Acórdão nº 230/2022 – TCU– Plenário.
Por: Danielle Regina Wobeto de Araujo[1]
O recente Acórdão nº 230/22 originou-se de denúncia relativa a Pregão Eletrônico-Sistema de Registro de Preços, cujo objeto é a “locação geofísica e instalação de poços tubulares profundos e subsequente Pregão Eletrônico-SRP (…), que foi lançado para relicitar itens fracassados (não adjudicados) naquele primeiro certame”. As objeções levantadas pelo denunciante foram sumarizadas pelo Ministro Relator Vital do Rêgo da seguinte maneira:
3.1. preços no Pregão 029/2021 muito superiores aos do Pregão 019/2021 para os mesmos itens, embora os dois torneios tenham ocorrido em datas bem próximas um do outro;
3.2. desclassificação indevida da proposta da licitante Solarterra Engenharia e Serviços Ltda. no item 2 do Pregão 019/2021, por suposto descumprimento da cláusula 8.4.5 do edital;
3.3. inabilitação indevida da licitante Solarterra nos itens 2 e 3 do Pregão 029/2021, supostamente sem a indicação das cláusulas editalícias descumpridas;
3.4. prosseguimento do Pregão 029/2021 de forma “cautelar”, postergando o julgamento do recurso interposto pela licitante Solarterra contra a sua inabilitação nos itens 2 e 3;
3.5. habilitação das licitantes Civiltec Construções e Serviços Eireli e Edmil Construções S/A nos itens 2 e 3 do Pregão 029/2021, respectivamente, não obstante não terem entregado toda a documentação exigida.
Neste texto iremos nos ater a questão do prosseguimento “cautelar” do pregão sem julgamento de recurso, elencado no item 3.4 acima, em virtude das reflexões e implicações jurídicas externadas no Acórdão, como também pelo “ineditismo da situação e da possível agregação de valor decorrente da eventual construção de jurisprudência sobre tese discutida”, conforme pontuou a unidade técnica. Visando, então, compreender a argumentação jurídica e a decisão, convém relembrarmos a ordem dos fatos no caso em análise.
De acordo com a denúncia, em um Pregão eletrônico-SRP, realizado nos últimos dias do ano de 2021, resolveu a diretoria da autarquia licitante dar prosseguimento ao certame, recusando “cautelarmente” a manifestação de pretensão de recurso apresentada tempestivamente por uma das empresas participantes, no Sistema SIASG, porém, deixando consignado em despacho que consideraria aludida manifestação e suas razões recursais, se encaminhando o recurso por e-mail, conforme a data ali aprazada, e, caso provido, os atos praticados seriam declarados nulos e sem efeito. Examinando a denúncia, o relatório técnico da Corte de Contas apontou que, efetivamente o certame além de conter irregularidades procedimentais, também de maneira inovadora criou regras inexistentes na legislação vigente.
Ainda, no entender da unidade técnica, a decisão do diretor geral da autarquia pela “medida cautelar” de prosseguimento do pregão, em virtude do cumprimento de exigências técnicas de capacidade técnico-profissional, e dos prazos peremptórios para as assinaturas de atos administrativos, que deveriam ser praticados antes do final do dia 31/12/2021, não merece prosperar, pois a celeridade no prosseguimento do pregão, para antes do final do exercício de 2021, sob o argumento da possibilidade de perda dos recursos financeiros, não pode atropelar o procedimento:
“(…) a recusa de intenção de recurso e o prosseguimento cautelar de pregão não têm guarida entre os itens XVIII a XXI do art. 4º da Lei 10.520/2002, que institui o pregão, nem no art. 44 do Decreto 10.024/2019, que regulamenta o pregão eletrônico. Configura-se, portanto, a ausência da necessária decisão do recurso antes das adjudicações, em desacordo com o art. 4º, inciso XXI, da Lei 10.520/2002, e o art. 45 do Decreto 10.024/2019.”
