REGIME CONTRATUAL EXTRAORDINÁRIO: UMA ANÁLISE PRELIMINAR DO PL 2139/2020

I – Introdução

O Projeto de Lei 2.139/2020, de autoria do Senador Antonio Anastasia, cujos trâmites encontram-se em estágio inicial no Senado Federal, “Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas contratuais da Administração Pública, no período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19).” A medida vem em resposta à necessidade, que se coloca desde o início da pandemia, de um regime contratual extraordinário a regular os contratos administrativos durante o período de exceção implementado pela declaração de emergência em saúde pública. A justificativa do referido PL segue nessa linha:

“Sujeitos que são ao princípio da legalidade, esses contratos se submetem à aplicação de regras expressas em Lei e que foram pensadas para regular uma situação de normalidade social, algo que, infelizmente, não vivemos nesse momento tão sui generis.
Por essa razão, em alguns casos, as normas existentes não capturam toda a especificidade do momento. Mais que isso, podem se apresentar demasiadamente restritivas — e, portanto, incompatíveis — à adoção de medidas que, excepcionais como a situação que pretendem enfrentar, sejam as únicas, ou, ao menos, as mais eficientes para mitigar perdas e assegurar o menor impacto possível nas relações contratuais já estabelecidas pela Administração Pública.”

O regime excepcional previsto no PL busca mitigar os efeitos decorrentes da Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional – ESPIN decorrente do COVID-19 sobre os contratos administrativos que estejam vigentes na data de sua publicação e mesmo após o término do estado de calamidade ou situação de emergência. É claro seu objetivo de possibilitar a composição de interesses entre as partes e evitar que a crise de sinalagma que fatalmente se instalará nesses ajustes desemboque em inadimplemento contratual e rescisão, em prejuízo de todos os envolvidos.

II – Principais medidas sugeridas no Projeto de Lei

Em suma, as principais medidas sugeridas no PL, que ainda não possui emendas, são:

  1. Apresentação de um plano de contingência pela empresa contratada, destinado a assegurar a continuidade da execução e preservar seu objeto essencial. No plano, proposições relacionadas a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, alteração na metodologia de execução, suspensão temporária de obrigações e postergação de investimentos serão analisadas pela Administração, sob critérios de conveniência e oportunidade, buscando a solução menos nociva aos interesses públicos e privados;
  2. Com base no plano, a Administração poderá suspender a exigibilidade de obrigações, com revisão do cronograma de execução, autorizar desmobilizações, alterar qualitativa e quantitativamente o objeto do contrato, inclusive em patamares superiores aos previstos pelo art. 65, §1º da Lei 8.666/93, mediante o consenso da contratada, e suspender a exequibilidade das sanções aplicadas;
  3. Em contratos de remuneração variável ou mediante avaliação de desempenho, poderão a) ser suspensos os indicadores cujo cumprimento ou medição sejam comprovadamente inviáveis, bem como, e consequentemente, os descontos na remuneração e a aplicação de sanções e b) ser revistos os sistemas de desempenho para estabelecer um nível mínimo de qualidade compatível com a prestação do objeto durante a pandemia;
  4. Nos contratos de concessão comum, administrativa ou patrocinada, a Administração ainda poderá postergar, total ou parcialmente, a exigência de pagamento de encargos;
  5. Recomposição econômica em decorrência da variação de ônus para mais ou para menos, decorrente da aplicação das medidas previstas, incluindo a possibilidade de revisão da matriz de risco para refletir o novo desenho de obrigações de obrigações pactuado;
  6. Rescisão amigável, mediante indenização conforme previsto em contrato e em seu regime legal ordinário;
  7. Em relação aos serviços públicos delegados por meio de concessão, qualquer medida que importe na suspensão ou redução de tarifas ou altere as condições de pagamento dependerá de ato normativo editado pelo ente federativo titular do serviço, mediante demonstração de ser imprescindível para evitar danos irreparáveis ou de difícil reparação aos usuários, adotando-se, conforme o caso, medidas de compensação de impacto econômico-financeiro;
  8. Aditamento contratual para inclusão de cláusula sobre utilização de meios alternativos de solução de conflitos, especialmente mediação e arbitragem, podendo abarcar, especialmente, discussões sobre o reequilíbrio econômico-financeiro, o novo desenho das obrigações, o cálculo de indenizações e o inadimplemento de obrigações.

