Sabe-se que alguns particulares, na prática de mercado, têm como forma de remuneração além da taxa de administração que cobram da Administração Pública, uma porcentagem nos lucros à título de taxa de serviço de seus conveniados, como ocorre em contratos relativos ao fornecimento de vale-refeição/alimentação.
Esta conduta não é irregular, assim como explica Marçal JUSTEN FILHO:
“5.7.3) A remuneração indireta e a questão da taxa de administração negativa:
(…) Em diversos casos, a contratação propicia ao particular a obtenção de recursos por outras vias, o que significa a desnecessidade de a remuneração recebida superar o custo do particular. Há hipóteses, inclusive, em que se pratica uma remuneração negativa, de modo que o particular transfere recursos para a Administração (…)
Não se configurará, em tais casos, proposta inexequível, ainda que o particular oferte serviços por valor igual a zero ou por valor negativo.A questão fundamental será a existência de um mecanismo de remuneração adicional, distinto do pagamento realizado pela Administração. (…) [1] (grifou-se)
Neste sentido, o Tribunal de Contas da União apontou que a vedação de utilização de taxa igual a zero ou mesmo negativa, traz indicativos de restrição ao caráter competitivo do certame, uma vez que esta situação não era repelida pela jurisprudência, podendo tratar-se de estratégia de mercado do particular, interessando à Administração apenas a exequibilidade da proposta, vejamos:
“24. No presente caso, verificou-se que há indícios de restrição ao caráter competitivo do certame, já que é latente que a jurisprudência do TCU não proíbe a utilização da taxa de administração negativa ou igual a zero, devendo ser averiguado no caso concreto, se a proposta é exequível, conforme explanado acima, ademais, verificou-se, ainda, que somente uma empresa participou do certame, consoante ata de reuniões para recebimento dos envelopes (v. peças 6 a 8).
(…)”[2] (grifou-se)
No entanto, no âmbito do Programa de Alimentação do Trabalhador, esse panorama foi alterado com a edição, pelo Ministério do Trabalho (atual Secretaria do Trabalho), da Portaria 1.287/2017, trazendo vedação à taxa de serviço negativa.
Posteriormentee em razão da Portaria citada, adveio a Nota Técnica 45/2018, expedida para anunciar que “A entrada em vigor da Portaria nº 1.287/17 tem efeito imediato para seu cumprimento, independentemente se à data da publicação já estavam vigentes quaisquer contratos entre participantes do PAT, sejam estes por prazo determinado ou indeterminado.”
Como se não bastasse a edição da portaria que inovou na ordem jurídica por intermédio de ato inadequado[3], interferiu na área econômica, prejudicando, ademais, a competitividade dos certames licitatórios – a Nota Técnica expedida posteriormente veio a estabelecer que os efeitos dessa alcançavam até mesmo os contratos já firmados, o que causou ainda maior inquietude e perplexidade, uma vez que com isso restariam afetados atos jurídicos perfeitos, o que violava, consequentemente, o princípio da irretroatividade da lei e da segurança jurídica assegurado pela Constituição Federal, que dispõe:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”[4] (grifou-se)
A partir disso, foram impetrados diversos mandados de segurança contra essa Portaria, com pedido de liminar, requerendo, entre outros, a suspensão dos seus efeitos. Alguns deles foram atendidos liminarmente apenas em parte, de modo a impedir que as impetrantes sofressem sanções em decorrência do descumprimento do referido ato normativo, especificamente no tocante a contratações já formalizadas. Para ilustrar a questão cita-se a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:
“MANDADO DE SEGURANÇA Nº 24.174 – DF (2018/0066172-4) (…) Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado pela Companhia Paranaense de Energia e outras contra ato do Ministro de Estado do Trabalho consistente na edição da Portaria MTE 1.287, de 27/12/2017, a qual impediu a adoção de taxas de administração negativas nas contratações firmadas entre as pessoas jurídicas beneficiárias do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT e os operadores dos vales alimentação e refeição. As impetrantes sustentam que o referido normativo contraria a legislação de regência, bem como a Constituição Federal, devendo ser reconhecida sua nulidade. (…) Decido. (…) Ante o exposto, defiro, em parte, o pedido de liminar para suspender a aplicação da Portaria 1.287/2017, editada pelo Ministro de Estado do Trabalho e impossibilitar que as impetrantes sofram sanções em decorrência do descumprimento do referido ato normativo, especificamente no tocante às contratações que foram realizadas com as prestadoras do serviço de gerenciamento, implementação e administração de benefício refeição e alimentação. Comunique-se com urgência. Notifique-se a autoridade impetrada para apresentar informações no prazo legal. Cientifique-se o órgão de representação judicial do Ministério do Trabalho para, querendo, ingressar no feito. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 26 de março de 2018. Ministro Og Fernandes Relator.” (grifou-se)
No teor do Acórdão 1.623/2008 – TCU, em representação oferecida pelo Ministério Público (MPTCU), verifica-se que o Ministério Público do Trabalho sustentava que a prática da taxa negativa refletia no poder de compra do trabalhador, pois as empresas que venciam a licitação para o fornecimento do vale alimentação precisavam recompor a vantagem dada à administração pública, transformando a relação em efeito cascata, passando a cobrar mais dos restaurantes e supermercados credenciados, que, consequentemente, aumentavam os preços de seus produtos, trazendo reflexos ao trabalhador.
