessionárias utilizam como argumento as disposições da Lei Ferrari, que trata da concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre nos seguintes termos:
“Art. 1º A distribuição de veículos automotores, de via terrestre, efetivar-se-á através de concessão comercial entre produtores e distribuidores disciplinada por esta Lei e, no que não a contrariem, pelas convenções nela previstas e disposições contratuais.
Art. 2 – Consideram-se:
I – produtor, a empresa industrial que realiza a fabricação ou montagem de veículos automotores;
II – distribuidor, a empresa comercial pertencente à respectiva categoria econômica, que realiza a comercialização de veículos automotores, implementos e componentes novos, presta assistência técnica a esses produtos e exerce outras funções pertinentes à atividade;
(…)
Art. 12. O concessionário só poderá realizar a venda de veículos automotores novos diretamente a consumidor, vedada a comercialização para fins de revenda.
(…)
Art. 15. O concedente poderá efetuar vendas diretas de veículos automotores.
I – independentemente da atuação ou pedido de concessionário:
a) à Administração Pública, direta ou indireta, ou ao Corpo Diplomático;
b) a outros compradores especiais, nos limites que forem previamente ajustados com sua rede de distribuição”.
Em face da redação da lei, aduzem os adeptos dessa corrente de entendimento que no país apenas fabricantes e concessionárias estariam aptos a comercializar para os consumidores finais veículos novos ou “zero quilômetro”, sustentando, ainda, que quando tal comercialização é feita por outros revendedores o veículo deixa de ser qualificado como novo, tornando-se seminovo, na medida em que tais revendedores, ao comprarem o veículo de uma concessionária ou do próprio fabricante já devem realizar o primeiro emplacamento/registro/licenciamento[1] do veículo perante o órgão de trânsito competente antes de revendê-lo a terceiros. Tal afirmação decorre do conceito existente em antiga deliberação do Conselho Nacional de Trânsito (Deliberação 64/2008), que disciplina a inscrição de pesos e capacidades em veículos de tração, de carga e de transporte coletivo de passageiros:
“ANEXO
2 – DEFINIÇÕES
Para efeito dessa Deliberação define-se:
(…)
2.12 – VEÍCULO NOVO – veículo de tração, de carga e transporte coletivo de passageiros, reboque e semi-reboque, antes do seu registro e licenciamento”. (grifou-se)
Em sentido oposto, existe outra corrente que defende que não há fundamento para se restringir a venda de veículos novos apenas entre fabricantes e concessionárias autorizadas, pois isso, na verdade, gera uma reserva de mercado e acaba por infringir o princípio da livre concorrência insculpido na Constituição Federal (art. 170, IV) e ainda que haja o primeiro emplacamento do veículo pelo revendedor, isso não lhe retira a qualidade de novo ou “zero quilômetro”, posto que tal característica se dá pelo fato de o veículo nunca ter sido utilizado e não porque já fora ele emplacado anteriormente.
Para retratar a divergência mencionada, citam-se as seguintes decisões judiciais e de Tribunais de Contas:
“2. VOTO
(…)
Neste passo, considerando a possível e temerária pretensão de se restringir a participação no certame apenas às concessionárias de veículos, é de rigor que se determine a retificação do edital, a fim de que seja ampliado o espectro de fornecedores em potencial, elevando-se as perspectivas para a obtenção da proposta mais vantajosa ao interesse público, através de uma disputa de preços mais ampla.
Não há na Lei 6.729/79 qualquer dispositivo que autorize, nas licitações, a delimitação do universo de eventuais fornecedores às concessionárias de veículos. E, ainda que houvesse, certamente não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
A preferência em se comprar veículos exclusivamente de concessionárias, com desprezo às demais entidades empresariais que comercializam os mesmos produtos de forma idônea, é medida que não se harmoniza com o princípio da isonomia e as diretrizes do inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, além de também contrariar o comando do artigo 3º, §1º, inciso I da Lei 8.666/93.