No relatório do acórdão consta também que apesar da “recusa cautelar” de recurso ter ocorrido em 3/1/2022, a autarquia, ainda assim, enviou e-mail informando à empresa inabilitada e que manifestou interesse em recorrer, que o prazo para interposição de recursos se esgotaria em 6/1/2022. No entender da Unidade Técnica, tal determinação não tem amparo legal na legislação que disciplina o pregão eletrônico, que no inciso XX do art. 4º da Lei 10.520/2002 prescreve que “a falta de manifestação imediata e motivada do licitante importará a decadência do direito de recurso e a adjudicação do objeto da licitação pelo pregoeiro ao vencedor”.
Além disso, o argumento apresentado pela autarquia de que estava evitando perder o recurso orçamentário, também foi refutado, pois, segundo o entendimento do TCU, “as despesas decorrentes das contratações estariam programadas em dotação orçamentária própria prevista no orçamento da União de 2021 (…), portanto conhecidas desde 21/3/2021, data da conclusão da aprovação do orçamento do exercício de 2021, salvo pelo acréscimo de eventuais emendas orçamentárias (…).” Portanto, a autarquia não poderia ter negado o direito constitucional da ampla defesa, previsto no inc. LV do art. 5º da Constituição Federal.
Assim, ficou claro para Unidade Técnica ao examinar o procedimento adotado no Pregão Eletrônico-SRP que ao adjudicar os itens, o “pregoeiro não levou em consideração a existência da intenção de recurso (…) e seguiu o procedimento previsto nos arts. 17, inciso IX, e 46 do Decreto 10.024/2021, enquanto, caso considerasse a existência real do recurso, a adjudicação deveria ter sido realizada pelo Diretor Geral (…), nos termos do art. 13, inciso V, do Decreto 10.024/2019”.
O voto do Acórdão ressaltou que uma das irregularidades no pregão em exame consistiu na “homologação do certame e, inclusive, celebração de contratos, estando pendente a fase recursal, visto que a licitante (…) manifestou a intenção de contestar sua inabilitação (…)”. No entender do Ministro Relator, ficou evidente que “para garantir o aproveitamento da dotação orçamentária, considerando que era final do ano de 2021, o diretor-geral (…) resolveu determinar, ‘como medida cautelar’, o prosseguimento do Pregão Eletrônico (…), com a rejeição da intenção de recurso no Sistema SIASG, sem prejuízo de serem analisadas todas as razões recursais apresentadas pela empresa (…), através de recebimento via e-mail da licitação e, caso providos, tornarem-se nulos e sem efeitos os atos praticados conforme essa determinação.”
Por conta disso, a Corte de Contas reforçou que para os pregões regidos pela Lei 10.520/02 aplica-se seu entendimento clássico acerca da homologação do procedimento, qual seja, o de que estando pendente a fase recursal não se pode homologar certames nem celebrar contratos. Afinal, como bem ressaltado pela Unidade Técnica, dar seguimento a contratação com assunto pendente de solução fere o rito estabelecido na Lei 10.520/2002, especialmente os incs. XXI e XXII do art. 4º, que condicionam a adjudicação e a homologação do pregão ao prévio julgamento dos recursos.
Além disso, segundo o TCU, tal ato “contraria o próprio sentido da homologação, que representa o ato pelo qual o contratante revisa e confirma a integridade da licitação. É ilógico aprovar uma licitação sobre a qual pairam dúvidas ainda sobre o acerto da decisão de inabilitar uma licitante”.
O Ministro Relator relembrou, ainda, que não é à toa para as licitações em geral, as Leis 8.666/1993 (art. 109, § 2º) e 14.133/2021 (art. 168) expressamente estabelecem “efeito suspensivo ao recurso em face de inabilitação. Ou seja, sem o julgamento do recurso, não há como dar continuidade à licitação, muito menos à contratação. E que também o próprio Decreto 10.024/2019, que regulamenta a Lei 10.520/2002, prescreve ‘no art. 6º, que o pregão será realizado com observância de ‘etapas sucessivas’, onde a ‘recursal’ antecede as de ‘adjudicação” e ‘homologação’. Por conta disso, também não se pode dar andamento a outras etapas da licitação se subsiste recurso não julgado”.