Contrapondo-se a isso, o Ministério Público do Tribunal de Contas da União, pontuou que não havia previsão legal para tal vedação, além de inexistirem elementos técnicos que fossem capazes de conduzir tal afirmação por parte do Ministério Público do Trabalho, tanto para dizer que a vedação traria resultados positivos ou para afirmar que de fato trazia prejuízo aos trabalhadores, afetando, em muito, uma série de princípios. Assim, o Tribunal de Contas da União, no Acórdão1.623/2018 – Plenário, acolhendo pedido do Ministério Público junto a Corte, determinou, cautelarmente, ao Ministério do Trabalho que se abstivesse de exigir o cumprimento da Portaria 1.287/2017 em relação aos contratos da Administração e das entidades do Sistemas S já formalizados quando da sua entrada em vigor. À tela, partes do acórdão 1.623/2008 – TCU:
“(…) Cuidam os autos de representação, oferecida pelo Ministério Público junto a esta Corte (MPTCU), noticiando possíveis irregularidades na Portaria 1.287/2017 do Ministério do Trabalho (MTb), alusiva à operacionalização do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). 2. Em linhas gerais, a norma proíbe que as empresas administradoras de vales e cartões de alimentação negociem com seus clientes preços inferiores ao valor nominal dos créditos a serem distribuídos aos trabalhadores beneficiários. (…) 3. Para o Ministério do Trabalho, a vedação se justificaria porque a prática de taxas negativas – estratégia comercial utilizada para atrair grandes clientes – causa prejuízo aos trabalhadores, porquanto as empresas operadoras do serviço, para se compensar dos “descontos” oferecidos aos contratantes (empregadores), passam a cobrar mais de seus varejistas credenciados (restaurantes, supermercados), que, por sua vez, “repassam tais custos aos trabalhadores [via aumentos de preços], reduzindo, ao final, o poder de compra dos vales”. 4. O MPTCU, por sua vez, enfatizando a inexistência de previsão legal para a proibição, bem assim a aparente ausência de “estudos que apontem e quantifiquem – ou, ao menos, estimem – eventual redução do poder de compra do trabalhador em decorrência da prática de taxas negativas, tampouco que a sua vedação, por si só, seria medida apta e necessária a coibir as alegadas distorções”, afirma que a Portaria MTb 1.287 constitui: “ato administrativo normativo proibitivo ofensivo à legalidade (art. 5º, inc. II, da CF) e à razoabilidade e proporcionalidade (art. 2º da Lei 9.784/1999), por se mostrar aparentemente desprovido de evidências quanto à sua adequação para o atingimento dos resultados objetivados, quanto à sua necessidade, assim entendida como a ausência de medida alternativa tão ou mais eficaz e menos onerosa, e mesmo quanto à proporcionalidade em sentido estrito entre o ônus imposto aos empregadores participantes do PAT e os ganhos potenciais ao poder de compra do trabalhador, já que não se verificou qualquer estimativa a esse respeito. Se, ao contrário, ocorreram tais estudos de que ora se questiona, o ato, no mínimo, carece da devida motivação, nos termos dos arts. 2°, 29, § 1°, e 50, inc. I e § 1°, da Lei 9.784/1999” (destaques do original). 5. Em particular, preocupa o Parquet “o fato de a Portaria 1.287/2017 não ressalvar da sua incidência contratos já celebrados, em especial contratos administrativos e outros contratos sujeitos, ainda que parcialmente, a regime jurídico de direito público”, motivo pelo qual requer, cautelarmente, que se determine ao Ministério do Trabalho que “se abstenha de exigir a observância da Portaria 1.287/2017 em relação aos contratos da administração pública federal e das entidades do Sistema S já celebrados na data de entrada em vigor da citada portaria, divulgando essa determinação entre os empregadores credenciados no PAT”. 6 Na instrução do feito, a Secretaria de Controle Externo da Previdência, do Trabalho e da Assistência Social (SecexPrevi) manifesta-se favoravelmente ao deferimento do pedido. (…)
