Qual o entendimento do TCU acerca da fiscalização dos contratos no âmbito do Sistema S?
Por: Danielle Regina Wobeto de Araujo[1]
No Acordão 2717/2022 do Plenário, publicado no Boletim 430 do TCU, a Corte enfrentou em sede de Embargos de Declaração a questão de omissão no dever de fiscalizar contratos no âmbito do Sistema S e sua consequente responsabilização.
Para fins desses comentários destacamos que a Embargante, dentre inúmeras alegações contidas no seu recurso, afirmou que na fundamentação do acórdão, em síntese:
- não foi apontada qualquer norma legal ou regulamentar que justificasse a imposição da penalidade pecuniária;
- não houve qualquer juízo acerca da culpabilidade da embargante, se agiu com dolo ou erro grave, imprescindível para caracterização da aplicação da sanção, nos termos do art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e que a deliberação recorrida utilizou conceitos indeterminados e adjetivações que não demonstram, efetivamente, qualquer juízo de culpabilidade;
- não passou por qualquer orientação ou treinamento que a fizesse adotar procedimentos diferentes dos quais sempre realizou em outras fiscalizações que estavam sob sua responsabilidade, transgredindo o Tribunal sua própria jurisprudência, em especial, o ao Acórdão 2973/2019 da 2ª Câmara, e;
- efetuou a cotação de preços de três fornecedores no procedimento pelo qual foi condenada pelo TCU, restando claro, então, no seu entender, que os preços praticados estavam de acordo com os valores de mercado.
No que se refere à alegação da falta de orientação e treinamento, bem como estar a decisão contrariando a própria jurisprudência do TCU, a Corte refutou tais tese com base nos seguintes argumentos:
“o cargo de chefia exercido pela embargante pressupõe que o seu ocupante detenha conhecimento e competência técnica para o exercício de suas atribuições, de forma que a alegada ausência de capacitação específica não pode servir como atenuante da conduta irregular imputada à responsável. Além disso, não foi carreado qualquer elemento que comprovasse que a embargante realmente não tenha sido capacitada em sua área de atuação ou que tenha solicitado algum treinamento específico aos seus superiores. Esta Corte de Contas já decidiu que o fiscal de contrato designado, caso entenda não possuir conhecimento técnico para exercer suas competências, deve alegar o fato ao seu superior em tempo hábil, para adoção das medidas pertinentes, sob risco de vir a responder pelas irregularidades apuradas (nesse sentido, cito o Acórdão 10868/2018-TCU-Segunda Câmara).” (grifamos)
Ainda quanto a esta temática, alegou a Embargante que, se outros mecanismos e normas deveriam ser adotados, caberia imputar tal responsabilização aos gestores responsáveis pela elaboração do contrato e pelo estabelecimento da sistemática de cotação de preços, e não ao fiscal do contrato. Acerca desse argumento, o TCU explicitou que a embargante “elaborou o termo de referência da contratação, demonstrando que as demais irregularidades apuradas nos autos também contaram com a sua participação. No entanto, tal circunstância não foi considerada pela decisão recorrida pelo fato de sua audiência ter delimitado apenas a insuficiência na fiscalização dos ajustes.”
Quanto à suposta lacuna normativa no Regulamento da entidade, o TCU exarou que, efetivamente, não existem em tal Regulamento de Licitações e Contratos disposição normativa expressa fixando a obrigação de fiscalização dos ajustes e das atribuições do fiscal, mas dado o fato que administram recursos públicos, torna-se obrigatória o desempenho dessa função. Além disso, foi ressaltado no voto do Relator que o ordenamento jurídico é integrado não só por regras, mas também por princípios, sendo o princípio da eficiência que impõe o dever de fiscalização dos contratos:
Assim, por conta do princípio da eficiência, deve ser avaliado se todas as obrigações dos contratados estão sendo rigorosamente cumpridas. Cabe às entidades contratantes definir e designar fiscais com conhecimento adequado sobre o objeto acordado, o qual deve anotar em registro próprio todas as ocorrências relacionadas ao contrato fiscalizado, informando tempestivamente a autoridade competente sempre que observada alguma desconformidade no cumprimento das obrigações avençadas.
