A NOVA LEI DE LICITAÇÕES E O CAPÍTULO “CONTROLE DAS CONTRATAÇÕES” NA PERSPECTIVA DOS TRIBUNAIS DE CONTAS.

Sancionada em 01 de abril, a Lei nº 14133/2021 insere no ordenamento jurídico brasileiro, uma nova lei de licitações que traz uma série de avanços nas contratações públicas, em que pese se traduza em um modelo visivelmente burocrático (na perspectiva da disfunção burocrática), disciplinador de nomas gerais que em essência trazem um significativo repertório procedimental.

A lei também apresenta uma estrutura nitidamente “federal”, na medida em que algumas de suas regras têm difícil aplicabilidade imediata, sobretudo, nos pequenos municípios, em face de diversos aspectos, como também em função da inserção ao longo dos seus dispositivos de instruções normativas federais e de farta jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU (o que de certa forma é bom), jurisprudência esta, fruto de decisões em face da fiscalização exercida perante os órgãos federais, que apresentam, importante ressaltar, uma estrutura operacional, de controle e de assessoramento completamente distante daquela presente na maioria dos municípios brasileiros.

Alguns avanços da norma são visíveis, a saber: a extinção do convite, inserção do diálogo competitivo, a inversão de fases como regra, o aumento da garantia para 30% (trinta por cento), a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas, a possibilidade de extensão dos contratos de serviços contínuos para 10 (dez) anos, uma melhor estruturação da contratação direta, a inserção dos procedimentos auxiliares, em especial o credenciamento, a pré-qualificação, um tratamento normativo mais adequado ao Sistema de Registro de Preços, os programas de integridade, os meios alternativos de resolução de controvérsias, e outros inquestionáveis avanços.

Todavia, no tocante aos tribunais de contas, em especial, o capítulo destinado ao Controle das Contratações, art. 169 a 173, objeto central das breves considerações aqui postas, a norma traz inquietantes disposições, algumas desnecessárias, outras que apenas consolidam o que a LINDB e suas recentes alterações asseveram, na direção do alegado discurso do “apagão das canetas” e “do direito administrativo do medo”, assim outros dispositivos até mesmo inconstitucionais.

Inicialmente, destaca-se a previsão do art. 169, incisos I, II e III, referente às linhas de defesa, em especial, os incisos II e III que mencionam o controle interno e os tribunais de contas. Quanto ao controle interno, impende destacar que a realidade municipal que se impõe é de uma estrutura precária, muitas vezes constituída apenas por um controlador interno, solitário e sem equipe, assim como, na forma de cargo comissionado sem vínculo efetivo, o que, sem dúvida nenhuma, impossibilita o pleno e independente exercício de sua atuação; colidindo frontalmente, com a própria intenção do legislador de estabelecer  aspectos de controle, prevista no caput do art. 168, §1º, que assim claramente estabelece:

Art. 169 As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:

[…] § 1º Na forma de regulamento, implementação das práticas a que se refere o caput deste artigo será de responsabilidade da alta administração do órgão ou entidade e levará em consideração os custos e os benefícios decorrentes de sua implementação, optando-se pelas medidas que promovam relações íntegras e confiáveis, com segurança jurídica para todos os envolvidos, e que produzam o resultado mais vantajoso para a Administração, com eficiência, eficácia e efetividade nas contratações públicas. (grifos nossos)

Quanto aos tribunais de contas, importante observar as premissas estabelecidas no artigo acima citado, em seu §3º, inciso I, que sugere (apesar da expressão de caráter cogente “observarão”) que na constatação de “simples” impropriedade formal, os órgãos de controle adotarão “medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis”, o que além da subjetividade da expressão “simples”, traz uma interferência direta no papel dos tribunais de contas, diante do caráter imposto do “saneamento” previsto na norma de licitação, atribuindo a estes órgãos de fiscalização, medidas que são afetas, prima facie, ao gestor.

Desta forma, importante a ressalva que cabe aos tribunais de contas, em seu caráter pedagógico e orientador, que tem índole constitucional, aferir qual a medida de responsabilização a ser atribuída ao gestor, estabelecendo, eventualmente, entendendo necessárias, recomendações ou determinações, e até mesmo, aplicando penalidades pecuniárias, diante da irregularidade identificada.

Quanto ao art. 169, §3º inciso II, nenhuma novidade, apenas ratificação de que cabe aos órgãos de controle, na configuração do dano, a adoção de medidas para apuração e até mesmo reparação, o que já faz parte dos processos de Tomada de Contas Especial no âmbito dos tribunais de contas. A única contribuição do dispositivo, seria apenas o registro da “necessidade de individualização das condutas”, também praxe nos processos de fiscalização, não apenas diante do que se denomina de “responsabilidade subjetiva”, mas sobretudo, tendo em vista que a identificação do responsável, assim como o valor do dano, são requisitos inafastáveis para a instauração da Tomada de Contas Especial; portanto, apenas um lembrete.