Atendendo a essa determinação o Ministério do Trabalho publicou o despacho que segue:
“DESPACHO DE 26 DE JULHO DE 2018 – Processo: 46000.002689/2018-45 – (…) diante da decisão exarada pelo Tribunal de Contas da União nos autos do Processo TC 011.577/2018-5, que trata de Representação oferecida pelo Exmo. Sr. Procurador do Ministério Público junto ao TCU, DETERMINO à Secretaria de Inspeção do Trabalho que se abstenha de exigir a observância da Portaria nº 1.287/2017 em relação aos contratos firmados por entidades da administração pública federal e do Sistema S celebrados em data anterior ao início da vigência da citada portaria.”[5] (grifou-se)
Posteriormente, o TCU determinou a anulação da Portaria, através do Acórdão 2619/2018 – Plenário, nos seguintes termos:
“[ACÓRDÃO] VISTOS, relatados e discutidos estes autos de representação envolvendo a operacionalização do Programa de Alimentação do Trabalhador (…) 9.2. determinar ao Ministério do Trabalho que, nos termos do art. 45 da Lei 8.443/1992, c/c o art. 71, inciso IX, da Constituição Federal, promova, no prazo de 15 (quinze) dias contado a partir da ciência desta deliberação, a anulação da Portaria MTb 1.287/2017; 9.3. dar ciência desta deliberação ao Ministério do Trabalho e ao representante; (…)” (grifou-se)
Inclusive, o Tribunal de Contas da União, após o acórdão referido acima, à espera da anulação da portaria 1.287/2017 pelo Ministério do Trabalho, decidiu por determinar a rescisão de contratos e anulação de editais que tivessem recepcionado os termos da malfadada Portaria:
“[ACÓRDÃO] VISTOS, relatados e discutidos estes autos de representação apresentada pela Confederação Nacional das Carreiras Típicas de Estado (Conacate), em razão de possíveis irregularidades no Pregão Eletrônico 40/2018 do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) , que tem por objeto o serviço de emissão de cartões eletrônicos para os benefícios de alimentação; ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo Relator, em: 9.1. revogar a medida cautelar concedida por meio do Acórdão 2.511/2018-TCU-Plenário; 9.2. determinar ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) , com fundamento no art. 250, inciso II, do Regimento Interno do TCU, que promova a anulação do Pregão Eletrônico 40/2018, uma vez que o edital recepcionou os efeitos da Portaria-MTb 1.287/2017, e informe ao TCU, no prazo de trinta dias, os encaminhamentos realizados; 9.3. dar ciência desta deliberação à representante e ao BNDES; e 9.4. encerrar os presentes autos, nos termos do art. 169, inciso V, c/c o art. 250, inciso II, do Regimento Interno do TCU.”[6] (grifou-se)
Portanto, visando dar cumprimento na determinação do Acórdão 2.619/2018 do TCU, o Ministro da Economia, no uso de suas atribuições, uma vez que atualmente a Secretaria do Trabalho integra o Ministério da Economia, editou a Portaria nº 213/2019, para o fim de revogar a Portaria 1.287/2017 do antigo Ministério do Trabalho, tornando nulo os efeitos que dela decorreram. Conforme se segue:
“Art. 1º Revogar a Portaria nº 1.287, de 27 de dezembro de 2017, do Gabinete do Ministro de Estado do Trabalho, publicada na página 197 da Seção I do Diário Oficial da União de 28 de dezembro de 2017.
Art. 2º Tornar nulo os efeitos produzidos no âmbito da Portaria nº 1.287, de 2017.”[7]
Deste modo, com a revogação, verifica-se que a taxa negativa deixa de ser refutada pela Secretaria do Trabalho, sendo possível sua adoção nos procedimentos licitatórios.
“Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela Lei nº 3.238, de 1957)
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)
(…)” (grifou-se)