Se não bastasse isso, enfatizou o TCU que o dever de fiscalizar os contratos decorre também da própria obrigação de licitar:
“De nada adiantaria a cuidadosa elaboração de um termo de referência com a especificação detalhada do objeto, se, por exemplo, as condições previstas fossem alteradas pela licitante vencedora durante a execução do contrato por outras que não atendessem aos anseios das entidades contratantes. A proposta vencedora, selecionada por ser a mais vantajosa para a administração, perderia, na prática, essa qualidade. É por essa razão que o fiscal do contrato tem a competência de “se certificar que as condições fixadas no edital e na proposta vencedora estejam sendo cumpridas durante a execução do contrato, para que os objetivos da licitação sejam materialmente concretizados. Não existe como assegurar o resultado satisfatório de qualquer contratação governamental sem a atuação efetiva e ostensiva do fiscal do contrato.”
Além do princípio da eficiência e do fato de que a fiscalização contratual decorre da própria obrigação de licitar, registrou o Min. Relator que a prerrogativa conferida à Entidade de fiscalizar o contrato deve ser interpretada também como uma obrigação, um poder-dever. Logo, diante da necessidade de as contratações serem regidas à luz do princípio do interesse público, “não pode a administração esperar o término do contrato para verificar se o objeto fora de fato concluído conforme o programado, uma vez que, no momento do seu recebimento, muitos vícios podem já se encontrar encobertos.”
Considerando, então, que o ato de fiscalizar exige o acompanhamento adequado e tempestivo das obrigações contratuais, pois só assim a função de fiscal pode ser exercida à luz do objetivo das licitações e do princípio da eficiência é que o TCU afirmou que a formalização da designação do fiscal deve ser feita previamente ou, no máximo, contemporaneamente ao início da vigência contratual. Por conta de sua omissão, entendeu o Min. Relator que a conduta da embargante não estava em harmonia com o princípio da eficiência, ou seja, o seu desempenho estava abaixo do esperado de um gestor médio, configurando-se o erro grosseiro, estipulado no art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Ademais, também teria configurado o erro grosseiro o fato de que a embargante, diante de duas contratações de grande vulto, ter exigido a apresentação, pelas próprias empresas contratadas, de cotação de três fornecedores, pois tal exigência não comprova que os preços praticados estavam em consonância com os valores de mercado:
Como o processo de cotação de preços pelas contratadas junto aos seus fornecedores não era público, é possível ter ocorrido toda a sorte de desvios, direcionamentos e acertos de preços entre os contratados e potenciais subcontratados, tais como a hipótese aventada pela unidade técnica de que as empresas de evento encaminhassem pedidos de cotação para seis fornecedores distintos, mas apresentassem aos contratantes apenas três propostas que não fossem aquelas que necessariamente resultassem em menores preços. Nada garantiria que o fornecedor subcontratado não estivesse repartindo de forma oculta parte do resultado obtido com o contratado principal. Ainda que não ocorresse qualquer acerto oculto entre o contratado e os fornecedores subcontratados, a sistemática de remuneração adotada trazia um incentivo para que fossem acordados os maiores valores possíveis, pois as empresas percebiam honorários incidentes sobre os custos comprovados de outros serviços incumbidos a terceiros. A exigência de três cotações, ainda que não fosse a condição ideal pelos motivos elencados nos parágrafos acima, foi estipulada em contrato somente para os serviços subcontratados acima de R$ 2.000,00. Para valores inferiores a esse, sequer eram exigidas cotações de preços, o que certamente aumentou o risco de ocorrência de dano aos cofres das entidades. Portanto, concluiu o TCU que a mera apresentação de cotação de três fornecedores, pelas próprias empresas contratadas, além de não comprovar que os preços praticados foram compatíveis com os valores de mercado, mostra que o desempenho da embargante foi abaixo do esperado de um gestor médio, configurando-se o erro grosseiro, estipulado no art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasile
[1] Doutora, com período de sanduíche na Scuola Normale Superiore di Pisa (SNS), e mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Possui estágio pós-doutoral em Direito na UFPR. Possui pós-graduação em Direitos Fundamentais pela Universidade de Burgos da Espanha e em Teoria do Direito e Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Professora e pesquisadora em História do Direito e Direito Público. Consultora jurídica com mais de 10 anos de experiência e atuação na área de licitações e contratos administrativos. Colaboradora da Revista RJML de Licitações e Contratos e da Consultoria Jurídica da JML.