Sham litigation é um instituto do Direito norte-americano, caracterizado vulgarmente como uma variação da litigância de má-fé com maior sofisticação, uma vez que se fundaria no abuso do direito de ação judicial para prejudicar a concorrência.
Em outras palavras, seria o ato de se valer do Poder Judiciário para ajuizar ações sem que haja qualquer perspectiva de sucesso, tendo na realidade uma finalidade oculta/camuflada de causar um prejuízo a um concorrente direto, visando atingi-lo, de modo a gerar efeitos negativos em diversas dimensões: financeira, estrutural e de reputação.
Como muito bem relatado por Bruno Polonio Renzetti em artigo de revista[1], o referido instituto teve sua construção legal na Suprema Corte Americana, a partir de dois casos paradigmáticos: Eastern Railroad Presidents Conference v. Noerr Motor Freight Inc. e United Mine Workers of America v. Pennington[2].
O referido autor relata que, nesses casos, a Suprema Corte considerou que o ordenamento antitruste não proibia associação entre dois ou mais agentes para convencer o Legislativo e/ou Executivo para tomarem medidas com eventuais efeitos de diminuição da competição. Seria uma proteção ao direito constitucional de petição aos órgãos do governo. Estabeleceu-se, assim, a Doutrina Noerr-Pennington: imunidade antitruste ao direito de petição.
Essa imunidade, todavia, passou a ser questionada em casos posteriores. No caso California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited, os juízes da Suprema Corte analisaram o manejo de petições ao Judiciário como possível ilícito concorrencial. A Corte entendeu que o uso repetitivo de ações sem fundamentos, iniciadas independentes dos méritos, pode configurar ilícito concorrencial.
Entretanto, de forma a criar requisitos/critérios formais para caracterização de sham litigation, a mesma Suprema Corte, no caso Professional Real Estate Investor (PRE) v. Columbia Pictures[3], estabeleceu dois critérios de análise (um objetivo e outro subjetivo) diante do caso concreto: 1º) A ação levada ao Judiciário deve ser objetivamente desfundamentada, de forma que nenhum litigante poderia esperar que se obtivesse sucesso com ela (objetivo); 2º) Quando houver evidências que tal ação, sem objetivos, foi iniciada com o fito de causar prejuízos aos negócios de um concorrente no mercado.
No Brasil, a referida tese foi enfrentada pioneiramente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), a partir dos anos 2000, quando da análise de casos que retratavam o exercício do abuso da posição dominante por meio de ações judiciais/administrativas contra medidas regulatórias, para impedir a entrada de um concorrente no mercado[4].
Nesses casos, o fundamento decisório está na discussão do abuso do direito de ação, configurado, por exemplo, no inciso V, do artigo 21 da Lei Federal n.º 8.884/94[5], que ao preceituar sobre as infrações da ordem econômica, prevê, entre outras, “criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços”.
Nos dias atuais, sham litigation pode ser encarada como o abuso de direito de petição com fins anticoncorrenciais, configurando conduta atentatória ao ambiente concorrencial. Ou seja, uma “litigância predatória”, configurada quando agentes econômicos lançam mão de ações judiciais e/ou administrativas, com fundamentos essencialmente vazios, visando prejudicar seus concorrentes, ao ponto de ser considerado um ilícito concorrencial, ainda que não esteja expresso no elenco do art. 36 da Lei n. 12.529/2011.
Portanto, valendo-se da perspectiva administrativa, podemos ousar dizer que no âmbito do processo licitatório, pode-se identificar inúmeras situações onde as características de sham litigation, anteriormente aqui expostas, estariam configuradas.
Um típico exemplo seria o exercício do direito de petição por meio de interposição de recurso administrativo sem qualquer substância ou lógica jurídica, com a intenção apenas de prejudicar o(s) seu(s) concorrente(s) direto(s) nas mais diversas dimensões.
Isso quando tais intenções não pretendem algo pior, como a restrição pura e ilícita à concorrência, prática conhecida como naked restraint. Ou seja, o agente econômico priva as concorrentes do direito de prestar um serviço/fornecer um bem que ela mesma não pode realizar/fornecer naquele momento[6].
Entretanto, alertamos que, mesmo no âmbito administrativo, em sede de processos licitatórios, há de se ter bastante cautela na tentativa de configuração da sham litigation, pois não é infração facilmente identificável, e que por vezes pode ser contraposta ao argumento da legitimidade de representação democrática[7].
Ao final, percebemos que o combate à sham litigation visa dar contornos ao intitulado Jus sperniandi, de modo a evitar que o inconformismo natural se torne abuso do direito de petição, judicial ou administrativa, originária ou recursal, criando-se “filtros qualitativos”, devendo-se identificar minimamente: 1) falta de substância argumentativa, seja por não ter lógica jurídica ou contrariar notória e explicitamente entendimento judicial firmado em definitivo pelos tribunais, motivo pelo qual não há como esperar que se tenha qualquer tipo de sucesso; 2º) identificação de evidências que o exercício do direito de petição foi promovido com o objetivo de causar prejuízos aos negócios de um concorrente no mercado.
Mutatis mutandis, trazendo-se o instituto do “dirigismo contratual”, típico do direito privado, para a seara do direito público, pode-se interpretar o combate à sham litigation como uma forma de “dirigismo peticional”, onde o exercício efetivo do direito de petição (em seus mais diversos formatos) estaria limitado, isto é, garante-se a liberdade de peticionar (escolher o momento mais adequado e para onde peticionar), mas não a liberdade peticional (liberdade argumentativa plena), por estar limitada à contornos concorrenciais quase sempre ignorados.
Prof. Thiago Bueno de Oliveira
Advogado, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – Uniceub; Pós graduado em Ordem Jurídica pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense Direito Público – IDP e Pós-graduado em Direito e Gestão dos Serviços Sociais Autônomos pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Mestrando em Administração Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Ex- Supervisor da Unidade de Compras e Licitações, Pregoeiro e Presidente da Comissão Permanente de Licitação da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos ( Apex-Brasil). Ex – Gerente Executivo Administrativo da Apex-Brasil. Membro da Comissão de Legislação Anticorrupção e Compliance da OAB/DF. Affiliate member of The Internacional Compliance Association (ICA). Membro do Instituto Brasileiro de Gestão Corporativa (IBGC). Atualmente advogado da Apex-Brasil. Autor de vários artigos em Direito Administrativo e da obra: “O Caráter Regulatório das Licitações Públicas”, com prefácio do Min. Benjamim Zymler. Professor Universitário.