Portanto, a cláusula ‘3.1’ deverá ser retificada para que seja excluída a inscrição ‘que atenda a Lei 6.729/79 (Lei Ferrari)’ ou aprimorada sua redação a fim de que seja admitida a participação de quaisquer empresas que regularmente comercializem o veículo automotor que a Administração pretende adquirir.”[2] (grifou-se)
“A ausência de tal detalhamento torna este item passível de imbróglios ao ferir o princípio do julgamento objetivo oriundo da Lei nº 8666/93 e do princípio correlato da comparação objetiva das propostas, trazido pela Lei nº 10.520/02, ambos preconizando o confronto entre o pedido pela administração, estabelecido no Edital e a oferta dos licitantes interessados. Não cabe aos licitantes, no momento da elaboração de suas propostas a definição do objeto pretendido pela administração.
Entendemos, dessarte, ser necessário instar a Entidade a incluir no item 3.1 do Termo de Referência [especificação técnica] a indicação de sua pretensão em relação ao ano de fabricação, além de consignar tratar-se de máquina ‘zero quilometro’, garantindo assim que as propostas contemplem o mesmo objeto, e que preço vencedor efetivamente foi o menor ao não avaliar-se produtos diversos.
Subitem 3.2 – Respeitante às especificações técnicas do objeto que deverá ser adquirido como veículo ‘zero quilometro’, entendemos ser relevante a Corte de Contas alertar ao Pregoeiro seja observada a Lei Federal nº 6729/1979 , art. 12 (Lei Ferrari) que preconiza: ‘o concessionário só poderá realizar a venda de veículos automotores novos diretamente a consumidor, vedada a comercialização para fins de revenda.’ – dispositivo que, prima facie, restringe a participação, apenas, a Fabricantes ou Revendedores Autorizados do Fabricante, não podendo a Administração afastar o devido cumprimento de preceito legal.
Há que se considerar, também, o anexo da Resolução do CONTRAN nº 290, de 29 de Agosto de 2008 que no item 2.12 define como ‘VEÍCULO NOVO – veículo de tração, de carga e transporte coletivo de passageiros, reboque e semi-reboque, antes do seu registro e licenciamento.’ (g.n).
O que leva ao entendimento que se o ‘veículo novo’ somente pode ser vendido por concessionário ao consumidor final, o fato do veículo ser revendido por não concessionário – também ele consumidor final – a outro consumidor final, descaracteriza o conceito jurídico de veículo novo.
Da leitura da manifestação técnica não se pode olvidar a ocorrência de irregularidades formais no Edital de Licitação em apreço, o que enseja a adoção da tutela inibitória nos moldes adiante aduzidos.”[3] (grifou-se)
“25. Pelo que se constata, a discussão gira em torno da questão do primeiro emplacamento e, em havendo empresa intermediária (não fabricante ou concessionária), o veículo não seria caracterizado como zero km, nos termos da especificação contida no Apêndice do termo de referência contido na peça 3, p. 46.
26. Da leitura do subitem 10.1.1.2 do edital (peça 3, p. 39) e das especificações técnicas dos veículos (peça 3, p. 46) , não se verifica a obrigatoriedade de a União ser a primeira proprietária, mas de que os veículos entregues venham acompanhados do CAT e de outras informações necessárias ao primeiro emplacamento, não especificando em nome de quem seria o licenciamento. Assim, entende-se que a exigência é de que os veículos entregues tenham a característica de zero, ou seja, não tenham sido usados/rodados.
27. É importante destacar que a questão do emplacamento ou a terminologia técnica utilizada para caracterizar o veículo não interfere na especificação do objeto, tampouco desqualifica o veículo como novo de fato.
28. Ademais, o item 6.4 do edital estabelece que os veículos deverão estar à disposição do Ministério da Saúde, no pátio da montadora homologada pelo fabricante do veículo original (fábrica) ou do implementador, sendo que a distribuição dos veículos se dará por meio dos gestores municipais e estaduais contemplados por meio de doação do bem pelo Ministério e, segundo informações, em sede de resposta ao recurso (peça 3, p. 180) , o emplacamento ocorrerá por conta das unidades que receberão os veículos.