Como último argumento para reforçar a necessidade de observância do rito fixado pela lei para os pregões, o TCU ainda sublinhou que “(…) a intempestividade do julgamento dos recursos é causa de insegurança jurídica e traz maior risco de anulação dos contratos, com prejuízos para a administração decorrentes de prováveis indenizações que devam ser pagas”. Com base no exposto e diante do caso concreto, decidiu o TCU, que “a recusa da intenção de recurso apresentado” e o prosseguimento cautelar do pregão “com diferimento da etapa recursal, antes da decisão final sobre a inabilitação da licitante (…) afronta ao art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, art. 4º, inciso XXI, da Lei 10.520/2002 e arts. 6º e 45 do Decreto 10.024/2019.”
Como pudemos notar, o TCU reforçou o entendimento da importância de se observar os procedimentos nas licitações pensando não só nas normas, mas também nas consequências da decisão administrativa da autarquia licitante, que no caso em tela, geram insegurança jurídica. O entendimento da doutrina não se afasta do jurisprudencial, basta observamos o conceito de procedimento nas licitações apresentado por Marçal Justen Filho:
“procedimento consiste num conjunto de atos inter-relacionados, organizados segundo uma sucessão lógica, em que a edição e o conteúdo de cada ato condicionam e determinam a validade do ato posterior, visando à produção de uma decisão final. A adoção obrigatória de um procedimento impede a concentração do poder decisório num momento único. O desenvolvimento do procedimento propicia a identificação dos aspectos relevantes da questão. A evolução do procedimento reduz progressivamente as alternativas decisórias a serem adotadas no ato final. Por decorrência, a observância de um procedimento é um mecanismo edsz0078de redução do arbítrio e da autonomia da autoridade. A procedimentalização diminui a incerteza e a insegurança, eleva o nível de satisfatoriedade da atuação administrativa e permite o controle da regularidade das decisões. De modo genérico, toda a atividade administrativa é subordinada à observância de um procedimento, cuja estruturação depende da natureza das competências exercitadas, das peculiaridades da questão a ser decidida e da finalidade buscada.” [2]
Resumidamente e para finalizar, elencamos os fundamentos jurídicos manejados pelo TCU que indicam não ser possível homologar um pregão quando ainda pendente a fase recursal:
- Violação do art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
- Transgressão ao rito estabelecido nos incs. XXI e XXII do art. 4º da Lei 10.520/2002, que condicionam a adjudicação e a homologação do pregão ao prévio julgamento dos recursos.
- Desvirtuamento do procedimento se comparado também com as regras das Leis 8.666/1993 (art. 109, §2º) e 14.133/2021 (art. 168), que expressamente prescrevem “efeito suspensivo ao recurso em face de inabilitação. Ou seja, sem o julgamento do recurso, não há como dar continuidade à licitação, muito menos à contratação”.
- Afronta a literalidade dos arts. 6º e 45 do Decreto 10.024/2019, que regulamenta a Lei 10.502/02. Nesse compasso, enfatiza o TCU, que segundo o art. 6º, “o pregão será realizado com observância de ‘etapas sucessivas’, onde a ‘recursal’ antecede as de ‘adjudicação” e ‘homologação’.” Por conta disso, também não se pode dar andamento a outras etapas da licitação se subsiste recurso não julgado”.
- O prosseguimento “cautelar” contraria “o próprio sentido da homologação, que representa o ato pelo qual o contratante revisa e confirma a integridade da licitação. É ilógico aprovar uma licitação sobre a qual pairam dúvidas ainda sobre o acerto da decisão de inabilitar uma licitante”.
- O prosseguimento “cautelar” gera insegurança jurídica: “(…) a intempestividade do julgamento dos recursos é causa de insegurança jurídica e traz maior risco de anulação dos contratos, com prejuízos para a administração decorrentes de prováveis indenizações que devam ser pagas”.
Por conta do cenário jurídico, foi deferida a concessão de medida acautelatória requerida pelo denunciante e restou determinado que a autarquia se abstivesse de “celebrar novas contratações ou autorizar adesões com base nas atas de registro de preços assinadas, assim como se abstenha de promover a execução dos contratos já firmados.”