III – Alguns apontamentos importantes

Três aspectos, em nosso entender, merecem maior atenção  neste momento inicial, valendo como sugestão para possíveis alterações no texto do PL 2139/2020:

  1. O PL ventilou apenas indiretamente uma alternativa que precisa ser melhor considerada: a cessão ou transferência de contratos em decorrência dos efeitos da crise sobre as condições da empresa contratada originalmente.  O art. 10, parágrafo único, inc. II, prevê a possibilidade de que o cálculo de indenizações decorrentes de cessão ou transferência contratual, quando admitidas, seja definido por meios alternativos de solução de conflito. Contudo, não se refere, de forma mais direta, à possibilidade de cessão ou transferência do contrato em decorrência de circunstâncias pandêmicas. A questão é relevante, pois o seu cabimento em contratos administrativos é tema que desperta discussões, na teoria e na prática, parecendo-nos oportuno que seja matéria de lei de tal natureza. Assim, disciplinar a possibilidade e, eventualmente, as condições em que poderão ser levadas a termo, mesmo sem previsão contratual, seria de grande valia. 
  2. O PL prevê como medida possível na execução do plano de contingência a suspensão da exequibilidade de sanções aplicadas à contratada. Vislumbra-se, por exemplo, a hipótese de eventual multa aplicada e ainda não paga pela empresa, cuja cobrança ou desconto em parcelas vincendas estaria, então, postergada até o término da pandemia. Contudo, por outro lado, não estaria, a Administração Pública, isenta da apuração de infrações por meio do devido processo administrativo, que apenas teve seus prazos prescricionais suspensos nos termos do art. 6º-D da Lei 13.979/20, prevalecendo, pois, o dever de aplicar a sanção cabível. Nesse contexto, podem surgir dúvidas quanto à manutenção de contratos quando a penalidade tiver efeito suspensivo do direito de licitar e contratar com a Administração Pública, especialmente em decorrência de infrações graves e gravíssimas. Entre outros pontos passíveis de serem levantados, o fato é que o tema da aplicação de sanções pela Administração Pública a seus contratados é, por si, sensível ao extremo, razão pela qual parece-nos ser, a matéria tratada no PL, merecedora de maior detalhamento legal, visando afastar dúvidas basilares, evitar conflitos com a legislação vigente e prejudicar a segurança jurídica, princípio que tem orientado a legislação editada ao longo deste período.
  3. A resolução de conflitos por meios alternativos não é novidade no ordenamento jurídico, inclusive no tocante à sua aplicação aos contratos administrativos, relativamente aos direitos patrimoniais disponíveis. Contudo, não se tem notícia da utilização efetiva desse instrumento nessa seara, a despeito de seus benefícios. Por essa razão, parece-nos insuficiente a regulação atualmente contida no PL, que não se dedica a detalhar o modus procedendi, deixando a matéria por conta de regulamentação inferior, o que pode, nesse momento, significar um risco à eficácia e à efetividade. Em nosso ver, o regramento em sede legal deve ser capaz de possibilitar ao aplicador compreender, de forma mais concreta, os caminhos a serem seguidos, fazendo-se menção à aplicação da Lei 9.307/96, alterada pela Lei 13.129/15, criando algumas normas específicas necessárias, como a formação do juízo arbitral, a qualificação técnica necessária aos árbitros, as hipóteses em que deveriam, eventualmente, ser constituídas comissões especiais, entre outros aspectos fundamentais.

IV – Conclusões

A maioria, senão todas as previsões do PL não dependem, claramente, de autorização legislativa para serem aplicadas. Muitas delas, aliás, já estão sendo implementadas, o que não retira a necessidade e o cabimento de uma norma geral nesse sentido.

O PL 2139/2020, na esteira de outras normas editadas nesse período, ratifica o dever e a possibilidade de o agente público agir considerando as circunstâncias concretas da pandemia, em sintonia com o escopo da nova LINDB. Ao privilegiar a consensualidade, confere ao gestor a liberdade necessária para, com a devida consciência acerca dos riscos existentes, agir em busca de soluções originais, desenhadas caso a caso, voltadas para a obtenção de um equilíbrio na preservação dos interesses de ambos os contratantes. Aumentará a segurança jurídica do agente público e incentivará a tomada de providências que poderão ser vitais à retomada econômica do país e à manutenção das demandas administrativas inerentes às suas atividades meio e fim. Se vier, será bem-vindo.

Publicações recentes

Margem de Preferência nas Compras Públicas: A Nova Regulamentação pelo Decreto nº 12.218/2024 

Por:

Introdução  O Decreto nº 12.218, de 11 de outubro de 2024, estabelece novas diretrizes para a aplicação da margem de […]

25 de novembro de 2024

Discricionariedade e Transparência nas Contratações das Entidades do Sistema S: Lições do Acórdão 1998/2024 do TCU 

Por:

A discricionariedade administrativa é um princípio fundamental no Direito Administrativo, permitindo ao agente um espaço para tomar decisões que atendam […]

18 de novembro de 2024

Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa: Um Paralelo com a Atuação do Agente Público nos Processos Licitatórios e o Artigo 28 da LINDB 

Por:

1. Introdução:  A discricionariedade administrativa é um conceito central no Direito Administrativo e na atuação dos agentes públicos. Ela se […]

1 de novembro de 2024