29. Desse modo, concluiu-se que não procedem os argumentos da representante.”[4] (grifou-se)
“REPARAÇÃO DE DANOS. COMPRA DE VEÍCULO NOVO. EMPLACAMENTO ANTERIOR Á COMPRA. ALEGAÇÃO DE DESCARACTERIZAÇÃO DA QUALIDADE DO BEM. AUSÊNCIA DE PROVA. RECURSO DESPROVIDO. O FATO DE O VEÍCULO TER SIDO TRANSFERIDO PARA A EMPRESA RÉ PARA POSTERIOR REVENDA AO CONSUMIDOR FINAL NÃO BASTA PARA DESCARACTERIZAR O BEM COMO NOVO. O VEÍCULO É 0 KM PELO FATO DE NUNCA TER SIDO UTILIZADO E NÃO PORQUE FORA ELE EMPLACADO EM DATA ANTERIOR À COMPRA. AUSENTE OS ELEMENTOS NECESSÁRIOS PARA AFERIR A CONDUTA CULPOSA OU DELITUOSA DA RÉ, NÃO HÁ COMO JUSTIFICAR A PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.”[5] (grifou-se)
No âmbito administrativo, em sede de recursos e impugnações, também existem diversas decisões divergentes sobre o tema, sendo que a grande celeuma sobre tal objeto gira em torno da qualificação do carro como novo após a realização do primeiro emplacamento.
Como fazer, então, para evitar maiores controvérsias sobre o assunto e impugnações ao edital? Bom, com o fito de aumentar a competitividade do certame, a Administração pode deixar de exigir que os veículos a serem adquiridos tenham o primeiro registro e emplacamento em nome da entidade licitante, cabendo, todavia, o expresso esclarecimento de que apenas serão aceitos veículos “zero km” (mediante competente especificação técnica no edital do que se entende por veículo “zero km”, inclusive, o ano e modelo de fabricação do veículo que será aceito, vigência da garantia técnica, etc.), o que deverá ser objeto de diligência durante a fase de julgamento da licitação para a certificação de que a Administração está, de fato, adquirindo veículos novos, isto é, veículos nunca antes utilizados[6]. Ademais, importante que se explicite que a concorrência estará aberta a todos os que regularmente se dedicam à atividade de comercialização de veículos novos (o que deverá ser comprovado através dos documentos de habilitação[7]) e que tais veículos necessariamente deverão ser isentos de uso anterior e que, caso já registrados e emplacados, o vencedor do certame deverá providenciar a transferência para a Administração, arcando com todos os custos incidentes. Dessa maneira, evita-se a restrição do universo de competidores, propiciando ampla disputa e a obtenção de uma proposta realmente vantajosa à Administração, em consonância aos princípios aplicáveis aos processos licitatórios.
Por outro lado, havendo a devida motivação e justificativa técnica, é crível que a Administração tenha posicionamento diverso, adotando como conceito de veículo novo aquele constante na Deliberação do CONTRAN e exija no edital que o primeiro registro e emplacamento seja feito em seu nome, o que acabará por afastar da disputa as revendedoras multimarcas, caso em que também caberá a devida disciplina em edital.[8]
Tudo depende, portanto, da descrição do próprio objeto, que deve ser feita de modo motivado e justificado em face das necessidades concretas da Administração, baseada em competente estudo técnico e pesquisas de mercado. Mas, para nós, a primeira opção – ampliação da disputa e não restrição de participantes, com o entendimento de veículo “zero km” como sendo o veículo nunca antes utilizado (e não aquele que ainda não foi emplacado) é a mais recomendável, em vista dos princípios e objetivos do processo licitatório.
“CAPÍTULO XI
DO REGISTRO DE VEÍCULOS
Art. 120. Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei.”
(…)
Art. 122. Para a expedição do Certificado de Registro de Veículo o órgão executivo de trânsito consultará o cadastro do RENAVAM e exigirá do proprietário os seguintes documentos:
I – nota fiscal fornecida pelo fabricante ou revendedor, ou documento equivalente expedido por autoridade competente;
II – documento fornecido pelo Ministério das Relações Exteriores, quando se tratar de veículo importado por membro de missões diplomáticas, de repartições consulares de carreira, de representações de organismos internacionais e de seus integrantes.’