Avançando na análise dos dispositivos, nenhuma novidade há no art. 170, que estabelece:

Art. 170. Os órgãos de controle adotarão, na fiscalização dos atos previstos nesta Lei, critérios de oportunidade, materialidade, relevância e risco e considerarão as razões apresentadas pelos órgãos e entidades responsáveis e os resultados obtidos com a contratação, observado o disposto no § 3º do art. 169 desta Lei.

O dispositivo apenas ratifica procedimentos já realizados pelos tribunais de contas (talvez o objetivo era apenas relembrar), como o tratamento a ser dado às razões de defesa e diante da omissão na prestação de informações (§1º, 2º e 3º), assim como a possibilidade de denúncias e representações por parte dos licitantes (§4º), já prevista nos regimentos internos dos tribunais de contas; ou seja, mais um lembrete.

Na esteira procedimental adotada pelo legislador, a norma, em seu art. 171 de forma desnecessária e até mesmo inconstitucional, fixa os procedimentos de fiscalização, os quais os tribunais de contas, estariam supostamente obrigados. Analisemos a seguir os mais importantes.

O inciso I traz uma obviedade nos processos no âmbito dos tribunais de contas, acerca da oportunidade de manifestação dos gestores, todavia trazendo, se focarmos nestes órgãos de controle, a novidade de participação na análise de propostas de encaminhamento do gestor, que deverá fornecer “subsídios para avaliação prévia da relação entre custo e benefício dessas possíveis proposições”, o que nos parece apenas aplicável ao controle interno, ou aos servidores da administração pública, e um texto de certa forma, mal elaborado.

O inciso II é a prova inequívoca do risco de uma norma dita como geral “falar mais do que devia”, na medida em que contempla outras obviedades como: a “adoção de procedimentos objetivos e imparciais e elaboração de relatórios tecnicamente fundamentados, baseados exclusivamente nas evidências obtidas e organizados de acordo com as normas de auditoria do respectivo órgão de controle, de modo a evitar que interesses pessoais e interpretações tendenciosas interfiram na apresentação e no tratamento dos fatos levantados”, o que convenhamos amplamente desnecessário, na medida em que relatórios, sob pena de nulidade das decisões, devem ser sempre fundamentados, lastreados em provas, ambos regidos pela imparcialidade e independência atribuída ao agente público; portanto, apenas mais um lembrete.

Não obstante a tais previsões normativas desnecessárias, o art. 171, §2º, 3º e 4º, estabelece o procedimento da cautelar relativa aos processos licitatórios no âmbito dos tribunais de contas, absurdo e incontestável dispositivo inconstitucional, de afronta direta “ao princípio do pacto federativo (art. 1º, CF) e a autonomia dos Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 18, CF)”, na medida em que disciplina prazos, procedimentos e hipóteses de suspensão, desprezando as leis orgânicas e regimentos internos dos tribunais de contas; algo que deveria ser objeto de veto, tal como foi o esdrúxulo art. 172, pelas mesmas razões abaixo descritas, consignadas no despacho do Presidente da República, publicado em 01 de abril no Diário Oficia da União:

“Art. 172. Os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e a propiciar segurança jurídica aos interessados.

Parágrafo único. A decisão que não acompanhar a orientação a que se refere o caput deste artigo deverá apresentar motivos relevantes devidamente justificados.”

Razões do veto

“A propositura estabelece que os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e a propiciar segurança jurídica aos interessados.

Entretanto, e em que pese o mérito da propositura, o dispositivo ao criar força vinculante às súmulas do Tribunal de Contas da União, viola o princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF), bem como viola o princípio do pacto federativo (art. 1º, CF) e a autonomia dos Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 18, CF).”

Por fim, o art. 173, que estabelece: “Os tribunais de contas deverão, por meio de suas escolas de contas, promover eventos de capacitação para os servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei, incluídos cursos presenciais e a distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas”. Iniciativa louvável de atribuir aos tribunais de contas, através das suas escolas de contas, a orientação aos “jurisdicionados”, na linha de que: quem fiscaliza também deve orientar.

Ressalte-se apenas que o art. 173, estabelece que os cursos destinam-se a “servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei”, o que afasta servidores comissionados que colaboram no processo de licitação, de alguma forma.

Lembrar que o art. 7º, I indica que:

“Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos: I – sejam, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública”(grifo nosso);

A limitação acima citada é despicienda, e talvez tenha sido pensada diante da figura do “agente de contratação”, que à luz do art. 6°, LX o define como “… pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação” (grifo nosso).

Logo, o capítulo no tocante ao “Controle das Contratações”, sob o olhar dos tribunais de contas é recheado de lembretes, de certa forma desnecessários, diante de uma norma geral, e até mesmo mantém inconstitucionalidades como aquela relativa a medida cautelar inserida no art. 171; numa prova irrefutável de que a nova lei de licitações, apesar dos avanços, “falou mais do que deveria”.

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